Semana On

quinta-feira, 19 de maio de 2011

A Travessia - Cormac McCarthy

O senhor acredita que os cavalos entendem o que as pessoas falam?
Não tenho nem certeza se a maioria das pessoas entende.
Pág. 344

“Caminhou. Um vento frio soprava das montanhas. Aparava os taludes ocidentais do continente onde a neve estival jazia acima dos terrenos onde árvores não cresciam e atravessava as elevadas florestas de pinheiros e se infiltrava entre os troncos dos álamos e se precipitava sobre a planície desértica abaixo. Parara de chover durante a noite e ele caminhou pela estrada e chamou o cão. E chamou e chamou. De pé naquelas trevas inexplicáveis. Nas quais não havia rumor em parte alguma exceto o do vento. Pouco depois se sentou na estrada. Tirou o chapéu e o depositou no asfalto diante dele e curvou a cabeça e pôs o rosto entre as mãos e chorou. Ali ficou por um longo tempo e depois o sol bom e feito por Deus nasceu, uma vez mais, para todos sem distinção.”

A desesperança do último parágrafo de “A Travessia”, segundo livro da Trilogia da Fronteira, do escritor estadunidense Cormac McCarthy, cuja leitura finalizei esta semana é o perfeito epílogo para um livro que, ao narrar a peregrinação de um jovem vaqueiro americano pela fronteira entre Estados Unidos e México no eclodir da segunda guerra mundial, nos coloca diante de toda a miséria da condição humana, esmagada pela solidão.

O jovem Billy Parham, protagonista da obra, é colocado diante de todo este peso nas quatrocentas e poucas páginas da obra, onde é confrontado por encontros inesperados que mesclam poesia, violência e filosofia na convivência, perda e busca por seu irmão mais novo, Boyd. Apesar de todas as experiências de vida que lhe são impostas durante a longa trajetória, iniciada com um arroubo que o leva a cruzar a fronteira com o México para colocar em segurança uma loba apanhada em uma armadilha, Billy é incapaz de se livrar desta solidão que o aparta dos homens e cuja ameaça foi apresentada a ele em um dos muitos encontros que lhe são imputados pelo destino.

Disse ao rapaz que apesar de ser huérfano deveria parar com as perambulações e encontrar para si mesmo um lugar no mundo porque a perambulação se tornaria uma paixão e por essa paixão se apartaria dos homens e por fim de si mesmo. Disse que o mundo só poderia ser conhecido tal como existe no coração dos homens Pois embora parecesse um lugar que contivesse os homens era na realidade um lugar contido dentro deles e por esse motivo para conhecê-lo era preciso olhar para dentro de si e conhecer o coração e para isso era preciso viver com os homens e não simplesmente passar entre eles.
Págs. 131 e 132

Em “A Travessia”, assim como em “Todos os belos cavalos” – primeiro livro da trilogia - o México surge como metáfora para um mundo selvagem e corrupto que McCarthy contrapõe à própria corrupção dos homens. É nessa natureza que ele faz seus personagens buscarem os valores e os sentimentos mais dignos e é também no elogio dessa vida crua que ele procura uma literatura mais autêntica e original. O animal ganha dentro dessa perspectiva um peso simbólico fundamental. É ao se tornarem um pouco animais, também, que seus personagens conquistam uma existência mais verdadeira. A sabedoria e a violência do mundo selvagem e da luta pela sobrevivência surgem como alternativa contra a selvageria de uma civilização corrompida pela violência gratuita, a injustiça, a ganância e a maldade.

O mundo não tem nome, disse. O nome dos cerros e das serras e dos desertos existem apenas nos mapas. Damos nomes a eles para não nos perdermos no caminho. No entanto porque já tínhamos nos perdido no caminho é que pusemos esses nomes. O mundo não pode se perder. Nós é que o perdemos. E porque esses nomes e essas coordenadas são nomeações nossas é que eles não podem nos salvar. Não podem encontrar de novo para nós o caminho.
Pág. 377

O encantamento de McCarthy e seus personagens por este mundo natural, para sempre perdido dentro de uma nova ordem social que surge, é apresentado por meio de uma prosa poética que muitas vezes flerta com o fantástico. De forma mais incisiva do que em “Todos os belos cavalos”, “A Travessia” nos traz o doloroso estoicismo de personagens sem guarida no mundo, que se movem contra uma paisagem indiferente ao seu sofrimento ou projetos pessoais, onde a morte parece a única disciplina capaz de unir a dura substância do mundo e a condição humana.

Ele olhou dentro dos olhos do garoto. O garoto dentro dos dele. Olhos tão negros que pareciam ser só pupila. Olhos nos quais o sol se punha. Nos quais a criança estava ao lado do sol. Ele não sabia que a gente podia ver a gente mesma nos olhos de uma outra pessoa nem ver dentro deles coisas assim como sóis. Ficou irmanado naqueles poços escuros com o cabelo muito descorado, muito fino e estranho, à mesmíssima criança.
Págs. 9 e 10

O Livro

Não tinha fé no poder dos homens de agirem sensatamente em benefício  de si mesmos.
Pág. 145

O livro é construído a partir de três incursões de Billy ao México. A primeira parte da obra, na qual o jovem submerge no mundo natural a partir de sua busca obsessiva por compreender o comportamento de uma loba que busca capturar, pode ser comparada a “O Urso” de Willian Faulkner ou a “Moby-Dick” de Herman Melville. Magistral a construção desta relação entre menino-homem e loba. Ao capturar o animal, Billy toma uma decisão que muda sua vida para sempre levando-o a uma jornada por montanhas primitivas e desertos inclementes. O motivo que o leva a assumir esta missão, deixando para trás a família, não é totalmente esclarecido. É um impulso, uma compulsão, uma resposta inconsciente ao chamado da natureza que o leva à frente sem medir conseqüências.

Ele segue seu caminho construindo uma relação de confiança com o animal e protegendo-o da selvageria humana até onde suas forças lhe permitem. Quando isso não é mais possível, Billy opta por libertar a loba do destino cruel que lhe é reservado nas mãos de homens embrutecidos. O momento em que Billy mata sua companheira de viagem, ferida em uma rinha de briga de cães, nos remete a uma busca pela dignidade, pela nobreza animal diante da selvageria do homem.

Billy, então, inicia uma viagem hipnótica pelas montanhas até as fronteiras do Novo México, onde o jovem cavaleiro nos é apresentado como um fantasma de si mesmo, meio enlouquecido pela dor e pela fome, em busca de terras conhecidas. Ele volta ao seu lar, apenas para descobrir que seus pais foram assassinados por ladrões de cavalo. Então, resgata o irmão mais novo, Boyd e parte novamente para o México em busca dos cavalos roubados.

Encontros e desencontros, violência e solidariedade os colocam frente a frente com alguns dos animais roubados e com uma jovem mexicana que junta seu destino ao deles. Mas a brutalidade prevalece e eles se transformam em fugitivos. Boyd é gravemente ferido e fica sob os cuidados de camponeses. Recuperado, parte com a jovem, deixando Billy para trás.

Billy, então, volta para os Estados Unidos onde tenta se alistar no exército. Por três vezes é recusado devido a uma falha cardíaca. Três anos se passam e Billy volta ao México em busca de seu irmão. Ele encontra apenas seu corpo, sepultado em um antigo cemitério, e as lendas que povoam o imaginário dos mais humildes, histórias que cantam as desventuras do jovem que luta contra a opressão dos fazendeiros mas acaba morto.

Levar o corpo de Boyd de volta para casa é a nova razão que Billy encontra para sua vida. E mesmo então não há caminho fácil para ele. Atacado por bandoleiros, roubado, perdendo um cavalo e tendo seu companheiro de viagens, o cavalo Niño, esfaqueado, ele insiste em cumprir a missão que impôs a si mesmo. Finalmente, já nos Estados Unidos, sepulta os restos do irmão ao lado da loba.

Este é o fio condutor de “A Travessia”, um resumo dos acontecimentos fantásticos que ocupam alguns anos da vida do vaqueiro Billy. Mas é o fim do livro, poucos anos depois, que nos dá o desenlace perfeito para a sensação de solidão que acompanha todas as páginas da obra.
 
Só, em uma casa abandonada onde se protege da chuva, Billy prepara-se para dormir sob palhas quando o dono do abrigo surge. Um cão velho, esquálido, deformado, que em realidade é um reflexo da alma de Billy. O jovem o escorraça das ruínas em uma convulsão de loucura, como se a própria presença do animal desvalido fosse para ele uma lembrança terrível de sua própria condição, da própria condição humana diante da inevitável solidão que nos esmigalha. Então, caindo em si, ele protagoniza o último parágrafo, que é o início desta breve resenha, concedendo a si próprio um momento de entrega e fraqueza, um momento de frágil humanidade.

2 comentários:

jammarques disse...

Belíssima análise desta obra imensa!!!!

jammarques disse...

Belíssima análise desta obra prima.