Semana On

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Submissão - Michel Houellebecq


A palavra islã significa submissão a Alá, submissão à sua vontade. O termo deriva da raiz árabe “Salam” que significa paz, pureza, submissão, obediência, etc. No sentido religioso, Islam remete à “submissão voluntária à vontade de Deus e obediência à sua Lei”. A relação entre o sentido original e o religioso da palavra é forte e evidente, mais ainda quando pensamos a influência do islamismo sobre o mundo ocidental sob a ótica de “Submissão”, livro do romancista, poeta e ensaísta francês Michel Houellebecq, lançado em janeiro de 2015, quase ao mesmo tempo em que terroristas islâmicos invadiram o jornal humorístico Charlie Hebdo, matando 12 pessoas e deixando 11 feridas.

A tragédia lançou potentes holofotes sobre a questão de fundo e tema central de “Submissão”: a possibilidade de um islamismo político, fortalecido pelo enfraquecimento da eterna disputa entre esquerda e direita europeias, chegar ao poder.

Cenário improvável? Nem tanto. Hoje, 10% da população francesa professa a fé islâmica. Em 2022, no futuro imaginado por Houellebecq, esse número torna-se expressivamente maior.

Na guerra pela demografia, segundo um dos personagens do livro, as grandes massas que se reconhecem numa das três religiões do Livro Sagrado, entre os quais os valores patriarcais se mantiveram, têm mais filhos que os casais ateus ou agnósticos, oriundos de um humanismo ateu, sobre o qual repousa o ‘viver juntos’ laico, que, segundo a obra, está condenado a curto prazo, pois a percentagem da população monoteísta está fadada a aumentar rapidamente, especialmente no caso da população muçulmana.

“O individualismo liberal devia triunfar na medida em que se contentasse em dissolver essas estruturas intermediárias que eram as pátrias, as corporações, as castas, mas, ao atacar essa estrutura última que era a família, e portanto a demografia, assinalaria seu fracasso final... A chegada maciça de populações imigrantes impregnadas de uma cultura tradicional ainda marcada pelas hierarquias naturais, pela submissão da mulher e pelo respeito devido aos mais velhos constituía uma chance histórica para o rearmamento moral e familiar da Europa, abria a perspectiva de uma nova idade do ouro para o velho continente. Ás vezes estas populações eram cristãs; mas via de regra eram, devia-se reconhecer, muçulmanas.”, afirma uma passagem de “Submissão.

Na trama, ao fim do segundo mandato fictício de François Hollande, a França se encontra mergulhada em tal caos institucional que o tradicional Partido Socialista (PS), o partido do presidente, está fora do segundo turno, e a disputa se polariza entre a favorita Frente Nacional de Marine Le Pen e a fictícia Irmandade Muçulmana, do também fictício candidato Mohammed Ben Abbes.

Para impedir a vitória da ultradireita de Le Pen, os socialistas do PS acertam uma coligação com o partido muçulmano aceitando algumas medidas inesperadas: a restrição do ensino público universal até os 12 anos e a privatização de todas as universidades.

A Sorbonne, financiada pela abundante riqueza do novo aliado – a Arábia Saudita - torna-se uma instituição muçulmana oferecendo educação baseada na religião, e todos os que não partilham da mesma fé são compulsoriamente aposentados.

"A esquerda sempre tivera essa capacidade de fazer com que fossem aceitas reformar antissociais que teriam sido vigorosamente rejeitadas se viessem da direita", afirma um dos personagens da obra.

Os meandros que levam a vitória de Abbes expõe as entranhas mais carcomidas da democracia representativa. O jogo de alianças, o vale tudo pelo poder, inclusive o abandono das mais caras bandeiras e convicções. Além disso, Houellebecq faz uma leitura da reação da juventude diante da derrocada dos partidos e das utopias. Em determinado momento o autor diz: “Ben Abbes sempre evitara comprometer-se com a esquerda anticapitalista; a direita liberal ganhara a ‘batalha das ideias’, ele entendera perfeitamente isso, os jovens tinham se tornado empreendedores, e o caráter insuperável da economia de mercado era, agora, unanimemente admitido. Mas, sobretudo, o verdadeiro lance de gênio do líder muçulmano foi entender que as eleições não se disputariam no terreno da economia, e sim no dos valores”.

“Trata-se de uma avaliação que nos serve para enxergar e problematizar corridas eleitorais que se desenvolvem hoje no mundo”, avalia Alexandre Pilati, professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília (UNB). “O modelo econômico capitalista relega o debate acerca da emancipação política das classes subalternas a um plano secundário e distante, que cheira a anátema. Questões que envolvem valores cada vez mais definem a aparência do debate político das democracias burguesas, fazendo-se como determinantes em detrimento da essência da história, ou seja, a luta de classes”.

Mas não é esta zona de conflito, cujo palco é a democracia representativa e, os atores bufos, os representantes de uma direita e uma esquerda cada vez mais homogêneas que me chama a atenção na obra de Houellebecq. O que se destaca, com contornos, preocupantes, é a ideia de que muitos de nós cederíamos de bom grado espaço para ideias retrógradas caso estas fossem estabelecidas dentro do jogo democrático, dentro da disputa formal pelo poder.

É exatamente esta a postura do protagonista, François, professor de literatura na Sorbonne, um descrente de tudo, dos laços afetivos duradouros à social-democracia e ao chamado "humanismo". François acompanha o desenlace político enquanto tenta encontrar razão para uma existência cujo sentido ele não percebe.

Com a chegada dos muçulmanos ao poder, a nova realidade se faz sentir. Acaba o desemprego, porque as mulheres devem viver em casa. Aumenta o orçamento para auxílio-moradia, mas diminui o da educação. Os petrodólares inundam as escolas e universidades, a Sorbonne transforma-se em uma Universidade Islâmica sob o patrocínio saudita. Lá, o véu torna-se obrigatório, o pensamento vigiado.

Um colega medíocre se converte à nova religião, adota a poligamia, agora estimulada, e com isso ganha o triplo do salário. François é induzido a se aposentar, precocemente.

Meses adiante, é convidado a voltar à universidade. A proposta vem de um nietzschiano, carreirista e já convertido (a mulher mais nova tem 15 anos e usa camiseta da Hello Kitty), agora no poder. Oferece a François seu livro "Dez Questões sobre o Islã", em que concilia a defesa das ideias muçulmanas com a teoria da seleção natural, com a moderna ecologia, com a visão elitista de Nietzsche.

François acompanha tudo com a mesma indiferença explícita, amoral, numa neutralidade chocante que desemboca na aceitação passiva das mudanças. Nem tão passiva assim, já que ele parece ceder diante da tentação de um ótimo rendimento e da possibilidade da poligamia.

“O sentido de submissão é, para a consciência do mundo moderno, tudo de mais reprovável que pode haver. O pressuposto principal do Ocidente é a liberdade, e a luta por ela é a mais digna possível”, afirma Luis Augusto Fischer, professor de literatura da UFRGS. É exatamente esta ideia de submisso que mais choca na obra de Houellebecq.

O projeto gráfico em preto e dourado da editora Alfaguara traz na capa a inscrição “O livro mais polêmico do ano”. Talvez mais justiça à obra seja o comentário de Emmanuel Carrère, feito para o Le Monde – ambos, escritor e jornal, alinhados à esquerda: “Se há qualquer um hoje em dia, não só na literatura francesa como na mundial, que reflita sobre a enorme mutação em curso que todos nós sentimos e não sabemos como analisar, esse escritor é Houellebecq.”

A mutação em questão tem a ver com um mundo multicultural cujo centro é a Europa. É essa falta de compreensão de todos em relação a todos que é explorada com maestria em Submissão. O desnorteio dos personagens é o mesmo dos governos e das sociedades europeias diante da construção de uma nova identidade a partir da profunda influência que populações originárias da África, da Ásia e do Oriente Médio lhes imputaram como consequência direta dos processos de colonialismo.

Na obra de Houellebecq, a solução para esta encruzilhada contemporânea, para a angústia ocidental, estaria na aceitação – ou melhor, na submissão – de um ideal metafísico amparado na religião, ainda que tal religião seja tirânica e contrária a vários dos valores que fizeram o Ocidente.

O que mais assusta na perspectiva proposta por Houellebecq é que, contra a liberdade sem perspectivas do Ocidente, a submissão islâmica diante de Alá pode agradar a mais pessoas do que se poderia imaginar.

“É a submissão”, disse suavemente Rediger. “A ideia assombrosa e simples, jamais expressada antes com essa força, de que o auge da felicidade humana reside na submissão mais absoluta.”

“E eu nada teria do que me lamentar”, afirma François encerrando o livro.

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Se quer saber o que venho lendo desde 2009, confira o link a seguir. Lá você confere minha lista de leituras e algumas resenhas mais aprofundadas. - http://tinyurl.com/ny6cjfw

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