Relatório da ONU divulgado na segunda-feira concluiu que há indícios de que militares israelenses e militantes de grupos armados palestinos cometeram crimes de guerra e, possivelmente, crimes contra a humanidade durante o conflito na faixa de Gaza entre dezembro e janeiro.
O documento condena o exército israelense e, também, o Hamas - por disparar foguetes contra a população civil israelense. Sim, o Hamas deve ser condenado por atacar a população civil. Ocorre que a desproporção dos ataques perpetrados pelo exército israelense e pelo Hamas é tamanha que não se pode colocar no mesmo patamar que a violência e o terror impostos aos palestinos por um exército profissional, dotado de armamento sofisticado e letal.
Segundo o texto, a operação contra Gaza foi planejada para atingir toda a população em vez de ter como foco os militantes do Hamas. Afirma ainda que declarações de militares israelenses de que o uso desproporcional da força, os ataques à população civil (veja aqui, aqui e aqui) e a destruição de propriedades poderiam ser meios legítimos de atingir objetivos políticos e militares devem ser denunciadas.
Ataques a fábricas de alimentos, sistemas de água e residências comprovam o objetivo de punir os palestinos, segundo o relatório, que cita ainda ataques a uma mesquita em horário de culto e tiros em pessoas que deixavam suas casas com bandeiras brancas nas mãos. O relatório conclui que a privação de acesso a subsistência, emprego e água pode levar a corte a entender que houve crime de perseguição, um crime contra a humanidade. A operação militar resultou na morte de cerca de 1.400 palestinos.
A conclusão da ONU não é novidade, reafirma as denúncias que têm sido feitas desde o início da ação militar promovida por Israel em janeiro: de que os palestinos foram vítimas de ataques indiscriminados que objetivaram espalhar o terror sobre a população civil de modo a "colocá-la em seu devido lugar".
A estratégia é conhecida: forçar a população da maior prisão ao ar livre do mundo ao desespero para, num segundo momento, usar suas reações como pretexto para mais um massacre. Um massacre premeditado, e que começou a ser preparado seis meses antes com vistas às eleições que ocorreram em fevereiro. Como definiu Idelber Avelar em um artigo que expõem de forma clara as verdadeiras intenções de Israel sobre os territórios palestinos ocupados, “no estado sionista, assim como nos EUA, bombardeios às terras árabes rendem votos fáceis.”.
Genocídio
Em janeiro passado, como resultado de um debate com leitores do blog, escrevi um artigo intitulado “O que ocorre em Gaza é genocídio?”. Perguntava, a princípio, comod definir genocídio? O termo foi criado por Raphael Lemkin, um judeu de origem polonesa, em 1944, a partir da junção da raiz grega génos (família, tribo ou raça) e - caedere (Latim - matar). Após o assassinato em massa de judeus, ciganos, testemunhas de jeová, comunistas, homossexuais e prisioneiros de guerra eslavos pelos nazistas, Lemkin iniciou uma campanha pela criação de leis internacionais que definissem e punissem o genocídio. Esta pretensão tornou-se realidade em 1951, com a Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio, da qual o Brasil é signatário.
A Convenção define por genocídio os seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso:
a) Assassinato de membros do grupo; b) Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo.
No meu entender, a política de bombardeio contínuo dos centros urbanos palestinos e de isolamento desta população em guetos é um “atentado grave à integridade física e mental” dos seus habitantes, portanto, deve ser classificado como genocídio.
O acadêmico e escritor palestino-libanês Saree Makdisi afirma que uma geração inteira de palestinos cresce com deficiências físicas e nutricionais geradas por falta de alimentos e alterações emocionais, por viver no cárcere virtual criado pelo bloqueio israelense, que se estende desde junho de 2007.
Em meio à violência, as crianças palestinas são as principais vítimas. Cerca de 50% dos 1,5 milhão de palestinos em Gaza têm até 15 anos de idade. O número de mortos no conflito que se estende desde o fim de dezembro ultrapassa os 700, entre as quais 220 crianças.
Um estudo da Queen"s University revelou que 90% das crianças em Gaza já foram vítimas do uso de gás lacrimogêneo, presenciaram cenas de violência em suas casas ou testemunharam tiroteios e explosões. O estudo demonstra, também, que o risco de desordem emocional em uma criança ferida nessa região se multiplica por quatro. Do mesmo modo, aquelas que presenciaram uma morte têm o risco de estresse pós-traumático multiplicado por 13. “É como se as crianças palestinas de alguma maneira não merecessem as proteções garantidas pela Convenção de Genebra e o Direito Humanitário”, conclui o estudo.
Levantamento feito pelo Gaza Community Mental Health Programme, realizado após a segunda Intifada, em 2000, indica que 70% das crianças palestinas na região não conseguem se concentrar, 96% têm medo do escuro, 35% se isolam e 45% sofrem altos níveis de ansiedade e estresse. Da mesma forma, o bloqueio israelense que se estende há quase dois anos, iniciado quando o grupo islâmico Hamas tomou o controle da área, aprofundou de forma avassaladora às dificuldades econômicas, sociais e sanitárias da população palestina, configurando-se em “submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial”.
É o que retrata reportagem publicada no jornal Folha de S.Paulo, citando o chefe da ONU para assuntos humanitários, John Holmes, segundo quem em março do ano passado, dez meses antes do início dos ataques, a situação do território palestino já era grave. Após percorrer a região, ele relatou "uma miséria que priva os moradores das mais elementares condições de dignidade.".
A reportagem faz um levantamento sombrio das condições de vida na Faixa: “O drama se traduz nos indicadores da região: mais de 80% dos 1,5 milhão de habitantes do território são pobres, e metade da população ativa não tem renda fixa. Dois terços dos cerca de 110 mil empregos que existiam no comércio desapareceram nos últimos anos. O bloqueio de 2007 acirrou a crise. Das 3.900 empresas locais de três anos atrás, sobraram menos de 200... Com o colapso do sistema de esgoto, os dejetos acabam despejados no mar, tornando insalubres as praias mediterrâneas e aniquilando a fonte de lazer preferida da juventude local. Só há eletricidade durante metade do dia no território, que se assemelha em tamanho e população ao município de Guarulhos (SP) - na prática, duas das áreas mais densamente povoadas no mundo, com mais de 4.000 habitantes/km2.”
Estas políticas de esmagamento da população palestina vêm sendo perpetradas há anos e registradas em detalhes por observadores de todo o planeta. No artigo “Genocide in Gaza” (2006), Ilan Pappe – escritor, conferencista sênior no Departamento de Ciência Política da Universidade de Haifa e Presidente do Instituto Touma para Estudos Palestinos em Haifa –esmiúça em detalhes os métodos do terror estatal israelense:
“A estratégia anterior em Gaza foi colocar os palestinos lá como se fosse um gueto, mas isso não está funcionando. A comunidade posta no gueto continua a expressar sua vontade de viver através do lançamento de mísseis primitivos para dentro de Israel. Isolar em guetos ou quarentena comunidades indesejadas, mesmo se elas forem consideradas subumanas ou perigosas, nunca funcionou na história como solução. Os judeus sabem melhor que ninguém por sua própria história. O próximo estágio contra tais comunidades no passado foram ainda mais horrendos e bárbaros. É difícil dizer o que guarda o futuro para a população de Gaza, confinada em um gueto, posta em quarentena, indesejada e demonizada. Será uma repetição de exemplos históricos funestos ou ainda é possível um destino melhor?”
Fausto Wolff, no artigo “Protejam as crianças”, coloca o dedo na ferida ao denunciar que tanto Israel quanto os Estados Unidos têm violado constantemente a Convenção de Genebra, cujos artigos 55 e 56 tratam da proteção que os invasores devem prover para a população civil do país invadido: acomodações, comida, bebida, assistência ambulatória e hospitalar.
“O artigo 56 enfatiza a obrigação do poder invasor de, em cooperação com as autoridades locais, providenciar rigorosos padrões higiênicos e fiscalizar bens perecíveis para evitar a propagação de epidemias, adotando medidas de profilaxia. E a todos os médicos e enfermeiras do país ocupado deve ser dada a liberdade de cumprir seus deveres.”
Um trecho do artigo “Israel vive paradoxo aos 60 anos”, de Daniela Kresch, é esclarecedor no que se refere a transformação de Israel em um país que trai as suas origens ao reproduzir sobre seus vizinhos os horrores que estão na origem de sua criação: “Para o cientista político Shlomo Zener, os traumas e temores nacionais não podem justificar a severidade no modo como são tratados os palestinos. Para ele, a ocupação da Cisjordânia e de Gaza corrompeu o espírito libertário dos primeiros israelenses, que lutaram para criar um Estado moderno, sem perseguições, que servisse de modelo ético depois do extermínio de 6 milhões de judeus na Segunda Guerra.”.
Psicanalista e professor da Universidade Estadual de Maringá (PR), Raymundo de Lima traça, no artigo “É ‘barbárie’, ‘genocídio’, ‘holocausto’, ou ‘massacre’?”, um perfil bem reconhecível dos que tentam racionalizar a prática do genocídio. Segundo ele, o genocida tende a utilizar mecanismos de defesa psíquica como a racionalização e a intelectualização para justificar o seu ato como de “legítima defesa”, proteção contra o “intruso”. Qualquer similaridade com os argumentos usados por Israel em sua política belicista contra os palestinos não é mera coincidência.
Diz ele: “...ou seja, o outro é sempre visto como ‘perigoso’, ‘inferior’, ‘estrangeiro’, ‘infiel’, ‘selvagem’, ‘coisa’ ou ‘objeto’, enfim, o ‘outro’, o ‘diferente’ é sempre considerado um problema para a existência do genocida; como é marcado na sua singularidade, o ‘outro’ não é visto como ser humano total, não é ‘humanizado’ em sua condição de ser existente.”.
Em seu artigo, Lima sustenta, ainda, que o crime de genocídio do Estado ou de qualquer ato de barbárie de grupos extremistas, embora pareçam ser irracionais, na verdade são cometidos em nome de alguma causa “justa”. Ele explica: “O ato monstruoso sempre recorre a uma moral tosca cuja razão cínica satisfaz aos irmãozinhos que compartilham com a mesma crença, que acreditam nas sombras dogmáticas projetadas por um psiquismo esclerosado. Muitas vezes quem pratica o grande massacre se coloca como vítima...”.
Vale também citar o trecho final de “Genocide in Gaza”, no qual Pappe analisa de forma cáustica (e premonitória) os caminhos e descaminhos do holocausto palestino e as alternativas que restam para conter o autoritarismo com que os israelenses conduzem a questão.
“Ainda não há outra forma de parar Israel exceto boicote, desinvestimento (NT: retirada de investimentos, participação em sociedades etc.) e sanções. Todos nós deveríamos apoiar tais medidas clara, aberta e incondicionalmente, não importando o que os gurus de nosso mundo nos digam sobre a eficiência ou razão de ser de tais ações. A ONU não interviria em Gaza como faz na África; os ganhadores do prêmio Nobel não se interessarão em defendê-la, como fazem por causas no Sudeste Asiático. O número de pessoas mortas não é estonteante se comparado com outras calamidades, e não é uma história nova - é perigosamente velha e complicada. O único ponto suave dessa máquina de matar são suas linhas de oxigênio com a civilização 'ocidental' e a opinião pública. Ainda é possível perfurá-las e, pelo menos, tornar mais difícil para os israelenses implementar sua estratégia futura de eliminação do povo palestino, ou pela limpeza deles na Cisjordânia, ou pelo genocídio na Faixa de Gaza.”
Investigações
Em entrevista em Nova York, o líder da comissão responsável pelo relatório da ONU, o juiz sul-africano Richard Goldstone, disse estar otimista quanto à possibilidade de que as recomendações do documento sejam seguidas. A comissão recomenda que o Conselho de Segurança da ONU conceda um prazo de seis meses para que Israel faça uma investigação de possíveis crimes cometidos pelos militares e para que as autoridades palestinas façam o mesmo em relação a ações praticadas por grupos armados.
As investigações dos dois lados devem ser acompanhadas por uma comissão de especialistas em direitos humanos. Caso as partes não realizem a investigação, o relatório afirma que o assunto deve ser levado para o Tribunal Penal Internacional, onde são julgados crimes de guerra e contra a humanidade -Israel, porém, não é signatário do tratado constitutivo do tribunal, o que limitaria a efetividade de suas decisões.
Segundo Goldstone, Israel não cooperou com o relatório e as investigações já conduzidas pelo país não são válidas. "A investigação israelense tem sido conduzida em separado por militares com base nas informações dos seus próprios soldados. É preciso falar com as vítimas e ter transparência." Goldstone disse que, como judeu, ficou "desapontado" com a atuação do país.
O relatório afirma que não há mais espaço para a impunidade. Os representantes da comissão designada para apurar os fatos foram surpreendidos com declarações por parte de vítimas de que, cada vez que um relatório é publicado e nada acontece posteriormente, isso "fortalece Israel e sua convicção de ser intocável".
Da mesma forma, o relatório afirma que os militantes do Hamas cometeram crimes de guerra e possivelmente crimes contra a humanidade ao lançar mísseis contra Israel, sem preocupação de distinguir alvos civis e militares. Os ataques deixaram quatro mortos. "Isso causou terror na população civil israelense, como mostrado pelas altas taxas de traumas psicológicos em comunidades afetadas. Os ataques também levaram a uma erosão das vidas social, cultural e econômica nas comunidades localizadas no sul de Israel.", afirma Goldstone.
Leia mais sobre este tema
- O que ocorre em Gaza é genocídio?
O documento condena o exército israelense e, também, o Hamas - por disparar foguetes contra a população civil israelense. Sim, o Hamas deve ser condenado por atacar a população civil. Ocorre que a desproporção dos ataques perpetrados pelo exército israelense e pelo Hamas é tamanha que não se pode colocar no mesmo patamar que a violência e o terror impostos aos palestinos por um exército profissional, dotado de armamento sofisticado e letal.
Segundo o texto, a operação contra Gaza foi planejada para atingir toda a população em vez de ter como foco os militantes do Hamas. Afirma ainda que declarações de militares israelenses de que o uso desproporcional da força, os ataques à população civil (veja aqui, aqui e aqui) e a destruição de propriedades poderiam ser meios legítimos de atingir objetivos políticos e militares devem ser denunciadas.
Ataques a fábricas de alimentos, sistemas de água e residências comprovam o objetivo de punir os palestinos, segundo o relatório, que cita ainda ataques a uma mesquita em horário de culto e tiros em pessoas que deixavam suas casas com bandeiras brancas nas mãos. O relatório conclui que a privação de acesso a subsistência, emprego e água pode levar a corte a entender que houve crime de perseguição, um crime contra a humanidade. A operação militar resultou na morte de cerca de 1.400 palestinos.
A conclusão da ONU não é novidade, reafirma as denúncias que têm sido feitas desde o início da ação militar promovida por Israel em janeiro: de que os palestinos foram vítimas de ataques indiscriminados que objetivaram espalhar o terror sobre a população civil de modo a "colocá-la em seu devido lugar".
A estratégia é conhecida: forçar a população da maior prisão ao ar livre do mundo ao desespero para, num segundo momento, usar suas reações como pretexto para mais um massacre. Um massacre premeditado, e que começou a ser preparado seis meses antes com vistas às eleições que ocorreram em fevereiro. Como definiu Idelber Avelar em um artigo que expõem de forma clara as verdadeiras intenções de Israel sobre os territórios palestinos ocupados, “no estado sionista, assim como nos EUA, bombardeios às terras árabes rendem votos fáceis.”.
Genocídio
Em janeiro passado, como resultado de um debate com leitores do blog, escrevi um artigo intitulado “O que ocorre em Gaza é genocídio?”. Perguntava, a princípio, comod definir genocídio? O termo foi criado por Raphael Lemkin, um judeu de origem polonesa, em 1944, a partir da junção da raiz grega génos (família, tribo ou raça) e - caedere (Latim - matar). Após o assassinato em massa de judeus, ciganos, testemunhas de jeová, comunistas, homossexuais e prisioneiros de guerra eslavos pelos nazistas, Lemkin iniciou uma campanha pela criação de leis internacionais que definissem e punissem o genocídio. Esta pretensão tornou-se realidade em 1951, com a Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio, da qual o Brasil é signatário.
A Convenção define por genocídio os seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso:
a) Assassinato de membros do grupo; b) Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo.
No meu entender, a política de bombardeio contínuo dos centros urbanos palestinos e de isolamento desta população em guetos é um “atentado grave à integridade física e mental” dos seus habitantes, portanto, deve ser classificado como genocídio.
O acadêmico e escritor palestino-libanês Saree Makdisi afirma que uma geração inteira de palestinos cresce com deficiências físicas e nutricionais geradas por falta de alimentos e alterações emocionais, por viver no cárcere virtual criado pelo bloqueio israelense, que se estende desde junho de 2007.
Em meio à violência, as crianças palestinas são as principais vítimas. Cerca de 50% dos 1,5 milhão de palestinos em Gaza têm até 15 anos de idade. O número de mortos no conflito que se estende desde o fim de dezembro ultrapassa os 700, entre as quais 220 crianças.
Um estudo da Queen"s University revelou que 90% das crianças em Gaza já foram vítimas do uso de gás lacrimogêneo, presenciaram cenas de violência em suas casas ou testemunharam tiroteios e explosões. O estudo demonstra, também, que o risco de desordem emocional em uma criança ferida nessa região se multiplica por quatro. Do mesmo modo, aquelas que presenciaram uma morte têm o risco de estresse pós-traumático multiplicado por 13. “É como se as crianças palestinas de alguma maneira não merecessem as proteções garantidas pela Convenção de Genebra e o Direito Humanitário”, conclui o estudo.
Levantamento feito pelo Gaza Community Mental Health Programme, realizado após a segunda Intifada, em 2000, indica que 70% das crianças palestinas na região não conseguem se concentrar, 96% têm medo do escuro, 35% se isolam e 45% sofrem altos níveis de ansiedade e estresse. Da mesma forma, o bloqueio israelense que se estende há quase dois anos, iniciado quando o grupo islâmico Hamas tomou o controle da área, aprofundou de forma avassaladora às dificuldades econômicas, sociais e sanitárias da população palestina, configurando-se em “submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial”.
É o que retrata reportagem publicada no jornal Folha de S.Paulo, citando o chefe da ONU para assuntos humanitários, John Holmes, segundo quem em março do ano passado, dez meses antes do início dos ataques, a situação do território palestino já era grave. Após percorrer a região, ele relatou "uma miséria que priva os moradores das mais elementares condições de dignidade.".
A reportagem faz um levantamento sombrio das condições de vida na Faixa: “O drama se traduz nos indicadores da região: mais de 80% dos 1,5 milhão de habitantes do território são pobres, e metade da população ativa não tem renda fixa. Dois terços dos cerca de 110 mil empregos que existiam no comércio desapareceram nos últimos anos. O bloqueio de 2007 acirrou a crise. Das 3.900 empresas locais de três anos atrás, sobraram menos de 200... Com o colapso do sistema de esgoto, os dejetos acabam despejados no mar, tornando insalubres as praias mediterrâneas e aniquilando a fonte de lazer preferida da juventude local. Só há eletricidade durante metade do dia no território, que se assemelha em tamanho e população ao município de Guarulhos (SP) - na prática, duas das áreas mais densamente povoadas no mundo, com mais de 4.000 habitantes/km2.”
Estas políticas de esmagamento da população palestina vêm sendo perpetradas há anos e registradas em detalhes por observadores de todo o planeta. No artigo “Genocide in Gaza” (2006), Ilan Pappe – escritor, conferencista sênior no Departamento de Ciência Política da Universidade de Haifa e Presidente do Instituto Touma para Estudos Palestinos em Haifa –esmiúça em detalhes os métodos do terror estatal israelense:
“A estratégia anterior em Gaza foi colocar os palestinos lá como se fosse um gueto, mas isso não está funcionando. A comunidade posta no gueto continua a expressar sua vontade de viver através do lançamento de mísseis primitivos para dentro de Israel. Isolar em guetos ou quarentena comunidades indesejadas, mesmo se elas forem consideradas subumanas ou perigosas, nunca funcionou na história como solução. Os judeus sabem melhor que ninguém por sua própria história. O próximo estágio contra tais comunidades no passado foram ainda mais horrendos e bárbaros. É difícil dizer o que guarda o futuro para a população de Gaza, confinada em um gueto, posta em quarentena, indesejada e demonizada. Será uma repetição de exemplos históricos funestos ou ainda é possível um destino melhor?”
Fausto Wolff, no artigo “Protejam as crianças”, coloca o dedo na ferida ao denunciar que tanto Israel quanto os Estados Unidos têm violado constantemente a Convenção de Genebra, cujos artigos 55 e 56 tratam da proteção que os invasores devem prover para a população civil do país invadido: acomodações, comida, bebida, assistência ambulatória e hospitalar.
“O artigo 56 enfatiza a obrigação do poder invasor de, em cooperação com as autoridades locais, providenciar rigorosos padrões higiênicos e fiscalizar bens perecíveis para evitar a propagação de epidemias, adotando medidas de profilaxia. E a todos os médicos e enfermeiras do país ocupado deve ser dada a liberdade de cumprir seus deveres.”
Um trecho do artigo “Israel vive paradoxo aos 60 anos”, de Daniela Kresch, é esclarecedor no que se refere a transformação de Israel em um país que trai as suas origens ao reproduzir sobre seus vizinhos os horrores que estão na origem de sua criação: “Para o cientista político Shlomo Zener, os traumas e temores nacionais não podem justificar a severidade no modo como são tratados os palestinos. Para ele, a ocupação da Cisjordânia e de Gaza corrompeu o espírito libertário dos primeiros israelenses, que lutaram para criar um Estado moderno, sem perseguições, que servisse de modelo ético depois do extermínio de 6 milhões de judeus na Segunda Guerra.”.
Psicanalista e professor da Universidade Estadual de Maringá (PR), Raymundo de Lima traça, no artigo “É ‘barbárie’, ‘genocídio’, ‘holocausto’, ou ‘massacre’?”, um perfil bem reconhecível dos que tentam racionalizar a prática do genocídio. Segundo ele, o genocida tende a utilizar mecanismos de defesa psíquica como a racionalização e a intelectualização para justificar o seu ato como de “legítima defesa”, proteção contra o “intruso”. Qualquer similaridade com os argumentos usados por Israel em sua política belicista contra os palestinos não é mera coincidência.
Diz ele: “...ou seja, o outro é sempre visto como ‘perigoso’, ‘inferior’, ‘estrangeiro’, ‘infiel’, ‘selvagem’, ‘coisa’ ou ‘objeto’, enfim, o ‘outro’, o ‘diferente’ é sempre considerado um problema para a existência do genocida; como é marcado na sua singularidade, o ‘outro’ não é visto como ser humano total, não é ‘humanizado’ em sua condição de ser existente.”.
Em seu artigo, Lima sustenta, ainda, que o crime de genocídio do Estado ou de qualquer ato de barbárie de grupos extremistas, embora pareçam ser irracionais, na verdade são cometidos em nome de alguma causa “justa”. Ele explica: “O ato monstruoso sempre recorre a uma moral tosca cuja razão cínica satisfaz aos irmãozinhos que compartilham com a mesma crença, que acreditam nas sombras dogmáticas projetadas por um psiquismo esclerosado. Muitas vezes quem pratica o grande massacre se coloca como vítima...”.
Vale também citar o trecho final de “Genocide in Gaza”, no qual Pappe analisa de forma cáustica (e premonitória) os caminhos e descaminhos do holocausto palestino e as alternativas que restam para conter o autoritarismo com que os israelenses conduzem a questão.
“Ainda não há outra forma de parar Israel exceto boicote, desinvestimento (NT: retirada de investimentos, participação em sociedades etc.) e sanções. Todos nós deveríamos apoiar tais medidas clara, aberta e incondicionalmente, não importando o que os gurus de nosso mundo nos digam sobre a eficiência ou razão de ser de tais ações. A ONU não interviria em Gaza como faz na África; os ganhadores do prêmio Nobel não se interessarão em defendê-la, como fazem por causas no Sudeste Asiático. O número de pessoas mortas não é estonteante se comparado com outras calamidades, e não é uma história nova - é perigosamente velha e complicada. O único ponto suave dessa máquina de matar são suas linhas de oxigênio com a civilização 'ocidental' e a opinião pública. Ainda é possível perfurá-las e, pelo menos, tornar mais difícil para os israelenses implementar sua estratégia futura de eliminação do povo palestino, ou pela limpeza deles na Cisjordânia, ou pelo genocídio na Faixa de Gaza.”
Investigações
Em entrevista em Nova York, o líder da comissão responsável pelo relatório da ONU, o juiz sul-africano Richard Goldstone, disse estar otimista quanto à possibilidade de que as recomendações do documento sejam seguidas. A comissão recomenda que o Conselho de Segurança da ONU conceda um prazo de seis meses para que Israel faça uma investigação de possíveis crimes cometidos pelos militares e para que as autoridades palestinas façam o mesmo em relação a ações praticadas por grupos armados.
As investigações dos dois lados devem ser acompanhadas por uma comissão de especialistas em direitos humanos. Caso as partes não realizem a investigação, o relatório afirma que o assunto deve ser levado para o Tribunal Penal Internacional, onde são julgados crimes de guerra e contra a humanidade -Israel, porém, não é signatário do tratado constitutivo do tribunal, o que limitaria a efetividade de suas decisões.
Segundo Goldstone, Israel não cooperou com o relatório e as investigações já conduzidas pelo país não são válidas. "A investigação israelense tem sido conduzida em separado por militares com base nas informações dos seus próprios soldados. É preciso falar com as vítimas e ter transparência." Goldstone disse que, como judeu, ficou "desapontado" com a atuação do país.
O relatório afirma que não há mais espaço para a impunidade. Os representantes da comissão designada para apurar os fatos foram surpreendidos com declarações por parte de vítimas de que, cada vez que um relatório é publicado e nada acontece posteriormente, isso "fortalece Israel e sua convicção de ser intocável".
Da mesma forma, o relatório afirma que os militantes do Hamas cometeram crimes de guerra e possivelmente crimes contra a humanidade ao lançar mísseis contra Israel, sem preocupação de distinguir alvos civis e militares. Os ataques deixaram quatro mortos. "Isso causou terror na população civil israelense, como mostrado pelas altas taxas de traumas psicológicos em comunidades afetadas. Os ataques também levaram a uma erosão das vidas social, cultural e econômica nas comunidades localizadas no sul de Israel.", afirma Goldstone.
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