“Quero alertar os brancos antes que acabem arrancando do solo até as
raízes do céu.” – Davi Kopenawa
As
imagens de devastação, de morte e obliteração que nos inundaram a alma nas
últimas semanas, consequência do crime cometido pela ganância e pelo descaso em
Mariana (MG), podem ser facilmente relegadas a obra do acaso, acidente. Não
são. São, isso sim, o reflexo de uma noção de civilização que valoriza as coisas
em detrimento dos seres. Nunca, portanto, a ideia de que é preciso escapar da
escravidão do consumo desenfreado foi tão importante. É ela quem, como sugere o
líder yanomami Davi Kopenawa, nos transformou no “povo da mercadoria”.
“(os brancos são) o povo da mercadoria. Por quererem possuir todas as
mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou
e foi invadido pela noite. Fechou-se para todas as outras coisas. Foi com essas
palavras da mercadoria que os brancos se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar
a terra e a sujar os rios. Hoje já não resta quase nada de floresta em sua
terra doente e não podem mais beber a água de seus rios. Agora querem fazer a
mesma coisa em nossa terra. O valor que damos a essas coisas é maior até do que
o que os brancos dão ao ouro que tanto cobiçam. Temo que sua excitação pela
mercadoria não tenha fim e eles acabem enredados nela até o caos.” – Davi Kopenawa
No final da década
de 80, uma corrida ao ouro sem precedentes devastava a terra dos yanomami, no
noroeste da Amazônia Brasileira, fronteira com a selva venezuelana. Com uma longa experiência de relacionamento
com o homem branco e de luta contra seus avanços sobre a floresta, o líder e
xamã yanomami Davi Kopenawa estava profundamente abalado pela verdadeira
catástrofe epidemiológica e ecológica de que seu povo era vítima e que lhe
parecia anunciar seu iminente desaparecimento. Ele tinha começado a elaborar,
com seu sogro e mentor, “grande homem” da aldeia de Watoriki, uma profecia
xamânica sobre a “fumaça do ouro”, a morte dos xamãs e a “queda do céu" (o
mito yanomami da queda do céu conta o cataclismo que acabou com a primeira
humanidade e que, para os Yanomami, pode prefigurar o destino de nosso mundo, devastado
pela cobiça do homem branco em sua busca infindável por ouro, petróleo e “mercadorias”).
“Se destruírem a floresta, o céu vai quebrar de novo e vai cair na
terra! As costas do céu sustentam uma floresta tão grande quando a nossa, e seu
peso enorme vai nos esmagar de repente com toda a sua força. Toda a terra na
qual andamos será empurrada para o mundo subterrâneo, onde nossos fantasmas
vão, por sua vez, virar vorazes ancestrais aõpatari. Vamos morrer antes mesmo
de perceber. Ninguém vai ter tempo de gritar nem de chorar. Depois, os xapiri
em fúria vão acabar atirando na terra também o sol, a lua e as estrelas. Então
o céu vai ficar escuro para sempre.” – Davi Kopenawa
Em 24 de
dezembro de 1989, após uma rápida visita a Brasília, Kopenawa enviou uma
mensagem gravada em três fitas cassete ao seu amigo, o antropólogo Bruce Albert
– proibido, como demais antropólogos e missionários que denunciavam a
devastação, de entrar na região por ordem dos militares favoráveis à exploração
do garimpo naquela região de fronteira. Na mensagem, Kopenawa relatava seu
horror.
O xamã estava
hospedado na casa da antropóloga Alcida Ramos. Em Brasília, havia percorrido
mais uma vez os corredores do poder em busca da salvação de seu povo e de sua
floresta. Tinha acabado de assistir a uma reportagem da TV Globo sobre o avanço
dos garimpeiros pelo território yanomami. Os jornalistas mostraram a
considerável extensão de suas escavações ao longo dos rios e igarapés das
terras altas da região, que devastavam, sistematicamente.
“Logo compreendi que os garimpeiros eram verdadeiros comedores de
terra, e que iam devastar tudo. O ouro não passa de poeira brilhante na lama.
No entanto, os brancos são capazes de matar por ele. Seu pensamento está todo
fechado. Só se importam em cozinhar o metal e o petróleo para fabricar suas mercadorias.”
– Davi Kopenawa
Segundo o
relato de Alcida, chocado com as imagens de depredação apocalíptica do centro
histórico do território de seu povo, Kopenawa permaneceu mudo e pensativo por
um bom tempo. Por fim declarou em tom grave, em português: “Os brancos não
sabem sonhar, é por isso que destroem a floresta deste jeito”. A antropóloga,
sob o impacto da afirmação enigmática, propôs a ele que gravasse, em yanomami,
suas reflexões sobre o que acabara de ver.
Foi um relato
angustiado das doenças e mortes, das violências e estragos provocados pela
cobiça desenfreada do garimpo. Um relato entrecortado por reflexões xamânicas,
tiradas da cosmologia yanomami e das sessões de consumo de yakoana (alucinógeno
usado pelos xamãs yanomami para “fazer dançar” os xapiris – espíritos da
natureza - que cuidam dos seres humanos e da floresta) realizadas com seu sogro
em Watoriki. No final, Kopenawa pedia a ajuda de Bruce Albert para divulgar suas
palavras.
“Tanta destruição nos deixa muito preocupados. Tememos que a floresta
acabe revertendo ao caos e aniquilando os humanos, como ocorreu no primeiro
tempo.” – Davi Kopenawa
Esta gravação
foi o evento fundador que selou entre ambos o pacto político e “literário” que
deu origem ao livro “A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami” (Companhia das Letras, tradução de Beatriz
Perrone-Moisés e prefácio de Eduardo Viveiros de Castro), cuja leitura tive o imenso prazer de
finalizar esta semana graças a um presente precioso dos queridos amigos Emerson
Merhy e Erminia Silva.
Foram 100 horas de depoimento,
gravados entre 1989 e 2001, que serviram de base para as mais de 700 páginas desta
obra de enorme impacto na história da etnografia. Lançado em 2010 na França (na prestigiosa coleção Terre Humaine) e só agora traduzido para o português, o livro é
uma rara interlocução entre dois universos culturais, em que um índio assume a
(co)autoria do discurso para introduzir os seus sistemas cosmopolíticos e
intelectuais aos brancos. “Trata-se
de uma obra de colaboração na qual duas pessoas – o autor das palavras
transcritas e o autor da redação empenharam-se em seu um só”, explica Bruce
Albert.
“Por manterem a mente cravada em seus próprios rastros, os brancos
ignoram os dizeres distantes de outras gentes e lugares.” – Davi Kopenawa
O livro de Davi
e Bruce não é apenas uma porta de entrada para um universo complexo e
revelador. É uma ferramenta crítica poderosa para questionar a nossa noção de
progresso e desenvolvimento.
A obra é composta
de três partes: a primeira, Devir Outro,
retrata a vocação xamânica de Davi desde a infância até sua iniciação na
idade adulta, descrevendo a riqueza de um saber cosmológico secular. A segunda
parte, denominada A fumaça do
metal, relata por meio de sua experiência pessoal, não raro
dramática, a história do avanço dos brancos sobre a floresta – missionários,
garimpeiros entre outros – e sua bagagem de epidemias, violência e destruição.
Finalmente, a terceira parte, A
queda do céu, refere-se à odisseia vivida por Davi ao denunciar a dizimação de seu povo nas viagens que
fez à Europa e aos Estados Unidos.
“É um dos mais
impressionantes testemunhos reflexivos jamais oferecidos por um pensador
oriundo de uma tradição cultural indígena”, avalia o antropólogo Eduardo Viveiros de
Castro, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e autor do Prefácio da obra. “Fruto da colaboração exemplar entre dois
intelectuais, um xamã ameríndio e um antropólogo europeu, o livro é uma prova
eloquente do brilhantismo da imaginação conceitual indígena, de sua potência
analítica e sua nobreza existencial”.
“Os antigos brancos desenharam o que chamam de suas leis em peles de
papel, mas para eles parece que não passam de mentiras! Na verdade, eles só
escutam as palavras da mercadoria! Eles estão sempre impacientes e temerosos de
não chegar a tempo a seus empregos ou de serem despedidos. Só falam do trabalho
e do dinheiro que lhes falta. Vivem sem alegria e envelhecem depressa, sempre
atarefados, com o pensamento vazio e sempre desejando adquirir novas
mercadorias. Então, quando seus cabelos ficam brancos, eles se vão e o
trabalho, que não morre nunca, sobrevive sempre a todos. Depois, seus filhos e
netos continuam fazendo a mesma coisa.” – Davi Kopenawa
Encontro Improvável
O etnógrafo francês conheceu o
futuro líder yanomami quando este ainda trabalhava como intérprete da Funai, em
1978. Ambos tinham 20 e poucos anos e uma ideia distorcida um do outro: Albert
ouvira falar de Kopenawa como um índio aculturado a serviço dos militares,
enquanto Kopenawa ouvira rumores de que Albert seria um perigoso estrangeiro
infiltrado nas terras de seu povo.
As caricaturas cruzadas, porém,
não demoraram para se desmanchar. Assim que se viram juntos em uma sessão
xamânica, descobriram que compartilhavam o compromisso com os yanomami e o
engajamento contra o garimpo dos brancos que exterminava a etnia.
“Davi sabia que eu falava
yanomami e queria explicar aos brancos a história e a tradição do seu povo para
não serem exterminados pela cobiça do ouro. Ele teve contato na sua infância
com missionários evangélicos cuja referência constante era a Bíblia. Desde cedo
ficou atento ao poder da escrita no mundo dos brancos. Sabia, portanto, que
para adquirir existência para os brancos a história e o pensamento yanomami
deviam ser escritos na forma de um (grande) livro. De minha parte, escrever
este livro a partir dos depoimentos do Davi foi uma tentativa de inventar uma
nova forma de escrita etnográfica para resolver meu crescente mal-estar em
manter estanques interesses acadêmicos e ação política”, afirmou Bruce Albert em
entrevista ao jornal O Globo.
No início, o céu ainda era novo e frágil. A floresta era recém-chegada
à existência e tudo nela retornava facilmente ao caos. Moravam nela outras
gentes, criadas antes de nós, que desapareceram. Era o primeiro tempo, nos
quais os ancestrais foram pouco a pouco virando animais de caça. E quando o
centro do céu finalmente despencou, vários deles foram arremessados para o
mundo subterrâneo. As costas deste céu que caiu no primeiro tempo tornaram-se a
floresta em que vivemos, o chão no qual pisamos. Por esse motivo chamamos a
floresta wãro patarima mosi, o velho céu. Depois, um outro céu desceu e se
fixou acima da terra, substituindo o que tinha desabado. Sempre que o céu começa
a tremer e ameaça arrebentar, (nossos xamãs) enviam sem demora seus xapiri para
reforçá-lo. Sem isso, o céu já teria desabado de novo há muito tempo!” – Davi Kopenawa
Um fim
Apesar de ter
sido oficialmente homologada em 1992, quase 55% da Terra Indígena Yanomami já é
objeto de mais de seiscentos pedidos ou concessões de prospecção mineral
registrados junto ao Ministério de Minas e Energia, feitos por empresas
públicas e privadas, nacionais e multinacionais. Os projetos de colonização
agrícola implementados no limite leste do território yanomami a partir de 1978
por agências federais e depois regionais – amplificados por um grande movimento
de ocupação espontânea – geraram uma dinâmica de povoamento e desmatamento que
já atingiu os limites da terra indígena e ameaça invadi-la.
A queda do céu,
profetizada pelo xamanismo yanomami é um espectro que nos persegue a cada dia.
A cada imagem de Mariana, do Rio Doce, do mar contaminado, nos lembramos do
quanto estamos imersos na lógica da mercadoria, que nos faz indignar, mas não sublevar.
“Tudo isso, em nossa língua, é urihi a pree – a grande terra-floresta.
Acho que é o que os brancos chamam de mundo inteiro.” – Davi Kopenawa
“Davi nos diz que hoje só os
xamãs dos povos indígenas sabem ainda chamar e fazer dançar os xapiri para
conter os seres maléficos do mundo, combater as epidemias xawara e manter o céu
em seu lugar. Se o ‘povo da mercadoria’ acabar exterminando os últimos povos
indígenas e seus xamãs, os espíritos xapiri fugirão para sempre, abandonando o
mundo ao caos. Chegará então o tempo da queda do céu”, avida Bruce Albert.
Não são poucos
os estudos científicos que apontam
o início de um desastre ambiental global de magnitude ainda pouco imaginável.
Estamos no começo do fim do modelo de predação generalizada dos povos e do
planeta inventado pelo “povo da mercadoria” há poucos séculos. A palavra do
Davi não é portanto, uma mera profecia exótica. É um diagnóstico e um aviso.
Quem é
Davi Kopenawa
Xamã e
porta-voz dos índios Yanomami do Brasil , ele nasceu em 1956. em uma comunidade
isolada do norte amazônico. Sua família foi morta por uma violenta epidemia de
rubéola quando ele tinha 11anos. Vinte anos mais tarde milhares de garimpeiros
em busca de ouro invadiram o território Yanomami e desta vez é todo o povo
Yanomami que está ameaçado de extinção. Para impedir a tragédia anunciada, Davi
se engajou em uma luta ao redor do mundo onde é reconhecido como uma dos
maiores defensores da Amazônia e de seus primeiros habitantes. Em 1988, Davi
recebeu o Global 500 Award das Nações Unidas e em 1989 o Right Livelihood Award
considerado o prêmio Nobel alternativo. Foi condecorado em 1999 com a Ordem do
Rio Branco pelo Presidente da República brasileiro e em 2008 recebeu uma menção
honrosa especial do prestigiado Prêmio Bartolomé de Las Casas outorgada pelo
governo espanhol por sua luta em defesa dos direitos dos povos autóctones das
Américas.
Quem é
Bruce Albert
Nasceu no
Marrocos em 1952, é doutor em Antropologia pela Universidade de Paris X,
diretor de pesquisa do IRD (Paris), e defensor da cultura e dos direitos dos
Yanomami no Brasil com os quais trabalha desde 1975. A ONG CCPY, que ele
co-fundou em 1978, no Brasil, auxiliou Davi na batalha para obter do governo
brasileiro o reconhecimento legal do direito de ocupação exclusiva dos Yanomami
sobre um território de floresta maior que o de Portugal - a Terra Indígena
Yanomami.
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