Nos últimos dias passei algumas horas garimpando o Google e
o Youtube por reportagens, relatos e documentários sobre a Camorra, a violentíssima
máfia napolitana, que domina o sul da Itália e os italianos que ali vivem.
Minha curiosidade adveio da leitura de “Gomorra”, primeiro livro do jornalista
Roberto Saviano. Precisava olhar o rosto dos homens e mulheres citados em sua
obra, gente capaz de monstruosidades e de atos de coragem que imaginamos
restritos a ficção da literatura e do cinema.
"Gomorra" não é um livro que se leia sem que os olhos ardam,
as mãos se crispem, o espírito encolha. A cada linha, a cada parágrafo, a
obscenidade do poder a todo custo, a lógica dos quem têm no acúmulo de poder “o
único motivo que os faz levantar da cama de manhã, tirar o pijama e permanecer
de pé”, nos é explicitada por Saviano em um relato que em determinados momentos
flerta com a prosa poética e em outros com o jornalismo.
Mais que uma obra literária, "Gomorra" é uma autópsia da
Camorra e seus principais líderes, cuja sede de conquista transformou o sul da
Itália em um canteiro de lixo e em um imenso morgue.
Lançada em 2006 (em 2008 no Brasil, pela Bertrand), a obra
foi traduzido em mais de 40 países, vendeu milhões de exemplares, foi adaptada
para o teatro e para o cinema – o filme arrebatou o Grande Prêmio do Júri no
Festival de Cannes, em 2008 – e catapultou Saviano para o olimpo literário. No
entanto, soterrou sua vida particular, transformando-o em mais uma vítima de um
“sistema” criminoso que se impõe a vastas regiões da Itália, transformando
centenas de milhares de pessoas em massa de manobra, algumas vezes conivente,
em outras, reféns de um modo de vida da qual não conseguem escapar.
Desde 2006, pelo menos 14 policiais e dois carros blindados
se alternam 24 horas por dia na escolta de Saviano. Jurado de morte pela
Camorra, ele dorme em hotéis e apartamentos alugados, nunca por mais de um mês.
"Não consigo imaginar meu futuro. Gostaria de ter uma vida normal, com um
pouco de liberdade. Eu me arrependi mil vezes de ter escrito Gomorra e não
outro livro, que poderia ter me dado uma vida de escritor, e não de perseguido.
Eu odiei o livro por muito tempo. Sabia que devia muito a ele, talvez até
demais, mas às vezes eu gostaria de poder voltar atrás e nunca tê-lo escrito”,
afirmou em recente entrevista.
A situação de Saviano tem paralelo com a das poucas pessoas
que resolveram enfrentar a Camorra e que, se não tiveram a vida abreviada pelos
killers da organização, foram lançadas em um ostracismo social. É o caso de uma
jovem professora citada pelo autor no percurso da obra, que opta por
testemunhar um crime cometido por matadores a soldo da máfia.
“O que torna escandaloso o gesto da jovem professora foi a
sua escolha de considerar natural, instintivo, vital, o ato de poder
testemunhar. Possuir esta conduta de vida é como acreditar realmente que a
verdade pode existir... uma escolha inexplicável. Aí acontece de as pessoas
próximas se sentirem em dificuldade, se sentirem descobertas pelo olhar de quem
renunciou às regras da própria vida, que elas aceitam integralmente. Aceitam
sem vergonha, porque afinal deve ser assim, porque é assim que sempre foi,
porque não se pode mudar tudo com as próprias forças e então é melhor
economizá-las e aderir à caravana e viver como é permitido viver.”
Saviano não descreve o panorama social napolitano sob as
lupas da isenção e do afastamento crítico. Ele o decompõe com a intimidade de quem,
como um verme, esteve inserido na carne deste corpo putrefato que incha e
explode revelando toda a sujeira interior da estrutura física e moral da
Camorra.
O porto de Nápoles é o ponto de partida para a jornada de
Saviano. Lá desembarcam diariamente todo tipo de mercadorias vindas da Itália,
do oriente e de várias partes da Europa. Desde resíduos químicos, material
tóxico e lixo, vestuário e quinquilharias de todos os tipos produzidas nos
mercados asiáticos, toneladas de cocaína, alta costura e até restos humanos
descartados de cemitérios de forma clandestina para abrir espaço ao lucro. Tudo
isso é despejado clandestinamente na região da Campânia sob os olhos gulosos
dos boss da Camorra.
Em “Gomorra”, Saviano explica o esquema que permite que o
lixo tóxico produzido no norte industrializado do país - cuja legislação de
descarte de resíduos é mais rígida - seja enterrado no sul da Itália
contaminando os lençóis freáticos e até mesmo a produção da conhecida mussarela
local. Esmiúça a falsificação de alta costura, que inclui o trabalho escravo de
mão-de-obra chinesa e é ostentada até mesmo no tapete vermelho hollywodiano.
Aponta o controle mafioso de ramos importantes da construção civil, como a
produção de cimento.
Se no século XX a máfia se ocupava apenas de negócios
ilegais, como o jogo, o contrabando de bebidas e o tráfico de drogas, agora,
financiada pelo lucro da ilegalidade, estes conglomerados criminosos tem cada
vez mais participações em negócios legais e muito lucrativos. E estão mais
perto do que imaginamos. Conexões brasileiras da máfia são citadas em alguns
trechos da obra e nos fazem pensar em negócios ocorridos em nossas grandes (e
não tão grandes) cidades.
Em meados de novembro de 2008 Saviano voltou a participar de
eventos públicos, sempre acompanhado por sua escolta. Foi homenageado pela
Academia Nobel, em Estocolmo, que promoveu uma conferência sobre liberdade de
expressão em apoio a ele e a Salman Rushdie – cuja cabeça ainda está a prêmio
devido ao livro “Versos Satânicos” - pela coragem de terem publicado obras que
denunciaram autoridades religiosas, morais, políticas e criminosas.
A insistência em enfrentar uma estrutura tão entranhada no
tecido social italiano e de expor suas fissuras de forma tão clara tem um preço
alto. Saviano se diz sufocado por uma vida que não escolheu, mas da qual nunca
fugiu. Talvez o último parágrafo de “Gomorra” traduza bem este sentimento, que
compartilham todos aqueles que, de uma forma ou de outra, se veem obrigados,
sob a pena de enlouquecer, a contrapor o óbvio, a nadar contra a maré, a
esmurrar a ponta da faca.
“Em certas horas não há nada que se possa fazer senão seguir nossos delírios como alguma coisa que você não escolhe, que você sofre e pronto. Tive vontade de berrar, queria gritar, queria rasgar os pulmões com toda a força do estômago, romper a traqueia, com toda a voz que a garganta pudesse ainda soltar: “Malditos filhos-da-puta, eu ainda estou vivo!”.
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