Semana On

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

O que ocorre em Gaza é genocídio?

“Criar uma prisão e jogar a chave no mar foi uma opção à qual os palestinos em Gaza reagiram com força logo em setembro de 2005”
Ilan Pappe

No artigo “Para Azevedo, palestino bom é palestino morto”, publicado aqui no dia 5, me referi ao ataque israelense sobre a Faixa de Gaza como parte de um processo de genocídio implementado por Israel sobre o povo palestino. O blogueiro Rodrigo discordou do termo e em comentário feito sobre o artigo disse que “uma invasão pode ser sangrenta e condenável sem ser, necessariamente, genocida", e que ao usar o termo me referindo a questão de Gaza cometo “uma impropriedade que pode vir a ser capitalizada”.

Concordo com a primeira afirmação, mas não temo a segunda. Ocorre que, em minha opinião, o termo genocídio se aplica muito bem ao que ocorre neste momento lá naquela estreita faixa desértica do Oriente Médio.

Para começar, o que é genocídio? O termo foi criado por Raphael Lemkin, um judeu de origem polonesa, em 1944, a partir da junção da raiz grega génos (família, tribo ou raça) e -caedere (Latim - matar). Após o assassinato em massa de judeus, ciganos, testemunhas de jeová, comunistas, homossexuais e prisioneiros de guerra eslavos pelos nazistas, Lemkin iniciou uma campanha pela criação de leis internacionais que definissem e punissem o genocídio. Esta pretensão tornou-se realidade em 1951, com a Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio, da qual o Brasil é signatário.

A Convenção define por genocídio os seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso:

a) Assassinato de membros do grupo;
b) Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo;
c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial;
d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo.

No meu entender, a política de bombardeio contínuo dos centros urbanos palestinos e de isolamento desta população em guetos é um “atentado grave à integridade física e mental” dos seus habitantes, portanto, deve ser classificado como genocídio.

O acadêmico e escritor palestino-libanês Saree Makdisi afirma que uma geração inteira de palestinos cresce com deficiências físicas e nutricionais geradas por falta de alimentos e alterações emocionais, por viver no cárcere virtual criado pelo bloqueio israelense, que se estende desde junho de 2007.

Em meio à violência, as crianças palestinas são as principais vítimas. Cerca de 50% dos 1,5 milhão de palestinos em Gaza têm até 15 anos de idade. O número de mortos no conflito que se estende desde o fim de dezembro ultrapassa os 700, entre as quais 220 crianças.

Um estudo da Queen"s University revelou que 90% das crianças em Gaza já foram vítimas do uso de gás lacrimogêneo, presenciaram cenas de violência em suas casas ou testemunharam tiroteios e explosões. O estudo demonstra, também, que o risco de desordem emocional em uma criança ferida nessa região se multiplica por quatro. Do mesmo modo, aquelas que presenciaram uma morte têm o risco de estresse pós-traumático multiplicado por 13. “É como se as crianças palestinas de alguma maneira não merecessem as proteções garantidas pela Convenção de Genebra e o Direito Humanitário”, conclui o estudo.

Levantamento feito pelo Gaza Community Mental Health Programme, realizado após a segunda Intifada, em 2000, indica que 70% das crianças palestinas na região não conseguem se concentrar, 96% têm medo do escuro, 35% se isolam e 45% sofrem altos níveis de ansiedade e estresse.

Da mesma forma, o bloqueio israelense que se estende há quase um ano, iniciado quando o grupo islâmico Hamas tomou o controle da área, aprofundou de forma avassaladora às dificuldades econômicas, sociais e sanitárias da população palestina, configurando-se em “submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial”.

É o que retrata recente reportagem publicada no jornal Folha de S.Paulo, citando o chefe da ONU para assuntos humanitários, John Holmes, segundo quem em março do ano passado, dez meses antes do início dos ataques, a situação do território palestino já era grave. Após percorrer a região, ele relatou "uma miséria que priva os moradores das mais elementares condições de dignidade.".

A reportagem faz um levantamento sombrio das condições de vida na Faixa: “O drama se traduz nos indicadores da região: mais de 80% dos 1,5 milhão de habitantes do território são pobres, e metade da população ativa não tem renda fixa. Dois terços dos cerca de 110 mil empregos que existiam no comércio desapareceram nos últimos anos. O bloqueio de 2007 acirrou a crise. Das 3.900 empresas locais de três anos atrás, sobraram menos de 200... Com o colapso do sistema de esgoto, os dejetos acabam despejados no mar, tornando insalubres as praias mediterrâneas e aniquilando a fonte de lazer preferida da juventude local. Só há eletricidade durante metade do dia no território, que se assemelha em tamanho e população ao município de Guarulhos (SP) - na prática, duas das áreas mais densamente povoadas no mundo, com mais de 4.000 habitantes/km2.

Estas políticas de esmagamento da população palestina vêm sendo perpetradas há anos e registradas em detalhes por observadores de todo o planeta. No artigo “Genocide in Gaza” (2006), Ilan Pappe – escritor, conferencista sênior no Departamento de Ciência Política da Universidade de Haifa e Presidente do Instituto Touma para Estudos Palestinos em Haifa –esmiúça em detalhes os métodos do terror estatal israelense:

A estratégia anterior em Gaza foi colocar os palestinos lá como se fosse um gueto, mas isso não está funcionando. A comunidade posta no gueto continua a expressar sua vontade de viver através do lançamento de mísseis primitivos para dentro de Israel. Isolar em guetos ou quarentena comunidades indesejadas, mesmo se elas forem consideradas subumanas ou perigosas, nunca funcionou na história como solução. Os judeus sabem melhor que ninguém por sua própria história. O próximo estágio contra tais comunidades no passado foram ainda mais horrendos e bárbaros. É difícil dizer o que guarda o futuro para a população de Gaza, confinada em um gueto, posta em quarentena, indesejada e demonizada. Será uma repetição de exemplos históricos funestos ou ainda é possível um destino melhor?

Fausto Wolff, no artigo “Protejam as crianças”, coloca o dedo na ferida ao denunciar que tanto Israel quanto os Estados Unidos têm violado constantemente a Convenção de Genebra, cujos artigos 55 e 56 tratam da proteção que os invasores devem prover para a população civil do país invadido: acomodações, comida, bebida, assistência ambulatória e hospitalar.

O artigo 56 enfatiza a obrigação do poder invasor de, em cooperação com as autoridades locais, providenciar rigorosos padrões higiênicos e fiscalizar bens perecíveis para evitar a propagação de epidemias, adotando medidas de profilaxia. E a todos os médicos e enfermeiras do país ocupado deve ser dada a liberdade de cumprir seus deveres.

Um trecho do artigo “Israel vive paradoxo aos 60 anos”, de Daniela Kresch, é esclarecedor no que se refere a transformação de Israel em um país que trai as suas origens ao reproduzir sobre seus vizinhos os horrores que estão na origem de sua criação: “Para o cientista político Shlomo Zener, os traumas e temores nacionais não podem justificar a severidade no modo como são tratados os palestinos. Para ele, a ocupação da Cisjordânia e de Gaza corrompeu o espírito libertário dos primeiros israelenses, que lutaram para criar um Estado moderno, sem perseguições, que servisse de modelo ético depois do extermínio de 6 milhões de judeus na Segunda Guerra.”.

Psicanalista e professor da Universidade Estadual de Maringá (PR), Raymundo de Lima traça, no artigo “É ‘barbárie’, ‘genocídio’, ‘holocausto’, ou ‘massacre’?”, um perfil bem reconhecível dos que tentam racionalizar a prática do genocídio. Segundo ele, o genocida tende a utilizar mecanismos de defesa psíquica como a racionalização e a intelectualização para justificar o seu ato como de “legítima defesa”, proteção contra o “intruso”. Qualquer similaridade com os argumentos usados por Israel em sua política belicista contra os palestinos não é mera coincidência.

Diz ele: “...ou seja, o outro é sempre visto como ‘perigoso’, ‘inferior’, ‘estrangeiro’, ‘infiel’, ‘selvagem’, ‘coisa’ ou ‘objeto, enfim, o ‘outro’, o ‘diferente’ é sempre considerado um problema para a existência do genocida; como é marcado na sua singularidade, o ‘outro’ não é visto como ser humano total, não é ‘humanizado’ em sua condição de ser existente.”.

Em seu artigo, Lima sustenta, ainda, que o crime de genocídio do Estado ou de qualquer ato de barbárie de grupos extremistas, embora pareçam ser irracionais, na verdade são cometidos em nome de alguma causa “justa”. Ele explica: “O ato monstruoso sempre recorre a uma moral tosca cuja razão cínica satisfaz aos irmãozinhos que compartilham com a mesma crença, que acreditam nas sombras dogmáticas projetadas por um psiquismo esclerosado. Muitas vezes quem pratica o grande massacre se coloca como vítima...”.

Encerro citando o trecho final de “Genocide in Gaza”, no qual Pappe analisa de forma cáustica (e premonitória) os caminhos e descaminhos do holocausto palestino e as alternativas que restam para conter o autoritarismo com que os israelenses conduzem a questão.

Ainda não há outra forma de parar Israel exceto boicote, desinvestimento (NT: retirada de investimentos, participação em sociedades etc.) e sanções. Todos nós deveríamos apoiar tais medidas clara, aberta e incondicionalmente, não importando o que os gurus de nosso mundo nos digam sobre a eficiência ou razão de ser de tais ações. A ONU não interviria em Gaza como faz na África; os ganhadores do prêmio Nobel não se interessarão em defendê-la, como fazem por causas no Sudeste Asiático. O número de pessoas mortas não é estonteante se comparado com outras calamidades, e não é uma história nova - é perigosamente velha e complicada. O único ponto suave dessa máquina de matar são suas linhas de oxigênio com a civilização 'ocidental' e a opinião pública. Ainda é possível perfurá-las e, pelo menos, tornar mais difícil para os israelenses implementar sua estratégia futura de eliminação do povo palestino, ou pela limpeza deles na Cisjordânia, ou pelo genocídio na Faixa de Gaza.

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2 comentários:

Rodrigo disse...

Olá, Barone.

Eu não sabia que a definição legal de genocídio podia ser tão ampla. Normalmente, ela é usada para designar quaisquer ação sistemática de destruição física de um povo, daí meu comentário anterior. Ainda me parece uma palavra demasiado forte, mesmo para uma situação muito cruel. Em todo caso, admito que você tem uma base respeitável para o argumento, e fico contente de tê-lo estimulado a tratar do assunto. Aprendi muito, obrigado.

Um abraço,
R.

Eder Lima disse...

Concordo com o tema nos pontos em que o que Israel comete é crime.

Israel está esmagando a população palestina em Gaza, isso é fato.
Bombas de fósforo, fuzis e mísseis.

Porém o problema lá não é apenas ético ou religioso, é político.
Isso agrava a situação de uma forma com a qual ainda não há precedentes, afinal um grupo terrorista armado é quem assumiu o controle da região politicamente e exige a soberania da Palestina e sua independência.

A situação Palestina já era complicada com o Yasser Arafat no comando, caminhando protegido por seguranças e sua uzzi, agora ficou pior ainda com o Hamas disparando mísseis contra o território de Israel.
Isso só alimenta o que foi comentado no post, que é a retaliação de mão pesada sobre o povo argumentando que é auto-defesa e que o 'inimigo' é desumano.
Talvez genocídio seria a palavra correta, talvez não, pelo peso histórico do que foi o Holocausto, onde não havia 'desculpa' política, não havia retaliação, era pura e simples limpeza étinica.
Infelizmente aquilo é uma guerra por independência política, econômica e religiosa, o que é comum no oriente médio e o lado mais fraco também infelizmente e historicamente é massacrado.
Na região de Darfur tribos e etinias sumiram completamente, povoados foram pulverizados, isso sim é um genocídio, foram mortos apenas por estar lá.
O que Israel faz é um crime de guerra, dos piores, porém historicamente eles são conhecidos por não negociar ou sequer dialogar com terroristas e o Hamas, da forma como é, ainda é um grupo terrorista no poder.
Azar da população que os elegeu e alimentou ainda mais a fúria de Israel.
Agora, por medo ou consentimento, sofrem, e muito, as consequências.
O pior disso são as campanhas, ambos os lados são criminosos para seus opostos, no entando na opinião externa e na maioria, Israel tem o poder de tornar essa convivência pacífica, mas não o faz.
Isso caracteriza genocídio? Sim, mas isso ainda pode se tornar pior, afinal Israel retalha como desculpa, imagina quando eles decidirem simplesmente erradicar o 'problema'?