“Vida! Escolhemos uma bela vida. Ninguém mais queria morrer bem, todos queriam viver bem. O fato de que não tinha pão para todo mundo é outra história…”
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O debate
sobre as ideias fundadoras da esquerda, dos valores socialistas, da utopia
comunista estão soterradas hoje sob uma discussão rasteira. Esquerdistas
defendem modelos stalinistas como se fossem o único modus operandi possível.
Direitistas condenam qualquer ação de fundo humanista, inclusivo, e libertário
como se fossem articulações de um bando sanguinário pronto a assaltar e dominar
o Estado para guiar o “homem, com mão de ferro, rumo a felicidade”.
O debate está
contaminado e o próprio tema perdido em meio a falta de informação, a
ingenuidade e a má-fé de ambos os lados.
Por isso
mesmo, livros como “O fim do homem soviético”, da escritora bielorrussa
Svetlana Aleksiévitch - vencedora do Prêmio Nobel da Literatura em 2015 – são
tão importantes. São importantes especialmente pelo desconforto que causam aos
dois lados da trincheira. Há, à direita, quem imagine que o livro seja um
líbelo contra o comunismo. Há, à esquerda, quem sustente que seja uma defesa de
fé do chamado socialismo real. E vice-versa.
“O Fim do
Homem Soviético” é um
estudo panorâmico de vidas comuns afetadas pelo desmoronamento do sistema
soviético, com base em centenas de extensas entrevistas e conversas gravadas
entre 1991 e 2012.
O título
original – “Vremia Sekond Hend
[Época do second-hand]” – faz referência
à confusão e ao senso de deslocamento provocados pelo colapso, como
Aleksiévitch explica na introdução. O trecho a seguir, em especial, desenha a
realidade que se apresentou aos ex-soviéticos, embriagados pela almejada
liberdade, esmagados por uma realidade tão cruel quanto a falta dela:
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“O país se entupiu de bancos e comércio de rua.
Surgiram mercadorias muito diferentes. Não mais botas grosseiras e vestidos de
velhinha, mas coisas com que nós sempre tínhamos sonhado: jeans, casacos
forrados, lingerie e louça de qualidade… Tudo colorido, bonito. As coisas
soviéticas eram cinza, ascéticas, pareciam artefatos de guerra. As bibliotecas
e os teatros ficaram vazios. Foram substituídos por feiras e lojas. Todos
queriam a felicidade, e agora mesmo. Como crianças, descobriam um novo mundo…
Não desmaiavam mais nos supermercados… Um rapaz que eu conhecia começou um
negócio. Ele me contou que na primeira vez trouxe mil latas de café-solúvel:
levaram tudo em uns dois dias. Comprou 100 aspiradores de pó: também limparam
tudo na mesma hora. Casacos, blusas, todo tipo de coisa: passe para cá! Todo
mundo trocou de roupa, de sapato. Substituíram os eletrodomésticos e os móveis.
Reformaram as datchas… Quiseram
construir cercas e telhados bonitinhos… Às vezes eu e meus amigos começamos a
relembrar e quase morremos de rir… Que maluquice! As pessoas estavam
completamente empobrecidas. Precisávamos aprender tudo…
Na época soviética, era permitido ter muitos livros,
mas não um carro caro e uma casa. E nós aprendemos a nos vestir bem, a cozinhar
coisas saborosas, beber suco e tomar iogurte de manhã… Até então eu desprezava
o dinheiro, nem sabia o que era isso. Em nossa família, ninguém podia falar de
dinheiro. Era vergonhoso. Crescemos num país em que o dinheiro não existia,
pode‑se dizer. Eu recebia meus 120 rublos como todo mundo, e era o bastante. O
dinheiro veio com a perestroika. No
lugar de ‘O nosso futuro é o comunismo’, faixas de ‘Compre! Compre!’ por todos
os lados. Se quiser viajar, viaje. Dinheiro virou sinônimo de liberdade. Isso
mexeu com todo mundo. Os mais fortes e agressivos abriram um negócio.
Esqueceram Lênin e Stálin. E assim nós nos salvamos de uma guerra civil, senão
de novo teríamos ‘brancos’ e ‘vermelhos’. ‘Nós’ e ‘os outros’. Em vez de
sangue, coisas… Vida! Escolhemos uma bela vida. Ninguém mais queria morrer bem,
todos queriam viver bem. O fato de que não tinha pão para todo mundo é outra
história…”.
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Parte das vozes registradas por Svetlana pertence a uma geração (na qual ela própria
se insere) tão imersa no modo de vida soviético que o repentino desaparecimento
da União Soviética as obrigou a sair em busca de uma nova identidade, sem
garantia de encontrá-la:
“Busquei aquelas pessoas que se apegaram com todas
as forças ao ideal, absorveram esse ideal de tal forma que não podiam se desprender
dele: o Estado tornou-se seu universo, substituiu tudo nelas, até a própria
vida. Elas não conseguiram abandonar a Grande História, dar adeus a ela, serem
felizes de outra maneira…”
São pessoas que foram incapazes de se adaptar ao modo de
vida de um capitalismo predatóreio, no qual não havia nenhuma grande ideia,
nenhum objetivo coletivo definido – apenas uma existência privada, mas repleta
de um individualismo doentio.
A nova Rússia lhes é estranha.
Anna M., uma arquiteta que cresceu num orfanato de Moscou,
tem apenas 59 anos, mas não consegue (ou talvez não queira) se adaptar à nova
Rússia plutocrata.
“Por todo lado eu só escuto o seguinte: a vida é
uma luta, o mais forte vence o mais fraco, e isso é uma lei natural. É preciso
desenvolver chifres e cascos, uma couraça de ferro, ninguém precisa dos fracos.
Por todo lado as pessoas se debatendo, se debatendo, se debatendo. Isso é
fascismo, isso é a suástica! Eu fico em choque… e desesperada!
Isso não é para mim. Não é para mim isso! [Silêncio]”
Para as pessoas dessa geração, os anos 90 foram uma
catástrofe. Elas perderam tudo: um modo de vida conhecido, um sistema econômico
que garantia segurança, uma ideologia que lhes dava certezas morais e talvez
alguma esperança, um império gigantesco com status de superpotência e uma
identidade que sobrepujava divisões étnicas, além do orgulho nacional pelas
conquistas culturais, científicas e tecnológicas.
Muitos falam da humilhação que sofreram na década de 90,
quando a inflação lhes privou das economias que haviam feito a vida inteira e
mal podiam se alimentar com os salários do recém instalado capitalismo. Um
projetista se lembra de que passou a vender as bitucas de cigarro que os pais
de sua mulher, professores universitários, coletavam nas ruas. O colapso do
padrão de vida minou a confiança popular na “liberdade” e na “democracia”
capitalista – termos abstratos, que as pessoas não compreendiam, a não ser como
o acesso a bens materiais. Um dos entrevistados mais jovens, e não
identificados, explica:
“Todos sonhavam com uma nova
vida… Sonhavam… Sonhavam que apareciam montes de kolbassá (embutido
russo que é um paralelo a prosperidade e fartura) nas prateleiras, a preços soviéticos, e que os membros do
Politburo pegariam uma fila comum para comprar aquilo. Kolbassá é o ponto de partida. Temos um amor existencial pela kolbassá…”
Mas há também aquelas pessoas que, cansadas do
totalitarismo soviético, foram as ruas por Yeltsin – ou viram seus pais fazê-lo
- por um justo sonho de liberdade após décadas de vidas vigiadas e moldadas ao
interesse do Estado, que encontraram no novo modelo o espaço adequado para
progredirem, mas a um peço muito alto no que se refere a perda da empatia.
Um dos melhores capítulos do livro, “Sobre a solidão que é
muito parecida com a felicidade” – Svetlana
dá voz a história de Alissa, uma publicitária de 35 anos. O trecho
coloca em relevo a divisão moral entre aqueles que, como a publicitária, são
jovens e fortes o bastante para vencer no mundo moscovita dos negócios, e a intelligentsia
soviética, gente como os pais dela, professores de uma escola em Rostov, ainda
agarrados aos valores de outrora. Depois de anos de farra na companhia dos
oligarcas – evidentemente auxiliada por sua bela aparência –, Alissa quer se
estabelecer, determinada a fazer dinheiro, e a fazê-lo sozinha, sem a ajuda dos
homens:
“Eu odeio quem cresceu na pobreza, com uma
mentalidade ‘de pobre’, o dinheiro para eles significa tanta coisa, que não dá
para confiar neles. Não gosto dos pobres, dos humilhados e ofendidos [referência
ao romance de Dostoiévski]… Não confio neles!”
Dessas páginas emerge um quadro da Rússia contemporânea
extremamente sombrio, uma paisagem inóspita habitada por pobres, deprimidos,
humilhados, por prejudicados e amargurados, por refugiados sem-teto de guerras
étnicas, por criminosos e assassinos – um lugar sem muito espaço para a
esperança ou o amor.
Em 2015 mídia russa, sob controle do Estado plutocrata,
reagiu à notícia do Nobel para Aleksiévitch com uma avalanche de impropérios,
protestando por ela não ser uma escritora de fato, só agraciada por suas visões
anti-Putin. Foi uma reação que ecoou ocasiões anteriores em que o prêmio foi
concedido a escritores russos conhecidos por suas opiniões antissoviéticas:
Ivan Bunin, em 1933; Boris Pasternak, em 1958; Aleksandr Soljenítsin, em 1970;
e Joseph Brodsky, em 1987.
Svetlana Alexijevich se encaixa neste padrão. É o tipo de escritora que não agradaria soviéticos e nem plutocratas.
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