“Considero
que a ideia central desta luta é a necessidade que se abateu sobre nós de
provar que o governo popular não é um absurdo. Precisamos resolver agora a
questão de saber se, num governo livre, a minoria tem o direito de derrubar o
governo sempre que desejar. Um fracasso serviria para provar a incapacidade do
povo de se governar”.
O pensamento acima
é de Abraham Lincoln, 16º presidente dos Estados Unidos, e diz respeito aos
motivos que lançaram seu país em uma guerra civil que se estendeu de 1861 a
1865 ceifando a vida de 970 mil pessoas (3% da população do país à época).
Apesar de contextualizado, o pensamento de Lincoln é tão atual, tão intrínseco
a uma contemporaneidade na qual os valores democráticos são constantemente
atacados e vilipendiados como se deles surgissem todos os males de nossa
sociedade.
Ontem
finalizei “Lincoln”, da vencedora do Pulitzer de História e romancista Doris
Kearns Goodwin. Em um primeiro momento o livro passa a impressão de
superficialidade, mas, conforme vamos avançando na leitura vemos descortinada a
nossa frente uma das mais fascinantes personalidades do século 19. Resumir o
pensamento e os feitos de Abraham Lincoln em 321 páginas pode ser considerado,
por si só, um trabalho exaustivo.
O livro esmiúça
a fase final da vida de Lincoln, a partir da campanha pela indicação do Partido
Republicano para a disputa presidencial de 1861 em um país dividido pela
questão escravagista e pelo conceito de União. Sua genialidade política, sua
visão de estadista são abordadas especialmente na sua relação com os
adversários - dentro do partido e no governo - cujas vaidades soube apaziguar,
cujas deslealdades pode relevar e cujas personalidades conseguiu cativar.
Goodwin
relata os bastidores políticos da época sem se esquecer de humanizar Lincoln
diante de seus dramas pessoais, como a morte dos filhos, e inerentes ao peso de
comandar uma guerra fratricida.
Talvez o
retrato mais fiel desta personalidade hercúlea seja exposto nas páginas finais
de Goodwin:
-
Em 1908, numa
área remota e afastada do Cáucaso do norte, Leon Tolstoi, o maior escritor da
época, era o convidado de um chefe tribal “que morava nas montanhas, longe da
vida civilizada”. Reunindo a família e os vizinhos, o chefe pediu a Tolstoi que
contasse passagens da vida dos homens famosos da história. Durante horas,
Tolstoi brindou o público atento com narrativas sobre Alexandre, César,
Frederico, o Grande, e Napoleão.
Quando ele se preparava para terminar, o chefe
levantou-se e disse: “Mas você não nos contou nada sobre o maior general e
governante do mundo. Queremos ouvir alguma coisa. Ele foi um herói. Falava com
a voz do trovão, ria como o amanhecer, e seus feitos tinham a força das rochas.
(...) Seu nome era Lincoln e a terra em que viveu chama-se América, uma terra
tão distante que, se um rapaz saísse a pé para viajar até lá, ele já estaria
velho quando lá chegasse. Fale-nos desse homem.”
“Olhei para
eles”, recordou-se Tolstoi, “e vi seus rostos alvoroçados, enquanto seus olhos
ardiam. Vi que aqueles toscos bárbaros realmente estavam interessados num homem
cujo nome e cujos feitos já tinham se tornado lendários”. Ele lhes contou tudo
o que sabia sobre Lincoln, sua “vida doméstica e sua juventude (...) seus hábitos,
sua influência sobre o povo e sua força física”. Quando terminou, eles ficaram
tão gratos pela história que o presentearam com “um maravilhoso cavalo árabe”.
Na manhã do
dia seguinte, quando Tolstoi se preparava para partir, eles perguntaram se ele
teria como conseguir para eles um retrato de Lincoln. Como acreditava que
poderia encontrar um na casa de um amigo na cidadezinha próxima, Tolstoi pediu
a um dos cavaleiros que o acompanhasse. “Consegui obter uma fotografia de bom
tamanho com meu amigo”, recordou-se Tolstoi. Quando a entregou ao cavaleiro,
ele percebeu que a mão do homem tremia ao aceitá-la. “Ele ficou alguns minutos
olhando para ela em silêncio, como alguém que faz uma prece com reverência, os
olhos marejados de lágrimas.”
Tolstoi fez
então o seguinte comentário: “Este pequeno incidente prova como o nome de
Lincoln é venerado pelo mundo afora e como sua personalidade se tornou
lendária. Ora, por que Lincoln foi tão grande a ponto de suplantar todos os
outros heróis nacionais? Na realidade, ele não foi um grande general, como
Napoleão ou Washington; não foi um estadista hábil, como Gladstone ou
Frederico, o Grande; mas sua supremacia se expressa totalmente em sua singular
força moral e na grandeza de seu caráter. Washington foi um americano típico. Napoleão
foi um francês típico. Mas Lincoln foi um humanitário, com a abrangência do
mundo. Ele foi maior que seu país — maior que todos os Presidentes reunidos.”
“Ainda
estamos próximos demais de sua grandeza”, concluiu Tolstoi. “Contudo, depois de
mais alguns séculos, nossa posteridade há de considerá-lo maior do que nós o
consideramos. Sua genialidade ainda está forte demais e poderosa demais para a
compreensão comum, exatamente como o sol queima demais quando sua luz brilha
direto sobre nós.”
“Diz-se que
todo homem tem sua ambição particular”, escreveu Abraham Lincoln, aos 23 anos,
em sua carta aberta ao povo do Condado de Sangamon durante sua primeira
candidatura a um cargo eletivo, na legislatura estadual de Illinois. “Seja ou
não verdade, posso dizer por mim mesmo que não tenho outra [ambição] tão forte
quanto a de ser realmente estimado por meus próximos, tornando-me digno de sua
estima. Até onde serei capaz de realizar essa ambição ainda está por se
revelar.”
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