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terça-feira, 12 de maio de 2015

Getúlio (1945-1954): Da Volta Pela Consagração Popular ao Suicídio – Lira Neto



Terminei na semana passada o terceiro e último voluma da trilogia de Lira Neto sobre a vida de Getúlio Vargas. O primeiro volume ia de seu nascimento, em 1882, até a Revolução de 1930. O segundo enfocava seu governo até 1945. O terceiro acompanha Vargas desde a deposição e o retiro nas terras da família, em São Borja (RS), onde articula o retorno à presidência, até o desfecho trágico no Palácio do Catete.

A finalização da trilogia reconstitui os acontecimentos políticos e pessoais mais importantes dos últimos anos do ex-presidente. Entre a deposição por um golpe militar, em outubro de 1945, e o suicídio, em agosto de 1954, o livro revela como a história do Brasil se entrançou com a vida de Getúlio, inclusive enquanto afastado do poder.

“Entrei para o governo por uma revolução, saí por uma quartelada”, lamentou-se Getúlio Vargas numa carta enviada de seu exílio rural em São Borja (RS), em novembro de 1945, ao amigo e correligionário João Neves da Fontoura. Depois de quinze anos no Palácio do Catete, emendando na sequência da Revolução de 1930 a chefia dos governos provisório e constitucional e a ditadura do Estado Novo, Getúlio fora obrigado a se retirar para sua região natal, na fronteira entre o Brasil e a Argentina, pelos mesmos militares que haviam apoiado seu projeto nacionalista de poder.

Os tempos estavam mudados, a Segunda Guerra Mundial já era história e ao ex-ditador, convertido num modesto estancieiro, apenas restavam as distrações das cavalgadas, do mate e dos charutos.  Mas Getúlio, animal político com aguçado senso de sobrevivência, não estava totalmente acabado, apesar do que pensavam os jornais do Rio de Janeiro, quase todos alinhados ao conservadorismo da União Democrática Nacional (UDN) e do Partido Social Democrático (PSD).

Sua filha Alzira — que havia permanecido na capital federal na companhia do marido, Ernani do Amaral Peixoto, e da mãe, Darcy — tornou-se uma espécie de embaixadora do getulismo, possibilitando ao ex-presidente perscrutar os bastidores do governo do general Eurico Gaspar Dutra e manter o controle sobre o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Com sua consagradora eleição ao Senado e as imunidades de constituinte, em 1946 Getúlio pôde voltar ao Rio de Janeiro num primeiro movimento de preparação do almejado retorno ao Catete.

Mas a hostilidade aberta da oposição udenista e as tentações de uma velhice tranquila no pampa gaúcho fizeram de seu mandato parlamentar pelo PTB um breve interlúdio do confinamento em São Borja, com raras aparições em plenário. Alzira, sempre no Rio, permaneceu sua conselheira e informante privilegiada por meio de detalhadas cartas-relatórios.

Apesar da derrota de candidatos que havia apoiado nas eleições regionais de 1947 e 48, Getúlio deu sinais à imprensa, com a sagacidade que lhe era peculiar, de que poderia tentar reconquistar o protagonismo político. O movimento queremista, que jamais havia se apagado, explodiu em todo o país, exigindo a candidatura do senador e “pai dos pobres” à presidência da República.

O retorno triunfal ao Catete, com a esmagadora votação obtida nas eleições de outubro de 1950, deu início a um dos períodos mais conturbados da política brasileira. A oposição ferrenha do udenismo e de parte da imprensa, personificada pelo jornalista Carlos Lacerda, combateu incessantemente todas as iniciativas (populares ou populistas) do segundo governo Getúlio. Realizações como a fundação da Petrobras e o aumento do salário mínimo foram ofuscadas por um sinistro clima de guerra psicológica.

O “mar de lama” denunciado à exaustão por seus inimigos – e confirmado pelo próprio presidente confrontado por esquemas de corrupção que envolviam a própria família Vargas - manietou o envelhecido presidente, dividido entre os afagos à classe trabalhadora e a obediência devida à praxe anticomunista da Guerra Fria. O próprio Lira Neto, no entanto, não crê que Getúlio estivesse envolvido, ele próprio, nas falcatruas de seu governo. “As pessoas que cercavam Getúlio perderam o senso de proporção. Mas tenho a convicção que ele não estava envolvido pessoalmente nos escândalos de corrupção. Tinha dificuldade de manter suas contas no fim do mês”, afirmou em recente entrevista ao Roda Viva da TV Educativa.

Lira Neto destaca algumas atitudes controversas do Getúlio político que, durante a ditadura perseguiu intelectuais, manteve censura feroz, fechou o Congresso, mas que, em seu período como presidente eleito recusou-se a lançar mão de medidas autoritárias, mesmo descobrindo-se destreinado a governar sob as regras do jogo democrático, com a imprensa e o Congresso em seu encalço.

O atentado a Lacerda — coberto ainda hoje de mistérios e para o qual o livro apresenta múltiplas possibilidades e versões —, no início de agosto de 1954, foi a senha para a precipitação dos acontecimentos. Acuado por um iminente golpe militar, Getúlio chegou a esboçar resistência, mas, politicamente isolado, preferiu o suicídio à desonra da renúncia.

“O suicídio não foi uma medida desesperada, nem o gesto de um depressivo”, diz Lira Neto. Em situações-limite, Getúlio várias vezes tomou em perspectiva o sacrifício pessoal. Os escritos íntimos dele são como a crônica de uma morte anunciada. Sempre teve a consciência de que não se permitiria passar à História como alguém derrotado em situação vexatória, desonrado.

Getúlio já havia ensaiado em outras cinco oportunidades, ao longo de 24 anos, este desfecho fatal. Cartas, anotações e bilhetes comprovam que o presidente sempre cogitou confrontar a derrota humilhante com a própria vida. Vargas enxergava no suicídio a única forma de sobreviver à morte física, antecipar-se à vingança do inimigo vitorioso e seguir existindo na memória popular.

“E se perdermos?”, perguntou-se num manuscrito datado de 3 de outubro de 1930, horas antes da deflagração do movimento armado que o levaria à chefia do governo federal. A resposta (“Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso”) seria repetida, com variações na forma que em nada afetam o conteúdo, em 10 de julho de 1932, quando registrou em seu diário o início da Revolução Constitucionalista, e em 19 de janeiro de 1942, ao optar pela adesão aos Aliados na Segunda Guerra Mundial.

Nos três episódios, a vitória dispensou-o de consumar a ameaça. Mas o flerte com a morte foi retomado em abril de 1945, quando se multiplicaram as evidências de que a cúpula do exército tramava a deposição do ditador. “Estou resolvido ao sacrifício para que ele fique como um protesto, marcando a consciência dos traidores”, avisou. Desta vez, não cumpriu a promessa por acreditar que não fora liquidado politicamente. As urnas logo gritariam que o genial intuitivo estava certo
Passados mais de sessenta anos do desfecho trágico, Lira Neto reconstitui todos os lances do tenso xadrez político que se entrelaçou com os últimos anos da vida de Getúlio. Amparado numa minuciosa pesquisa, que incluiu centenas de livros e milhares de páginas de manuscritos e documentos originais, o autor elucida um período capital da história do Brasil e interpreta a personalidade de seu mais importante ator político no século XX.

Mais próxima da reportagem do que do ensaio histórico, a biografia de Lira foi elogiada por historiadores como Boris Fausto, autor de “Getúlio Vargas: o poder e o sorriso” (Companhia das Letras), e Maria Celina D’Araújo, autora de “A Era Vargas” (Moderna) e outros livros sobre o período. O próprio autor diz que não teve a pretensão de fazer uma análise dos governos do ex-presidente, mas sim de narrar sua trajetória “sem maniqueísmos”:

“Tentei falar de Getúlio sem devoção nem negação, com equilíbrio. Acho que consegui, porque sou atacado por todos os lados: getulistas me acusam de udenismo, antigetulistas me acusam de favorecê-lo. Os livros permitem várias leituras. Estão lá as atrocidades do Estado Novo, a tortura e o autoritarismo, mas também as conquistas da Era Vargas e seu legado para os trabalhadores”, diz o autor, que vê Getúlio “ainda muito presente” no cenário nacional. “Os grandes temas da Era Vargas, como o tamanho do Estado e os direitos trabalhistas, continuam em nosso debate político”.
 
“Getúlio, inegavelmente, modernizou o Brasil. Em 1930, pegou um país agrário, semifeudal e, no espaço de pouco mais de duas décadas, o conduziu para o rumo do desenvolvimento. O projeto nacional desenvolvimentista nos deixou legados indiscutíveis, como a Petrobras, a siderúrgica de Volta Redonda, o BNDES e o Banco do Nordeste, entre tantos outros. Também é evidente a herança positiva das leis trabalhistas, que estabeleceu relativo equilíbrio na relação entre capital e trabalho em um país, do ponto de vista histórico, recém-saído da escravidão. Isso não significa que o legado de Getúlio seja inteiramente positivo. A ditadura do Estado Novo permanece como uma nódoa indelével em nossa história. O cerceamento das liberdades, a censura à imprensa, a perseguição feroz a intelectuais e sindicalistas, tudo isso merece crítica veemente. Portanto, é impossível analisar a trajetória de Getúlio por uma única perspectiva, encará-lo historicamente de modo maniqueista, reducionista. Como bem escreve o historiador Boris Fausto, na quarta capa do primeiro volume, Getúlio é, para o bem e para o mal, a figura mais importante da história brasileira no século XX”, resume Lira Neto.

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