Nolite te bastardes carborundorum
(Não permita que os bastardos reduzam você a cinzas)
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Uma “ficção social", é como a autora
canadense Margaret Atwood se refere ao seu livro, “O Conto da Aia” (The Handmaid's Tale),
um romance distópico publicado em 1985 cujo pano de fundo é o estabelecimento
de uma teonomia totalitária fundamentalista cristã nos Estados Unidos, em um
futuro próximo. Nesta sociedade marcada pelo patriarcado e pela misogenia, as
mulheres são relegadas ao papel de esposas, empregadas ou procriadoras. Isso
mesmo, àquelas, férteis, são colocadas à disposição de um a elite religiosa
ávida por romper com um ciclo de queda nas taxas de natalidade e repovoar o
país com uma prole pia e obediente.
A história de Atwood é
narrada sob o ponto de vista de Offred, a Aia, cujo diário é estudado por
pesquisadores muitas décadas após os fatos relatados no livro. O nome da protagonista,
por si só, aponta o grau de subjulgação das mulheres nesta distopia: Offred
significa literalmente “do Fred”. Ela é uma procriadora de “propriedade” do seu
Comandante, cujo nome é Fred (no livro há outras aias - Ofglen, Ofwarren, etc,
cada uma de propriedade de um homem influente).
Pode parecer mais uma distopia recheada de visões apocalípticas sobre o
futuro da humanidade. Não é. O livro, tal qual “Submissão”,
de Michel Houellebecq (leia a resenha aqui - https://tinyurl.com/ybcomveh) é
aterrador justamente por trazer em seu bojo sinais de uma sociedade que muitos,
hoje em dia, gostariam de ver implantadas mundo afora, por trazer em seu
contexto os desenhos de um futuro que pode ser delineado hoje diante do avanço do
obscurantismo religioso, seja de matriz islâmica ou cristã. Aliás, a regra que Atwood adotou ao escrever o livro foi que tudo precisava ter
um antecedente real.
As mulheres da República de Gilead (o
nome da cidade, país, território onde se passa a trama) usam roupas e cores
prescritas pela sua posição na sociedade: vermelho para as aias, azul para as
mulheres casadas, verde para as Marthas (empregadas dos líderes), marrom para
as Tias (fundamentalistas religiosas responsáveis pela doutrinação das mulheres
à nova realidade) . "Organizar pessoas de acordo com o que elas vestem é
uma vocação humana muito, muito antiga", diz Atwood. Data do primeiro
código legal conhecido, o Código de Hamurabi, que dispunha, por exemplo, que
"apenas damas aristocráticas tinham o direito de usar véus". "Se
uma escrava fosse apanhada usando um véu, a pena era a morte. Usar o véu
significava fingir ser quem ela não era."
O traje da Aia (mulheres destinadas a
procriação) tem várias fontes (véus e toucas da era vitoriana, capuzes de
freiras). A visita de Atwood ao Afeganistão –durante a qual ela usou um
chador–, em 1978, também foi uma influência.
Todos esses códigos de vestimenta –como
o uso da estrela de Davi amarela pelos judeus e de um triângulo rosa pelos
homossexuais no nazismo– eram formas de "identificar, controlar
pessoas". "É fácil perceber de imediato quem aquela pessoa é."
No Canadá, o vermelho das Aias foi
usado para os uniformes de prisioneiros de guerra, acrescenta Atwood,
"porque é bem visível na neve". O vermelho também veio da iconografia
cristã do final da era medieval e começo do Renascimento. "A Virgem Maria
sempre usava azul, e Maria Madalena, vermelho".
Em Gilead os fins justificam os meios;
vemos isso quando a Aia Janine tem um bebê e não consegue aceitar que não pode
ficar com a criança. "Há muitas
utopias e distopias de base econômica, mas essa vai direto à raiz absoluta:
quantas pessoas existirão em uma sociedade? Como essas pessoas serão
concebidas?" Tiranos como Hitler e Ceausescu ditaram regras para a
fertilidade em seus países e trataram como criminosos quem não as cumprissem.
"Não foi por acidente que Napoleão proibiu o aborto. Ele desejava que as
mulheres tivessem filhos para que não faltassem soldados."
As Aias são forçadas a ter filhos para
outras mulheres. Quando uma junta militar assumiu o poder na Argentina, em
1976, até 500 crianças e recém-nascidos "desapareceram" – foram
adotados por militares e policiais. Na Austrália e no Canadá, centenas de
milhares de crianças indígenas foram separadas à força de suas famílias.
"A situação provavelmente era apresentada como 'nossa, estamos dando uma
oportunidade a essas crianças. Elas vão à escola!' Seria algo assim."
Ao considerar seus problemas de
fertilidade, a República de Gilead não leva em conta a outra metade da equação:
os homens. "A Tia Lydia diz que as mulheres é que são estéreis. Por
séculos e séculos, era isso que as pessoas achavam." Henrique 8º não
parava de trocar de mulher (e de religião de Estado), aponta Atwood.
No livro, o médico que ajuda Offred
sabe que as coisas não são assim. Serena Joy – a esposa do Comandante Fred -
também, e decide que Offred [encarregada de engravidar por ela] pode se servir
de um amante. "É uma das coisas de que Ana Bolena foi acusada – fazer sexo
com seu irmão para gerar uma criança", diz.
Atwood pesquisou movimentos de
resistência na Segunda Guerra Mundial. Um amigo seu foi da Resistência francesa
e ajudou a tirar da França britânicos que haviam escapado de aviões abatidos.
"O trabalho dele era entrevistá-los para garantir que não fossem alemães
se fazendo passar por britânicos. Ele lhes perguntava de onde vinham,
resultados de futebol, coisas assim. Se considerasse que eram alemães, eram
fuzilados. Sem mais".
Ela também conversou com resistentes da
Holanda e da Polônia. "Muita gente não sobreviveu." Ela menciona as
integrantes do grupo Rosa Branca, pegas distribuindo panfletos contra o nazismo
e executadas, e as espiãs britânicas, que às vezes operavam também como
assassinas. Ter mulheres como agentes, diz Atwood, é uma técnica usada por
movimentos de resistência e extremistas islâmicos, e os trajes das Aias são
convenientes: "Veja quantos lugares onde esconder coisas. Mangas largas!
Meias! Ninguém vai olhar."
Mas como as mulheres de uma sociedade
ocidental moderna se deixaram subjugar deste modo? A história está repleta de
exemplos de como sociedades inteiras fizeram vistas grossas para o avanço do fascismo
e se viram enredadas em suas teias com consequências aterradoras. O advento do
fascismo europeu nos anos 30, a revolução cultural na China, a guinada ao
islamismo no Irã nos anos 70 são alguns exemplos recentes.
“Houve passeatas, é claro, muitas mulheres e alguns homens. Mas
foram menores do que se teria imaginado. Creio que as pessoas estavam com medo.
E quando tornou-se de conhecimento público que a polícia ou o exército, ou
fossem lá quem fossem, abririam fogo quase que tão logo quaisquer das passeatas
começassem, as passeatas pararam. Algumas coisas foram explodidas, agências de
correios, estações de metrô. Mas não se podia nem ter certeza de quem estava fazendo
isso. Poderia ter sido o exército, para justificar as buscas via computador e
as outras, de porta em porta.
Não fui a nenhuma das passeatas. Luke disse que seria inútil e que
eu tinha que pensar a respeito deles, minha família, ele e ela. Pensei mesmo em
minha família. Comecei a fazer mais tarefas domésticas, cozinhar mais. Tentava
não chorar na hora das refeições. Àquela altura eu havia começado a chorar, sem
mais nem menos, e a sentar ao lado da janela do quarto, olhando fixo para fora.
Não conhecia muitos dos vizinhos, e quando nos encontrávamos, lá fora na rua, éramos
cuidadosos de não trocar nada além dos cumprimentos habituais. Ninguém queria
ser delatado, por deslealdade.”, diz Ofrred.
Este medo, este conformismo que faz o totalitarismo se erguer diante
de nós como se não fossemos capazes de detê-lo não é ficção. Na Alemanha do pós-guerra,
muitos alemães sustentaram que não sabiam da carnificina promovida contra
judeus, esquerdistas, deficientes, ciganos, homossexuais, etc. Hoje, ainda, parte
significativa da sociedade brasileira se nega a aceitar os terrores promovidos
pela ditadura militar.
“Não quero dor. Não quero ser uma dançarina, com os pés no ar, minha
cabeça um retângulo sem rosto de pano branco. Não quero ser uma boneca
dependurada no Muro, não quero ser um anjo sem asas. Quero continuar vivendo,
de qualquer forma que seja. Renuncio a meu corpo voluntariamente, para
submetê-lo ao uso de outros. Eles podem fazer o que quiserem comigo. Sou abjeta.
Sinto, pela primeira vez, o verdadeiro poder deles."
A obra, adaptada para a TV pela plataforma de streaming Hulu, está em
sua segunda temporada.
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