Semana On

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

"Onde os velhos não têm vez" - Cormac McCarthy

Dizem que os olhos são a janela da alma. Não sei para onde aquelas janelas davam e acho que preferia nem saber.” Pág. 7

Desesperança é o sentimento que me dominou ao finalizar ontem o romance “Onde os velhos não têm vez”, do escritor norte-americano Cormac McCarthy. Por detrás da trama, dos diálogos maravilhosos, dos personagens vivos, o que ficou gravado em minha mente foi a ácida crítica aos tempos modernos, a exposição da flagrante incompatibilidade entre as últimas três gerações no que se refere ao sentido da vida, aos códigos éticos e a postura diante do mundo. “Onde os velhos não têm vez” é um livro de desesperanças, um desfile da brutalidade humana, da desvalorização da vida e da estupefação que elas nos causam.

“... e eu fico sempre voltando a eles (os velhos). Eles olham para mim e há sempre uma pergunta. Anos atrás eu não me lembro que fosse assim. Não me lembro que fosse assim quando eu era xerife lá pelos anos cinquenta. Você os vê e eles não parecem nem mesmo confusos. Parecem simplesmente loucos. Isso me incomoda. É como se eles acordassem e não soubessem como chegaram onde estão. Bem, num certo sentido não sabem.” Pág 248

A trama se passa na fronteirta entre o Texas e o México, nos anos 80, e tem início quando Llwelyn Moss, um veterano do Vietnã, se depara em pleno deserto – onde caçava antílopes – com camionetes abandonadas, adornadas por corpos crivados de balas, um carregamento de heroína e mais de dois milhões de dólares. Moss decide ficar com o dinheiro e passa a ser perseguido por traficantes mexicanos e por Anton Chigurh, um assassino profissional, psicopata, frio e metódico. A história é costurada pelos comentários e pensamentos de um terceiro personagem chave, o xerife Bell, que segue o rastro de sangue deixado na busca pelo dinheiro e pela droga enquanto tenta entender o grau de violência a que está exposto e do qual precisa proteger sua comunidade.

Os diálogos secos, hipnotizantes, duros, são deliciosos para quem quer boa literatura. Geralmente o autor desdenha de longas frases pontuadas. Suas construções são curtas, têm poucas vírgulas e vêm acompanhadas pelo bíblico “e” que serve como sólida argamassa para a construção do texto.

Não é a tôa que MacCarthy tem sido apontado por alguns como o maior escritor americano da atualidade. Na verdade, há uma forte polêmica a respeito da literatura de McCarthy. Há quem ressalte a violência impressa em seus romances (“Onde os velhos não têm vez” começa com um xerife sendo estrangulado por um prisioneiro) e quem os considere excessivamente masculinos.

O que não é possível é ficar indiferente a personagens como Chigurh, com sua lealdade implacável à morte, uma espécie de demônio que se apropriou da onisciência divina, como no trecho em que conversa com Carla Jean, mulher de Moss: "Quando cheguei na sua vida a sua vida tinha acabado. Teve um começo, um meio e um fim. Este é o fim." (Pág. 212).

O autor

Cormac McCarthy nasceu em Rhode Island em 20 de julho de 1933. Na juventude serviu à Força Aérea dos Estados Unidos durante quatro anos e estudou Artes na Universidade do Tennessee. É vencedor do National Book Award, do National Book Critics Circle Award e do Pulitzer 2007.

Em 40 anos de carreira literária, produziu nove romances, entre eles “Todos os Belos Cavalos”, “A Travessia” e “Cidade das Planícies”, que o autor batizou de Trilogia da Fronteira, “Meridiano de sangue” e “A Estrada”. “Onde os Velhos Não Têm Vez”, lançado nos Estados Unidos em 2005, foi adaptado para o cinema pelos irmãos Coen, em 2007. Receberam o Oscar de melhor filme, em 2008.

Trecho

“Onde os Velhos Não Têm Vez” possui diálogos singulares. No trecho abaixo – um dos mais fabulosos que li recentemente - Chigurh conversa com o dono de uma lojinha de conveniência num posto de beira de estrada. A tensão proposta, a incerteza com o porvir são quase palpáveis e dão uma mostra saborosa do que pode ser encontrado no romance.

Tem tido chuva lá no lugar de onde você vem? O proprietário disse.

E qual seria esse lugar?

Vi que você é de Dallas.

Chigurh pegou o troco sobre o balcão. E por acaso é da sua conta o lugar de onde eu venho, meu amigo?

Eu não quis dizer nada com isso.

Você não quis dizer nada com isso.

Só estava passando o tempo.

Acho que isso passa por um substituto das boas maneiras na sua visão pobre e sulista das coisas.

Bem meu senhor, eu pedi desculpas. Se o senhor não quer aceitar as minhas desculpas não sei o que mais posso fazer.

Quanto custa isto aqui?

Perdão?

Eu perguntei quanto custa isto aqui.

Sessenta e nove centavos.

Chigurh estendeu um dólar sobre o balcão. O homem abriu a caixa registradora e empilhou o troco diante dele do modo como um carteador de cassino coloca as fichas. Chigurh não tinha tirado os olhos dele. O homem desviou o olhar. Tossiu. Chigurh abriu o pacote plástico de castanhas-de-caju com os dentes e despejou um terço do pacote na palma da mão e começou a comer.

Mais alguma coisa? o homem disse.

Não sei. Será?

Tem algo errado?

Com o quê?

Com alguma coisa.

É isso o que você está me perguntando? Se tem algo errado com alguma coisa?

O homem se virou e colocou o punho fechado sobre a boca e tossiu outra vez. Olhou para Chigurh e ele desviou o olhar. Olhou pela janela para a frente da loja. As bombas de gasolina e o carro parado lá. Chigurh comeu mais um punhadinho de castanhas-de-caju.

Mais alguma coisa?

Você já me perguntou isso.

Bem é que eu preciso fechar.

Fechar.

Sim senhor.

A que horas você fecha?

Agora. Fechamos agora.

Agora não é um horário. A que horas você fecha?

Normalmente ao escurecer. Quando escurece.

Chigurh ficou ali mastigando devagar. Você não sabe o que está dizendo, não é mesmo?

Perdão?

Eu disse você não sabe o que está dizendo não é mesmo.

Estou dizendo que é hora de fechar. Isso é o que eu estou dizendo.

A que horas você vai para a cama.

Perdão?

Você é meio surdo, não? Eu disse a que horas você vai para a cama.

Bem. Eu diria que por volta das nove e meia. Mais ou menos por volta das nove e meia.

Chigurh despejou mais castanhas na palma da mão.

Eu poderia voltar a essa hora, ele disse.

Nós vamos estar fechados.

É verdade.

Bem por que então o senhor ia voltar? Vamos estar fechados.

Você já disse isso.

Bem vamos mesmo.

Você mora naquela casa atrás da loja?

Moro sim.

Morou ali a vida toda?

O proprietário levou um tempo para responder. Essa era a casa do pai da minha mulher, ele disse. Originalmente.

Você se casou só para poder ficar com a casa.

Nós moramos em Temple Texas durante vários anos. Criamos uma família ali. Em Temple. Viemos para cá há uns quatro anos.

Você se casou só para poder ficar com a casa.

Se é o que o senhor acha.

Não é assim que eu acho. É assim que é.

Bem agora eu preciso fechar.

Chigurh despejou o restante das castanhas na palma da mão e amassou o pacote de plástico e colocou em cima do balcão. Estava de pé de forma estranhamente ereta, mastigando.

O senhor parece ter uma porção de perguntas, o proprietário disse. Para alguém que não quer dizer de onde veio.

Qual foi o máximo que você já perdeu jogando cara ou coroa?

Perdão?

Eu disse qual foi o máximo que você já perdeu jogando cara ou coroa.

Cara ou coroa?

Cara ou coroa.

Não sei. As pessoas normalmente não fazem apostas com cara ou coroa. Habitualmente é mais só para resolver alguma coisa.

Qual a maior coisa que você já viu ser resolvida?

Não sei.

Chigurh pegou uma moeda de vinte e cinco centavos no bolso e jogou-a para cima fazendo com que ela rodopiasse em meio ao brilho azulado das luzes fluorescentes lá no alto.Apanhou-a e prendeu-a de encontro à parte de trás de seu antebraço logo acima da atadura ensangüentada.

Escolha, ele disse.

Escolher?

Sim.

Por quê?

Só escolha.

Bem eu preciso saber o que é que nós estamos decidindo aqui.

Isso iria mudar alguma coisa?

O homem olhou para os olhos de Chigurh pela primeira vez. Azuis como lápis-lazúli. Ao mesmo tempo brilhantes e totalmente opacos. Como pedras molhadas. Você precisa escolher, Chigurh disse. Não posso escolher por você. Não seria justo. Não seria nem mesmo correto. Só escolha.

Eu não apostei nada.

Apostou sim. Está apostando a vida inteira. Você apenas não sabia. Sabe qual a data que está na moeda?

Não.

É 1958. Ela viajou durante vinte e dois anos para chegar aqui. E agora está aqui. E eu estou aqui. E estou com a mão sobre ela. E vai ser cara ou coroa. E você tem que dizer. Escolha.

Não sei o que posso ganhar.

À luz azulada o rosto do homem estava coberto por uma camada fina de suor. Ele lambeu o lábio superior.

Você pode ganhar tudo, Chigurh disse. Tudo.

Isso não está fazendo sentido, senhor.

Escolha.

Cara então.

Chigurh destampou a moeda. Virou o braço ligeiramente para que o homem visse. Muito bem, ele disse.

Pegou a moeda do pulso e entregou-a.

O que é que eu faço com isso?

Pegue. É a sua moeda de sorte.

Não preciso dela.

Precisa sim. Pegue.

O homem pegou a moeda. Tenho que fechar agora, ele disse.

Não coloque no bolso.

Perdão?

Não coloque no bolso.

Onde o senhor quer que eu coloque?

Não coloque no bolso. Você não vai saber qual é.

Está bem.

Tudo pode ser um instrumento, Chigurh disse. Pequenas coisas. Coisas que você nem mesmo notaria. Passam de mão em mão. As pessoas não prestam atenção. E então um dia faz-se o acerto de contas. E depois disso nada mais é igual. Bem, você diz. É só uma moeda. Por exemplo. Nada de especial nisso. Do que ela poderia ser um instrumento? Você entende o problema. Separar o ato da coisa. Como se as partes de um certo momento na história pudessem ser trocadas com partes de outro momento. Como seria possível? Bem, é só uma moeda. Sim. É verdade. É mesmo?

Chigurh fechou a mão em concha e puxou o troco de cima do balcão para a palma da mão e colocou o troco no bolso e se virou e saiu pela porta. O proprietário observou-o ir. Observou-o entrar no carro. O carro começou a funcionar e saiu do pátio de cascalho para a estrada na direção sul. Os faróis não foram acesos. Ele colocou a moeda sobre o balcão e olhou para ela. Colocou as duas mãos sobre o balcão e ficou de pé ali inclinado com a cabeça baixa.

2 comentários:

Adriana Godoy disse...

Gosto dos livros desse autor. No caso, o filme fez jus á obra o que não aconteceu com "A Estrada", um dos melhores livros que li recentemente. Gostei do seu artigo. mais uma vez, parabéns. Bj

Barone disse...

Sabe que eu gostei da adaptação de A estrada para o cinema? Mas, realmente, o cara é fera. Acabei de ler Meridiano de sangue, um espetáculo.