Para começar, o que é genocídio? O termo foi criado por Raphael Lemkin,
um judeu de origem polonesa, em 1944, a partir da junção da raiz grega
génos (família, tribo ou raça) e - caedere (Latim - matar). Após o
assassinato em massa de judeus, ciganos, testemunhas de jeová,
comunistas, homossexuais e prisioneiros de guerra eslavos pelos
nazistas, Lemkin iniciou uma campanha pela criação de leis
internacionais que definissem e punissem o genocídio. Esta pretensão
tornou-se realidade em 1951, com a Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio, da qual o Brasil é signatário.
A
Convenção define por genocídio os seguintes atos, cometidos com a
intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico,
racial ou religioso:
a) Assassinato de membros do grupo;
b) Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo;
c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial;
d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo.
No
meu entender, a política de bombardeio contínuo dos centros urbanos
palestinos e de isolamento desta população em guetos é um “atentado grave à integridade física e mental” dos seus habitantes, portanto, deve ser classificado como genocídio.
O acadêmico e escritor palestino-libanês Saree Makdisi
afirma que uma geração inteira de palestinos cresce com deficiências
físicas e nutricionais geradas por falta de alimentos e alterações
emocionais, por viver no cárcere virtual criado pelo bloqueio
israelense, que se estende desde junho de 2007.
Em meio à
violência, as crianças palestinas são as principais vítimas. Cerca de
50% dos 1,5 milhão de palestinos em Gaza têm até 15 anos de idade. O
número de mortos nos conflitos sazonais que assolam a região é sempre recheado por um contingente expressivo de crianças e adolescentes.
Um estudo da Queen"s University
revelou que 90% das crianças em Gaza já foram vítimas do uso de gás
lacrimogêneo, presenciaram cenas de violência em suas casas ou
testemunharam tiroteios e explosões. O estudo demonstra, também, que o
risco de desordem emocional em uma criança ferida nessa região se
multiplica por quatro. Do mesmo modo, aquelas que presenciaram uma morte
têm o risco de estresse pós-traumático multiplicado por 13. “É como se as crianças palestinas de alguma maneira não merecessem as proteções garantidas pela Convenção de Genebra e o Direito Humanitário”, conclui o estudo.
Levantamento feito pelo Gaza Community Mental Health Programme,
realizado após a segunda Intifada, em 2000, indica que 70% das crianças
palestinas na região não conseguem se concentrar, 96% têm medo do
escuro, 35% se isolam e 45% sofrem altos níveis de ansiedade e estresse.
Da
mesma forma, o bloqueio israelense construído por meio do isolamento das comunidades palestinas em Gaza e na Cisjordânia aprofundou de forma avassaladora às dificuldades econômicas, sociais e
sanitárias da população, configurando-se em “submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial”.
O
drama se traduz nos indicadores da região: mais de 80% dos 1,5 milhão
de habitantes do território são pobres, e metade da população ativa não
tem renda fixa. Dois terços dos cerca de 110 mil empregos que existiam
no comércio desapareceram nos últimos anos. Com o colapso do sistema de esgoto, os dejetos acabam despejados
no mar, tornando insalubres as praias mediterrâneas e aniquilando a
fonte de lazer preferida da juventude local. Só há eletricidade durante
metade do dia no território, que se assemelha em tamanho e população ao
município de Guarulhos (SP) - na prática, duas das áreas mais densamente
povoadas no mundo, com mais de 4.000 habitantes/km2.
Estas políticas de esmagamento da população palestina vêm sendo perpetradas há anos e registradas em detalhes por observadores de todo o planeta. No artigo “Genocide in Gaza”
(2006), Ilan Pappe – escritor, conferencista sênior no Departamento de
Ciência Política da Universidade de Haifa e Presidente do Instituto
Touma para Estudos Palestinos em Haifa – esmiúça em detalhes os métodos
do terror estatal israelense:
“A estratégia anterior em Gaza
foi colocar os palestinos lá como se fosse um gueto, mas isso não está
funcionando. A comunidade posta no gueto continua a expressar sua
vontade de viver através do lançamento de mísseis primitivos para dentro
de Israel. Isolar em guetos ou quarentena comunidades indesejadas,
mesmo se elas forem consideradas subumanas ou perigosas, nunca funcionou
na história como solução. Os judeus sabem melhor que ninguém por sua
própria história. O próximo estágio contra tais comunidades no passado
foram ainda mais horrendos e bárbaros. É difícil dizer o que guarda o
futuro para a população de Gaza, confinada em um gueto, posta em
quarentena, indesejada e demonizada. Será uma repetição de exemplos
históricos funestos ou ainda é possível um destino melhor?”
Fausto Wolff, no artigo “Protejam as crianças”,
coloca o dedo na ferida ao denunciar que tanto Israel quanto os Estados
Unidos têm violado constantemente a Convenção de Genebra, cujos artigos
55 e 56 tratam da proteção que os invasores devem prover para a
população civil do país invadido: acomodações, comida, bebida,
assistência ambulatória e hospitalar.
“O artigo 56 enfatiza a
obrigação do poder invasor de, em cooperação com as autoridades locais,
providenciar rigorosos padrões higiênicos e fiscalizar bens perecíveis
para evitar a propagação de epidemias, adotando medidas de profilaxia. E
a todos os médicos e enfermeiras do país ocupado deve ser dada a
liberdade de cumprir seus deveres.”
Um trecho do artigo “Israel vive paradoxo aos 60 anos”,
de Daniela Kresch, é esclarecedor no que se refere a transformação de
Israel em um país que trai as suas origens ao reproduzir sobre seus
vizinhos os horrores que estão na origem de sua criação: “Para o
cientista político Shlomo Zener, os traumas e temores nacionais não
podem justificar a severidade no modo como são tratados os palestinos.
Para ele, a ocupação da Cisjordânia e de Gaza corrompeu o espírito
libertário dos primeiros israelenses, que lutaram para criar um Estado
moderno, sem perseguições, que servisse de modelo ético depois do
extermínio de 6 milhões de judeus na Segunda Guerra.”.
Psicanalista e professor da Universidade Estadual de Maringá (PR), Raymundo de Lima traça, no artigo “É ‘barbárie’, ‘genocídio’, ‘holocausto’, ou ‘massacre’?”,
um perfil bem reconhecível dos que tentam racionalizar a prática do
genocídio. Segundo ele, o genocida tende a utilizar mecanismos de defesa
psíquica como a racionalização e a intelectualização para justificar o
seu ato como de “legítima defesa”, proteção contra o “intruso”. Qualquer
similaridade com os argumentos usados por Israel em sua política
belicista contra os palestinos não é mera coincidência.
Diz ele: “...ou seja, o outro é sempre visto como ‘perigoso’, ‘inferior’, ‘estrangeiro’, ‘infiel’, ‘selvagem’, ‘coisa’ ou ‘objeto’,
enfim, o ‘outro’, o ‘diferente’ é sempre considerado um problema para a
existência do genocida; como é marcado na sua singularidade, o ‘outro’
não é visto como ser humano total, não é ‘humanizado’ em sua condição de
ser existente.”.
Em seu artigo, Lima sustenta, ainda, que o
crime de genocídio do Estado ou de qualquer ato de barbárie de grupos
extremistas, embora pareçam ser irracionais, na verdade são cometidos em
nome de alguma causa “justa”. Ele explica: “O ato monstruoso sempre
recorre a uma moral tosca cuja razão cínica satisfaz aos irmãozinhos
que compartilham com a mesma crença, que acreditam nas sombras
dogmáticas projetadas por um psiquismo esclerosado. Muitas vezes quem
pratica o grande massacre se coloca como vítima...”.
Encerro citando o trecho final de “Genocide in Gaza”,
no qual Pappe analisa de forma cáustica (e premonitória) os caminhos e
descaminhos do holocausto palestino e as alternativas que restam para
conter o autoritarismo com que os israelenses conduzem a questão.
“Ainda
não há outra forma de parar Israel exceto boicote, desinvestimento (NT:
retirada de investimentos, participação em sociedades etc.) e sanções.
Todos nós deveríamos apoiar tais medidas clara, aberta e
incondicionalmente, não importando o que os gurus de nosso mundo nos
digam sobre a eficiência ou razão de ser de tais ações. A ONU não
interviria em Gaza como faz na África; os ganhadores do prêmio Nobel não
se interessarão em defendê-la, como fazem por causas no Sudeste
Asiático. O número de pessoas mortas não é estonteante se comparado com
outras calamidades, e não é uma história nova - é perigosamente velha e
complicada. O único ponto suave dessa máquina de matar são suas linhas
de oxigênio com a civilização 'ocidental' e a opinião pública. Ainda é
possível perfurá-las e, pelo menos, tornar mais difícil para os
israelenses implementar sua estratégia futura de eliminação do povo
palestino, ou pela limpeza deles na Cisjordânia, ou pelo genocídio na
Faixa de Gaza.”
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