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quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Guerra e Paz - Leon Tolstoi

Não é possível falar sobre a obra prima de Leon Tolstoi, Guerra e Paz, sem abordar a capacidade do autor de construir com profundidade uma miríade de personagens, todos reais, únicos, vivos. Cerca de 500 deles são desfiados nas 1340 páginas que compõem a obra, todo um mundo de desejos, vontades, objetivos, intrigas, conquistas, decepções e emoções que compõem a complexidade humana.

Publicada originalmente em capítulos na revista Mensageiro Russo, entre 1865 e 1869, Guerra e Paz alterna a análise histórica de uma época - tendo como protagonistas Napoleão, o tzar Alexandre I e o general Kutuzov no período da campanha napoleônica contra a Rússia, entre 1805 e 1812 - e o enredo ficcional, cujo fio condutor tem base em três grandes famílias aristocratas: os Rostov, os Bolkonski e os Bezukhov - por sua vez protagonistas de um mundo em plena decadência.

A descrição da aristocracia russa, de seu mundo de fantasia apoiado no trabalho semi-escravo dos camponeses e servos é muito rica. Criados na suntuosidade dos salões de bailes, estes aristocratas viviam em um mundo separado da imensa maioria dos russos. Cercada de luxos, de comendas e oportunidades esta casta de “senhores” se valia das “boas relações” para perpetuar suas vantagens, seu modo de vida. A hipocrisia e a adulação faziam parte do jogo nos salões do século 19, assim como hoje são ferramentas de quem gravita o poder.

A condessa Bezukhov tinha a justa reputação de muito amável. Sabia dizer o que não pensava...” (Pág. 632)

A imensidão da obra torna difícil a missão de pinçar de seu bojo uma única linha de raciocínio, uma moral predominante, uma conclusão definitiva. O que Guerra e Paz oferece ao leitor é uma análise complexa do ser humano, de seus receios e desejos mais íntimos.

Uma passagem comovente é a relação entre o velho príncipe Bolkonski e sua filha, a princesa Maria. Imperativo e autoritário, o príncipe passa toda a narrativa espezinhando a jovem, que, dentro de sua concepção de vida voltada ao sacrifício, deseja apenas o amor do velho. Amor que só lhe é ofertado quando o príncipe se encontra diante da morte, em seus últimos momentos. A passagem é uma leitura interessante das relações doentias que podem se estabelecer no seio familiar e que podem, também, perdurar até que seja tarde demais para reverter os seus efeitos.

Outro exemplo interessante de comportamento humano vem do personagem Pedro Bezukhov (para mim o fio condutor da obra). Introspectivo, sonhador, questionador e, ao mesmo tempo, acomodado, Pedro é um personagem fascinante. Sua busca pela “verdade” é assunto que permeia a narrativa, rendendo momentos muito ricos.

É em Bezukhov que Tolstoi deposita seus questionamentos mais profundos. Vindo, ele próprio, de uma nobre família da aristocracia russa, Tolstoi foi um livre-pensador, e flertou com o anarquismo dando a ele uma leitura particular, baseada no cristianismo, na solidariedade e no amor ao próximo. O questionamento à autoridade é uma das conseqüências destas preocupações filosóficas incutidas no personagem Pedro Bezukhov.

Um pensamento não lhe saía da cabeça: quem era que o condenava a morte? Não eram aqueles primeiros homens que o tinham interrogado: nenhum deles, evidentemente, tinha o poder ou o desejo de fazê-lo. Também não era Davoust, que o olhara com uma expressão tão humana... Era a disciplina e o encadeamento das circunstâncias. Uma ordem qualquer o matava, privava-o da vida, aniquilava-o.” (Pág. 1073)

Para Tolstoi, os Estados, as igrejas, os tribunais e os dogmas eram apenas ferramentas de dominação de uns poucos homens sobre outros. Foi citado pelo escritor anarquista russo Pedro Kropotkin no artigo “Anarquismo” da Enciclopédia Britânica de 1911 e alguns pensadores o consideram como um dos nomes do Anarquismo Cristão. Outra aproximação com o anarquismo se deu em 1862, quando Tolstoi, em viagem pela Europa, visitou o pensador anarquista Proudhon. Este estava a escrever um texto chamado "La guerre et la paix", cujo título Tolstoi propositalmente utilizou em seu maior romance.

O escritor não compactuava com as vertentes anarquistas que defendiam a violência como motor de arranque para mudanças sociais. Não acreditava, também, em guerras e revoluções como solução para quaisquer problemas, mas sim em revoluções morais individuais que levariam às verdadeiras mudanças.

Para atingir esse objetivo é necessário tornar a virtude mais forte; é necessário que o homem honesto receba, ainda neste mundo, a recompensa eterna de suas virtudes. Mas um grande número de instituições políticas atuais dificultam esses grandes desígnios... Que fazer diante de tal estado de coisas? Favorecer as revoluções, derrubar tudo, vencer a força pela força? Não. Estamos muito longe disso. Toda reforma feita pela força merece censura, porque não corrigirá o mal enquanto os homens continuarem como são e porque a sabedoria não carece de violência.” (Pág. 494)

Tolstoi afirmava que suas teses se baseavam na vida simples e próxima à natureza dos camponeses e no evangelho e não nas teorias sociais de seu tempo. É o que confirma o escritor George Woodcock que, em "A História das idéias e movimentos anarquistas", disse que em todos os romances que escreveu quando mais novo, Tolstoi "considera a vida tanto mais verdadeira quanto mais próxima da natureza".

A critica à violência, ao desperdício de vidas humanas nas guerras também permeia a epopéia, aliada a uma leitura ácida do militarismo e da hierarquia, como mostram os três trechos a seguir

Se a finalidade das guerras européias no começo do século XX era a grandeza da Rússia, essa finalidade poderia ter sido alcançada sem as guerras precedentes e sem a invasão. Se a finalidade era a grandeza da França, poderia ter sido alcançada sem a revolução e sem o império. Se a finalidade tivesse sido a expansão das idéias, a imprensa as teria propagado muito melhor que os soldados. Se fosse o progresso da civilização, seria muito fácil descobrir caminhos mais diretos que o da destruição dos homens e das riquezas.” (Pág. 1255)

É o destino imutável de todos os atores ativos que, quanto mais altamente colocados estiverem na hierarquia humana, menos livres serão.” (Pág. 755)

A base da ordem na classe militar é a disciplina – isto é, a ausência de liberdade -, a ociosidade, a ignorância, a crueldade, a devassidão, a embriaguez.” (Pág. 858)

É também Pedro Bezukhov quem faz um interessante questionamento à maçonaria, conforme os trechos que seguem.

Ao entrar para a maçonaria, tivera a sensação de um homem que pisa confiante na superfície lisa de um atoladouro. Posto o pé, ele cede. Para convencer-se inteiramente da solidez do terreno em que se achava, coloca o outro pé e se enterrara ainda mais, e agora, contra sua vontade, caminhava com o lodo até os joelhos”. (Pág. 492)

Era difícil a Pedro só ver irmãos em todos os membros da loja, que encontrara na sociedade, homens, por exemplo, como o príncipe B... e Ivan Vassilievitch D..., que sabia serem homens tíbios e nulos. Debaixo dos aventais e símbolos maçônicos via-lhes os uniformes e condecorações, que eram a meta de seus desejos na vida comum.” (Pág. 492)

Meus irmãos maçons juram pelo próprio sangue que estão prontos a sacrificar tudo pelo próximo, mas não pagam sua quota aos pobres, e fazem intrigas e usam toda a sorte de expedientes a fim de obter o verdadeiro avental escocês em um ato cujo sentido nem mesmo seu redator compreende e que não é necessário a ninguém”. (Pág. 605)

Guerra e Paz é uma obra a ser degustada lentamente, a ser descoberta a cada página. O estofo moral que permeia as relações que ligam as centenas de personagens que compõem esta imensa tapeçaria humana pode ser alvo de inúmeros debates e reflexões pessoais. A mim, a obra tocou em um aspecto particular de minha personalidade o que, tenho certeza, acontece com cada pessoa que resolve aventurar-se por suas páginas.

Sobre Guerra e Paz, Romain Rolland, autor da biografia La Vie de Tolstoi, escreveu: "A maior parte dos leitores franceses, um tanto míopes, vê apenas milhares de detalhes, cuja profusão lhes maravilha e desconcerta. Eles se perdem nessa floresta de vida. É preciso se elevar acima dela e alcançar com o olhar o horizonte livre, o conjunto de bosques e campos: então se perceberá o espírito homérico da obra, a serenidade das leis eternas, o ritmo imponente do sopro do destino, o sentimento de união aos quais todos os detalhes estão ligados, e, dominando a obra, o gênio do artista, como o Deus do Gênese que flutua sobre as águas."

OBS: Apesar das tentativas de destruir a grandiosidade do texto, a editora Ediouro (através do selo Prestígio) não foi bem sucedida em seu intento. Infelizmente não tive sorte com esta edição de Guerra e Paz. A revisão, de péssima qualidade, está recheada de erros. Não posso fazer julgamento quanto à qualidade da tradução (de Gustavo Nonnenberg, com base na versão francesa), mas duvido que seja de primeira, visto o que fizeram na revisão.

1 comentário:

Júlio França disse...

Gostei muito do seu texto. Acebei de ler Guerra e Paz, só que a edição da Editora CosacNaif. Um dos melhores livros que já li. Ainda agora estou a refletir sobre a imensidade e complexidade da obra. E pensar que quando começou a escrever esta obra, o autor contava apenas 35 anos. Um gênio.

Abraços!