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sábado, 1 de julho de 2017

O fim do homem soviético - Svetlana Alexijevich


Vida! Escolhemos uma bela vida. Ninguém mais queria morrer bem, todos queriam viver bem. O fato de que não tinha pão para todo mundo é outra história…
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O debate sobre as ideias fundadoras da esquerda, dos valores socialistas, da utopia comunista estão soterradas hoje sob uma discussão rasteira. Esquerdistas defendem modelos stalinistas como se fossem o único modus operandi possível. Direitistas condenam qualquer ação de fundo humanista, inclusivo, e libertário como se fossem articulações de um bando sanguinário pronto a assaltar e dominar o Estado para guiar o “homem, com mão de ferro, rumo a felicidade”.

O debate está contaminado e o próprio tema perdido em meio a falta de informação, a ingenuidade e a má-fé de ambos os lados.

Por isso mesmo, livros como “O fim do homem soviético”, da escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch - vencedora do Prêmio Nobel da Literatura em 2015 – são tão importantes. São importantes especialmente pelo desconforto que causam aos dois lados da trincheira. Há, à direita, quem imagine que o livro seja um líbelo contra o comunismo. Há, à esquerda, quem sustente que seja uma defesa de fé do chamado socialismo real. E vice-versa.
“O Fim do Homem Soviético” é um estudo panorâmico de vidas comuns afetadas pelo desmoronamento do sistema soviético, com base em centenas de extensas entrevistas e conversas gravadas entre 1991 e 2012.

O título original – “Vremia Sekond Hend [Época do second-hand]” – faz referência à confusão e ao senso de deslocamento provocados pelo colapso, como Aleksiévitch explica na introdução. O trecho a seguir, em especial, desenha a realidade que se apresentou aos ex-soviéticos, embriagados pela almejada liberdade, esmagados por uma realidade tão cruel quanto a falta dela: 

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“O país se entupiu de bancos e comércio de rua. Surgiram mercadorias muito diferentes. Não mais botas grosseiras e vestidos de velhinha, mas coisas com que nós sempre tínhamos sonhado: jeans, casacos forrados, lingerie e louça de qualidade… Tudo colorido, bonito. As coisas soviéticas eram cinza, ascéticas, pareciam artefatos de guerra. As bibliotecas e os teatros ficaram vazios. Foram substituídos por feiras e lojas. Todos queriam a felicidade, e agora mesmo. Como crianças, descobriam um novo mundo… Não desmaiavam mais nos supermercados… Um rapaz que eu conhecia começou um negócio. Ele me contou que na primeira vez trouxe mil latas de café-solúvel: levaram tudo em uns dois dias. Comprou 100 aspiradores de pó: também limparam tudo na mesma hora. Casacos, blusas, todo tipo de coisa: passe para cá! Todo mundo trocou de roupa, de sapato. Substituíram os eletrodomésticos e os móveis. Reformaram as datchas… Quiseram construir cercas e telhados bonitinhos… Às vezes eu e meus amigos começamos a relembrar e quase morremos de rir… Que maluquice! As pessoas estavam completamente empobrecidas. Precisávamos aprender tudo…
Na época soviética, era permitido ter muitos livros, mas não um carro caro e uma casa. E nós aprendemos a nos vestir bem, a cozinhar coisas saborosas, beber suco e tomar iogurte de manhã… Até então eu desprezava o dinheiro, nem sabia o que era isso. Em nossa família, ninguém podia falar de dinheiro. Era vergonhoso. Crescemos num país em que o dinheiro não existia, pode‑se dizer. Eu recebia meus 120 rublos como todo mundo, e era o bastante. O dinheiro veio com a perestroika. No lugar de ‘O nosso futuro é o comunismo’, faixas de ‘Compre! Compre!’ por todos os lados. Se quiser viajar, viaje. Dinheiro virou sinônimo de liberdade. Isso mexeu com todo mundo. Os mais fortes e agressivos abriram um negócio. Esqueceram Lênin e Stálin. E assim nós nos salvamos de uma guerra civil, senão de novo teríamos ‘brancos’ e ‘vermelhos’. ‘Nós’ e ‘os outros’. Em vez de sangue, coisas… Vida! Escolhemos uma bela vida. Ninguém mais queria morrer bem, todos queriam viver bem. O fato de que não tinha pão para todo mundo é outra história…”.

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Parte das vozes registradas por Svetlana pertence a uma geração (na qual ela própria se insere) tão imersa no modo de vida soviético que o repentino desaparecimento da União Soviética as obrigou a sair em busca de uma nova identidade, sem garantia de encontrá-la:

“Busquei aquelas pessoas que se apegaram com todas as forças ao ideal, absorveram esse ideal de tal forma que não podiam se desprender dele: o Estado tornou-se seu universo, substituiu tudo nelas, até a própria vida. Elas não conseguiram abandonar a Grande História, dar adeus a ela, serem felizes de outra maneira…”

São pessoas que foram incapazes de se adaptar ao modo de vida de um capitalismo predatóreio, no qual não havia nenhuma grande ideia, nenhum objetivo coletivo definido – apenas uma existência privada, mas repleta de um individualismo doentio.
A nova Rússia lhes é estranha.

Anna M., uma arquiteta que cresceu num orfanato de Moscou, tem apenas 59 anos, mas não consegue (ou talvez não queira) se adaptar à nova Rússia plutocrata.

“Por todo lado eu só escuto o seguinte: a vida é uma luta, o mais forte vence o mais fraco, e isso é uma lei natural. É preciso desenvolver chifres e cascos, uma couraça de ferro, ninguém precisa dos fracos. Por todo lado as pessoas se debatendo, se debatendo, se debatendo. Isso é fascismo, isso é a suástica! Eu fico em choque… e desesperada! Isso não é para mim. Não é para mim isso! [Silêncio]”

Para as pessoas dessa geração, os anos 90 foram uma catástrofe. Elas perderam tudo: um modo de vida conhecido, um sistema econômico que garantia segurança, uma ideologia que lhes dava certezas morais e talvez alguma esperança, um império gigantesco com status de superpotência e uma identidade que sobrepujava divisões étnicas, além do orgulho nacional pelas conquistas culturais, científicas e tecnológicas.

Muitos falam da humilhação que sofreram na década de 90, quando a inflação lhes privou das economias que haviam feito a vida inteira e mal podiam se alimentar com os salários do recém instalado capitalismo. Um projetista se lembra de que passou a vender as bitucas de cigarro que os pais de sua mulher, professores universitários, coletavam nas ruas. O colapso do padrão de vida minou a confiança popular na “liberdade” e na “democracia” capitalista – termos abstratos, que as pessoas não compreendiam, a não ser como o acesso a bens materiais. Um dos entrevistados mais jovens, e não identificados, explica:

Todos sonhavam com uma nova vida… Sonhavam… Sonhavam que apareciam montes de kolbassá (embutido russo que é um paralelo a prosperidade e fartura) nas prateleiras, a preços soviéticos, e que os membros do Politburo pegariam uma fila comum para comprar aquilo. Kolbassá é o ponto de partida. Temos um amor existencial pela kolbassá…”

Mas há também aquelas pessoas que, cansadas do totalitarismo soviético, foram as ruas por Yeltsin – ou viram seus pais fazê-lo - por um justo sonho de liberdade após décadas de vidas vigiadas e moldadas ao interesse do Estado, que encontraram no novo modelo o espaço adequado para progredirem, mas a um peço muito alto no que se refere a perda da empatia.

Um dos melhores capítulos do livro, “Sobre a solidão que é muito parecida com a felicidade” – Svetlana dá voz a história de Alissa, uma publicitária de 35 anos. O trecho coloca em relevo a divisão moral entre aqueles que, como a publicitária, são jovens e fortes o bastante para vencer no mundo moscovita dos negócios, e a intelligentsia soviética, gente como os pais dela, professores de uma escola em Rostov, ainda agarrados aos valores de outrora. Depois de anos de farra na companhia dos oligarcas – evidentemente auxiliada por sua bela aparência –, Alissa quer se estabelecer, determinada a fazer dinheiro, e a fazê-lo sozinha, sem a ajuda dos homens:

“Eu odeio quem cresceu na pobreza, com uma mentalidade ‘de pobre’, o dinheiro para eles significa tanta coisa, que não dá para confiar neles. Não gosto dos pobres, dos humilhados e ofendidos [referência ao romance de Dostoiévski]… Não confio neles!”

Dessas páginas emerge um quadro da Rússia contemporânea extremamente sombrio, uma paisagem inóspita habitada por pobres, deprimidos, humilhados, por prejudicados e amargurados, por refugiados sem-teto de guerras étnicas, por criminosos e assassinos – um lugar sem muito espaço para a esperança ou o amor.

Em 2015 mídia russa, sob controle do Estado plutocrata, reagiu à notícia do Nobel para Aleksiévitch com uma avalanche de impropérios, protestando por ela não ser uma escritora de fato, só agraciada por suas visões anti-Putin. Foi uma reação que ecoou ocasiões anteriores em que o prêmio foi concedido a escritores russos conhecidos por suas opiniões antissoviéticas: Ivan Bunin, em 1933; Boris Pasternak, em 1958; Aleksandr Soljenítsin, em 1970; e Joseph Brodsky, em 1987.
 
Svetlana Alexijevich se encaixa neste padrão. É o tipo de escritora que não agradaria soviéticos e nem plutocratas.

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