Terminei de ler há pouco “Marighella: o guerrilheiro que
incendiou o mundo”, do jornalista Mário Magalhães. Em suas 588 páginas a obra
traça um panorama da política brasileira a partir dos primórdios do século 20,
sob a ótica de determinados setores da esquerda. Marighella teve papel
fundamental nesta trajetória, passando pelo aceno fascista do Estado Novo até
os anos de chumbo da ditadura militar.
Não é um livro tendencioso, defeito facilmente encontrado em
obras que abarcam o conflito entre a esquerda, a direita e a miríade de
posicionamentos intermediários que se acomodam em meio as duas visões de mundo.
Magalhães constrói a volta do comunista baiano os fatos capitais que nortearam a
esquerda brasileira e a política do país desde seu nascimento, em Salvador, em
5 de dezembro de 1911, até sua morte, em 4 de novembro de 1969, em uma tocaia
da repressão na Alameda Casa Branca, uma rua próxima ao centro da cidade de São
Paulo.
Entre os muitos momentos memoráveis da obra, um me emocionou
especialmente, talvez por envolver minha profissão, o Jornalismo. Vivemos uma
época na qual o cinismo tomou o lugar do idealismo e onde sacrifícios pessoais
em prol de uma causa – seja ela qual for – são facilmente enredados no rol dos
desajustes mentais. No entanto, há pessoas para quem uma ideia vale mais do que
a própria vida. É o caso do jornalista Hermínio Sacchetta, ex-dirigente do PCB,
que Marighella confrontara em São Paulo na década de 30, quando stalinistas e trotskistas
se digladiavam mundo afora.
Em 1969, recém-entrado na casa dos sessenta, Sacchetta
dirigia a redação do vespertino paulista Diário da Noite. Em sigilo editava
Bandeira Vermelha, órgão do minúsculo Movimento Comunista Internacionalista, de
orientação trotskista.
Em agosto de 1969 Sacchetta foi procurado por Joaquim Câmara
Ferreira, ex-pecebista que, com Marighella, dividia o comando da Ação
Libertadora Nacional (ALN), a organização que Marighella criou ao romper com
Prestes e o PCB na busca por ação direta contra a ditadura. Câmara Ferreira,
que na década de 30 havia sido escalado pelo PCB para assassinar Sacchetta
(missão que ele abortou em nome da velha amizade e da decência), tinha uma
proposta ao companheiro trotskista.
Sacchetta deveria furar o cerco da censura, publicando no
Diário da Noite um comunicado que a ALN irradiaria em um golpe contra a Rádio
Nacional, que não era pública como a xará carioca, mas pertencente às
Organizações Globo.
O plano era ousado. Um grupo de guerrilheiros invadiria os
transmissores da rádio em Piraporinha, Diadema, e transmitiria um comunicado contra
a ditadura. O sinal da emissora alcançaria 600 quilômetros e atingiria um
público que, no interior paulista, alcançava 80% dos aparelhos de rádio.
Sacchetta topou, mesmo sabendo que, na melhor das hipóteses,
sobraria ao menos para ele.
A ação ocorreu no dia 15 de agosto, e foi um sucesso estrondoso.
Na redação do Diário da Noite, Sacchetta simulava cara de
espanto diante da notícia. Ele mudou a segunda edição, imprimiu a íntegra da proclamação
da ALN e determinou o aumento da tiragem. Ao se deparar logo após o meio-dia
com o Diário da Noite nas bancas, antes que os leitores devorassem os exemplares
e a polícia recolhesse os restantes, seu filho, o hoje historiador Vladimir Sacchetta
lhe telefonou:
“Você ficou louco?”
Serenamente, o pai respondeu que aguardava os policiais para ser preso. Vladimir correu à casa e limpou as gavetas de Sacchettar. O jornalista amargou duas semanas em cana, foi demitido em seguida e penou cinco anos sem emprego, barrado em todos os jornais. Acertara na mosca: no calor da hora, pagou sozinho pela audácia de que jamais se arrependeu.
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