Quando assumiu a presidência em 1º de janeiro de 1995,
Fernando Henrique Cardoso referiu-se ao legado do Getulismo como algo que “atravanca
o presente e retarda o avanço da sociedade brasileira”. Seu sucessor, Luiz
Inácio Lula da Silva, no caminho inverso, franqueou a Getúlio Vargas a
inscrição no Livro dos Heróis da Pátria, que se encontra no Panteão da
Liberdade e da Democracia, em Brasília.
Pode-se atribuir muitas coisas a Getúlio Vargas, mas a pecha
de democrata não lhe assenta bem. Adepto de primeira hora do positivismo de
Auguste Comte, que norteou a política gaúcha desde fins do século 19 até o
início do século seguinte, e que tinha em Júlio de Castilhos e Borges de
Medeiros seus interpretes máximos no sul do país, Vargas foi sempre um
entusiasta de governos fortes, oposições quietas, legislativos submissos e imprensa
acabrestada.
Na década de 20, travou contato com o pensamento do
sociólogo fluminense Francisco José de Oliveira Viana, que seria o maior
ideólogo do Estado Novo, e que, em sua obra “Populações Meridionais do Brasil”
propunha a construção de um Estado forte, centralizado, um “governo poderoso,
dominador, unitário, incontrastável”, capaz de consolidar o conceito de
nacionalidade brasileira e de fustigar o poderio dos caudilhos regionais. Este
governo, segundo Viana, dependeria de estadistas de temperamento frio e
calculista, “reacionários audazes”, com coragem bastante para se contrapor, de modo ostensivo, às ideias
liberais. Uma luva para as rechonchudas mãos de Vargas?
Uma identificação com o fascismo de Mussolini – e seu direito
corporativo que tutelava as relações de capital e trabalho ao Estado, fechando
jornais, controlando sindicatos e entidades patronais - foi uma consequência
óbvia, externada abertamente por Getúlio em diversas oportunidades registradas
pela história.
Mas, diante do confronto entre uma aristocracia
politicamente falida e um saco de gatos formado por liberais, outros
aristocratas e tenentistas autoritários dificilmente se preveria que Getúlio
Vargas pudesse, em detrimento de outras forças políticas e dos militares,
ascender da Revolução de 30 com poderes ditatoriais.
Talvez nenhum momento defina mais o político Getúlio – e as
características que permitiram a ele alçar-se entre os demais - do que um
trecho de uma conversa sua com o filho mais velho, Lutero: “Vencer não é
esmagar ou abater pela força todos os obstáculos que encontramos – vencer é
adaptar-se. Adaptar-se não é o conformismo, o servilismo ou a humilhação;
adaptar-se quer dizer tomar a coloração do ambiente para melhor lutar”.
Sua chegada à presidência, como desfecho da Revolução de 30,
foi fruto desta estratégia camaleônica, e também de uma série de circunstâncias
históricas combinadas e habilmente conduzidas por um tremendo senso de oportunidade
e um inacreditável talento para conjugar a dissimulação, o estratagema e a
prudência.
Como consequência, os brasileiros seriam submetidos a um
período de quinze anos ininterruptos sob o comando de um só homem. Neste
intervalo, Getúlio ajudaria a construir mudanças essenciais na economia, na
sociedade e na política nacional. Tais transformações agiriam também sobre a
trajetória do próprio Getúlio, expondo suas contradições e ambivalências.
De 1930 a 1945, as intolerâncias, violências e perseguições
do regime getulista deixariam marcas traumáticas da vida do país. Mas, esse
mesmo intervalo de tempo também serviria para arrancar o Brasil de uma condição
essencialmente agrária, transformando-o em uma nação com aspirações urbanas e
industriais que não eram alvo da revolução.
O arcabouço desta fase efervescente do Brasil é tecido
magistralmente no livro “Getúlio: 1882-1930. Dos anos de formação à conquista
do poder”, primeiro volume da trilogia que o jornalista e escritor Lira Neto
publicou pela Companhia das Letras e cuja leitura terminei há pouco.
O autor, que já teve o talento reconhecido em outras
biografias premiadas, faz um apanhado detalhado da trajetória de Vargas, oferecendo
uma visão de fundo jornalístico a uma personalidade chave da história
brasileira cuja vida já foi alvo de hagiografias e de desconstruções literárias
patrocinadas por desafetos ideológicos.
A obra de Lira Neto prevê três volumes organizados de forma cronológica. O primeiro tomo abrange o percurso de Vargas desde o nascimento – e seus antecedentes familiares – até a chegada ao poder, em 1930, estendendo-se ligeiramente, no prólogo, aos primeiros meses de 1931. O segundo (que já está nas livrarias) versa sobre os quinze anos subsequentes, até 1945, cobrindo o primeiro período da chamada Era Vargas, destacando-se aí a ditadura do Estado Novo. O terceiro e último volume bordará o “exílio” de Getúlio em São Borja após sua derrubada pelos militares e a volta à presidência pelo voto popular, chegando ao trágico desfecho de agosto de 1954.
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