Semana On

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

"Meridiano de sangue" - Cormac McCarthy

“Viajava por regiões remotas demais para chegarem notícias e naqueles tempos incertos os homens ainda brindavam a ascensão de governantes já depostos e festejavam a coroação de reis mortos e sepultados.” Pág 299

“A liberdade das aves é um insulto para mim.” Pág 194

“A lei moral é uma invenção da humanidade com o propósito de desautorizar o forte diante do fraco.” Pág 241

A crítica tem comparado o apavorante – e belo – romance de Cormac McCarthy, “Meridiano de Sangue”, aos melhores trabalhos de Dante, Poe, de Sade, Melville, Faulkner, Flannery O´Connor e Willian Styron. Para Harold Bloom, trata-se de uma das grandes obras literárias do século 20, talvez a maior entre os escritores norte-americanos vivos. Os críticos falam sobre a magnificência da linguagem utilizada por McCarthy, a representação crua de um importante momento da história norte-americana, e sua visão sombria sobre a inevitabilidade do sofrimento e da violência. Cormac McCarthy vive do cadáver da civilização, já disseram.

De fato, um dos principais temas do autor é a violência, a natureza guerreira do homem. O próprio Bloom disse ter sido profundamente atingido por esta característica tão marcante do livro. Caryn James argumentou que a trama sanguinolenta era "um tapa na cara" dos leitores modernos. Terrence Morgan analisou o livro por outro ponto de vista. Para ele, a violência de “Meridiano de sangue”, inicialmente chocante, perde força gradativamente até deixar o leitor entediado (ou anestesiado?). De fato, a violência na obra de McCarthy não surge como fórmula pronta para iniciar ou dar fim a uma trama. Ela está lá tão somente, e se basta em si mesma, como um retrato da brutalidade humana, escondida sob os códigos de civilidade que nos mantém no cabresto.

Bloom descreve bem a força da obra em seu livro “Como e Por Que Ler”:

“A merecida notoriedade de ‘Moby Dick’ e ‘Enquanto Agonizo’ é levada adiante por ‘Meridiano de Sangue’, pois Cormac McCarthy é discípulo de Melville e Faulkner. Eu diria que nenhum romancista norte-americano vivo, nem mesmo Pynchon, oferece-nos um livro tão marcante e memorável quanto ‘Meridiano de Sangue’, por mais que eu goste de ‘Submundo’, de Don DeLillo, ‘Zuckerman Bound’, ‘Teatro de Sabbath’ e ‘Pastoral Americana’, de Philip Roth, e de ‘O Arco-Íris do Desejo’ (publicado no Brasil, como ‘Arco-Íris da Gravidade’) e ‘Mason & Dixon’, de Pynchon. Nem mesmo o próprio McCarthy, na recente Trilogia da Fronteira, que inicia com o esplêndido ‘Todos os Belos Cavalos’, consegue igualar ‘Meridiano de Sangue’, ponto culminante do Western, e que jamais será superado.”

Para escrever a obra, McCarthy realizou uma pesquisa considerável. Muitas passagens se baseiam em evidências históricas. Os relatos sobre a quadrilha Glanton - um grupo de caçadores de escalpos que massacrou índios e mexicanos na fronteira entre Estados Unidos e México no período entre1849 e 1850, por exemplo, baseiam-se nas passagens de Samuel Chamberlain em seu livro de memórias intitulado “My Confession: The Recollections of a Rogue”.

Três epígrafes abrem o livro, uma citando o escritor francês Paul Valéry, outra o cristão místico alemão Jacob Boehme e uma notícia do jornal Yuma Sun, de 1982, relatando a afirmação de uma equipe de arqueólogos segundo quem um crânio etíope de 300 mil anos apresentava sinais de ter sido escalpelado.

A narrativa que se segue analisa a trajetória de um anti-herói adolescente, “o garoto", e suas brutais experiências como membro da gangue Glanton. O papel do antagonista é gradualmente preenchido pelo juiz Holden, ou simplesmente “o juiz”, um homem extremamente grande, imberbe, inteligente e cruel. É nestes dois personagens assombrosos e fascinantes que a trama se apóia.

“O juiz olhou-o através das grades, sacudiu a cabeça. O que une os homens, ele disse, não é a partilha do pão mas a partilha de inimigos.” Pág. 294

O garoto é o expectador privilegiado de um mundo em formação, do avanço inexorável do homem branco sobre um oeste a ser conquistado, seu domínio impiedoso sobre os “negros”, sejam eles índios ou mexicanos. O garoto é como uma folha levada pela correnteza de um rio, exposto a toda a turbulência que a vida pode ofertar em um mundo brutal, selvagem e, ao mesmo tempo, belo. O juiz, por sua vez, é um filósofo, um pensador, arqueólogo, explorador e, ao mesmo tempo, um psicopata sádico e violento que percebe a mundo sob as lentes da fatalidade, da conquista e da violência como fundamento da natureza humana.

Ainda em “Como e Por Que Ler”, Bloom diz que o juiz é “a figura mais assustadora de toda a literatura norte-americana”. Os diálogos propostos pelo autor, em especial os protagonizados pelo juiz, são fascinantes. Diz Bloom: “As três glórias do livro são o juiz, a paisagem e (é terrível ter de dizer isso) os massacres, esteticamente distanciados por McCarthy, por meios diversos e complexos. (...) Quando chego ao final do romance, creio que o juiz seja mesmo imortal”.

“Não faz diferença o que o homem pensa da guerra, disse o juiz. A guerra continua firme. Dá no mesmo perguntar aos homens o que eles acham da pedra. A guerra sempre esteve aqui. Antes que o homem existisse, a guerra esperava por ele. É a profissão definitiva à espera do profissional definitivo. É assim que foi e será. Dessa maneira e de nenhuma outra.” Págs 239 e 240

Assim como seus livros “A estrada” e “Onde os velhos não têm vez” (ambos já resenhados aqui no blog), “Meridiano de Sangue” também será adaptado para a telona. A adaptação e a direção são de Todd Field e a produção de Scott Rudin. O lançamento está previsto para o ano que vem, nos Estados Unidos.

Trecho

"Uma legião de horríveis, centenas em número, seminus ou em trajes clássicos ou bíblicos ou tirados de um armário num delírio, com peles de animais e atavios de seda e peças de uniforme ainda manchadas com o sangue dos antigos donos, capotes de dragões chacinados, túnicas de cavalaria com alamares e debruadas, um de cartola e um com um guarda-chuva e um de meias brancas e com um véu de noiva manchado de sangue e alguns com cocares de penas de garça ou capacetes de couro cru com chifres de touro ou de búfalo e com uma casaca vestida ao contrário e com o rosto nu e um com uma armadura de um conquistador espanhol, o peito e as espáduas completamente amassados por antigos golpes de massa ou sabre desferidos em outro país por homens cujos ossos eram pó e muitos com tranças entremeadas com cabelos de outros animais enquanto rastejavam pelo chão e as orelhas e rabos de seus cavalos enfeitadas com pedaços de panos coloridos e um cujo cavalo tinha toda a cabeça pintada de vermelho carmesim e todos os cavaleiros com pinturas espalhafatosas e grotescas no rosto como um regimento de palhaços montados, de matar de rir, todos berrando numa língua bárbara e cavalgando como uma horda saída de um inferno ainda mais terrível do que a terra de enxofre do juízo final cristão, guinchando e uivando e envoltos em fumaça como aqueles seres fantásticos de regiões além do justo conhecimentos onde o olho vagueia e o lábio resseca e baba.

O regimento agora conseguira parar e os primeiros tiros estavam sendo desfechados e a fumaça cinzenta dos rifles rolava em meio à poeira ao mesmo tempo que os lanceiros abriam brechas em suas fileiras. O cavalo do garoto desabou embaixo dele com um suspiro longo e profundo Ele já tinha atirado com seu rifle e agora estava sentado no chão e atrapalhado com sua cartucheira. Um homem perto dele estava sentado com uma flecha pendendo do pescoço. Estava levemente curvado, como se estivesse rezando. O garoto ia puxar a ponta ensangüentada mas então viu outra flecha cravada no seu peito e o homem estava morto. Havia cavalos caídos por todo lado e homens arrastando-se e ele viu um homem sentado carregando seu rifle enquanto sangue escorria de suas orelhas e viu homens com seus revólveres abertos tentando ajustar seus cilindros mal municiados e viu homens de joelhos pendendo e abraçando suas sombras no chão e viu homens transpassados por lanças e agarrados pelos cabelos e escalpelados de pé e viu os cavalos dos guerreiros pisarem em cima dos caídos e um pônei pequeno de focinho branco com um olhar sombrio avançou para ele e tentou mordê-lo como um cachorro e foi embora. Entre os feridos alguns pareciam idiotas e inconscientes e alguns estavam pálidos atrás das máscaras de poeira e alguns tinham se borrado ou cambaleado até as lanças dos selvagens. Agora movendo-se numa fila turbulenta os cavalos impetuosos com olhos esbranquiçados e dentes afiados e cavaleiros nus com feixes de flechas presos entre os dentes e seus escudos cintilando na poeira e indo para o extremo das fileiras destroçadas entre o assobio de flautas de ossos e pendurados de lado em suas montarias com um calcanhar pendendo das correias ressecadas e seus pequenos arcos flectidos sob os pescoços esticados dos pôneis até terem cercado o regimento e cortado suas fileiras em dois e então voltando como vultos ridículos, alguns com figuras assustadoras pintadas no peito, cavalgando entre os saxões a pé e espetando-os e batendo neles de cima de suas montarias com facas e galopando ao redor sobre o solo com um trote cambaio peculiar como criaturas impelidas por estranhas formas de locomoção e arrancando as roupas dos mortos e pegando-os pelos cabelos e passando suas lâminas pelo crânio tanto dos vivos como dos mortos e erguendo no ar os escalpos ensangüentados e cortando e retalhando corpos nus, arrancando membros, cabeças, abrindo os torsos dos brancos estranhos e exibindo punhados de vísceras, órgãos genitais, alguns dos selvagens tão empapados com sangue que deviam ter rolado nele como cães e alguns atiravam-se sobre os agonizantes e os sodomizavam gritando alto para seus companheiros. E agora os cavalos dos mortos surgiram pisoteando da fumaça e da poeira e com os arreios balançando e crinas desgrenhadas e olhos embranquecidos pelo medo como os olhos dos cegos e alguns estavam cheios de flechas e alguns atravessados por lanças e tropeçando e vomitando sangue enquanto andavam pela terra assassina e trotavam de novo fora do alcance da vista. Poeira grudava-se nas cabeças molhadas e nuas dos escalpelados que com a orla de cabelos abaixo das feridas e tonsurados até o osso agora jaziam como macacos mutilados na poeira assentada pelo sangue e por todo lado os agonizantes gemiam e diziam coisas desconexas e cavalos estavam caídos guinchando." Págs. 57 e 58

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá Victor. Acabo de ler Meridiano de Sangue.Sem dúvida, trata-se de um dos livros mais instigantes dos últimos anos. Uso a palavra instigante porque termina de forma estranha e deixa muitas dúvidas no ar. Afinal quem é o juiz? Talvez, o ser seria pergunto o que é ele (representa) em vez de quem. De qualquer forma esse personagem é um dos mais interesantes d toda a literatura norte-americana. Eu concordo com Harold Bloom -que por sua vez é um dos admiradores confesssos deste livro-, o juiz é m personagem que pertence a mesma linhagem do capitão Ahab e provalmente tem sua origem nos viloes heróis de Shakespeare (heróismo, no sentido de que desperta uma estranha simpatia entre os leitores,afinal é uma figura carísmática) e no Satã rebelde de Milton, este último ao meu ver parece ser seu "parente" mais próximo. Também fiquei impressionado como Mcarthy alterna momentos de extrema violência (provalmente, ele foi influenciado pelos faroeste de Sam Peckpath) com descriçoes poética, que tornam Meridiano de Sangue em alguns trechos mais próximos da prosa em verso do que do romance. Essa combinação faz com que um dos grandes méritos deste autor esteja no modo como utiliza a linguagem, que é a comparada a de outro grand autor americano: William Falkner. Seja pela narrativa envolvente, ou pelos personagens que assumem uma dimensão símbolica e até mesmo mítica (como o caso do juiz), Meridiano de Sangue é impressionante e precisa ser conhecido por todos aqueles que gostam de boa literatura. Abraço.

Anónimo disse...

Meriano de sangue é melhot livro que ja li, e na figura do juiz holden , um gigante, culto, poeta, desenhista, filosofo, historiador, musico entre outros adjetivos encontramos um personagem com um carisma inigualavel, mesmo sendo cruel e mal.O livro tem uma narrativa agil, envolvente e que demonstra a verdadeira natureza dos seus personagens principais.Na maior parte do tempo vemos o kid assistindo como um espectador as ações de glanton, um sanguinario homem e do juiz, uma especie de deus que nunca dorme, não sente cansaço e se apoia na guerra e na violencia como uma forma de libertaçao.O livro segue as suas paginas descrevendo os acontecimento de uma forma brutal e chocante, mas que depois de um tempo o leitor se acostuma com tudo e entra no clima da histótia.Sem o juiz Holden o livro tiraria uma nota 9, com o juiz o livro ganha outro aspecto e sua nota fica 11/10 , uma perfeiçao caotica , brutal e conviecente do velho oeste americano.