Semana On

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Imprensa fecha os olhos e fortalece homofobia em MS

A jornalista Adriana Santana desenvolve como tese de doutorado uma pesquisa sobre o que classifica como “Jornalismo Cordial”. O termo, como ela explica em seu blog, remete ao conceito de “homem cordial” do historiador Sérgio Buarque de Holanda, e quer retratar “aquele profissional que, relegando apuração e compromisso com a busca dos fatos, numa postura de agradar a todos (ou não desagradar a ninguém), acaba por não cumprir sua função social de investigador e responsável por levantar e disseminar informações do interesse dos cidadãos”.

A concessão do título de Utilidade Pública para a Associação dos Travestis de Mato Grosso do Sul (ATMS), que deveria ocorrer nesta quarta-feira, 17, serve de objeto para a análise deste tipo de jornalismo que - aliado ao domínio do poder econômico sobre a definição das pautas e ao que o jornalista Washington Araújo classifica como “jornalismo insano” - está nos condenando a uma morte lenta e dolorosa.

Resumindo a ópera: desde dezembro de 2005 alguns vereadores tentam fazer aprovar no legislativo municipal campo-grandense um projeto de Lei que concederia o título à ATMS. Em 2006 a proposta foi reprovada por um placar de nove votos a oito, apesar de a entidade preencher os preceitos legais para receber o título. A oposição maciça de vereadores evangélicos e ligados a Igreja Católica foi o fator decisivo.

O debate se estendeu por 2007, desta vez sob a batuta do vereador Athayde Nery (PPS), que reapresentou a proposta sob o projeto de Lei 6353/07, argumentando que a associação é responsável por cursos, convênios e campanhas de prevenção à Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis. Ontem, em uma manobra burocrática, o vereador Pastor Sergio (PMDB), integrante da bancada evangélica da Casa, pediu vistas ao projeto, impossibilitando que ele seja votado neste ano e virtualmente condenando-o novamente ao arquivamento. O projeto tramitava há quase dois anos, mas só ontem Sergio alegou desconhecer seus detalhes técnicos...

Presentes na sessão, militantes e simpatizantes da ATMS, pastores evangélicos e religiosos quase partiram para as vias de fato, coroando um drama de caráter social que poderia render muito material de qualidade além do factual óbvio e ululante.

Poderia-se, por exemplo, aproveitando o gancho dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, questionar se os motivos que levaram as bancadas evangélica e católica da Casa a obstruírem mais uma vez a aprovação do projeto teve caráter homofóbico. Uma leitura rápida da Declaração mostra, inequivocamente, que pelo menos seus Artigos I, II, VI e VIII foram violados.

Também seria possível analisar o fato de a Câmara Municipal de Campo Grande ter aprovado inúmeros títulos de Utilidade Pública nos últimos meses (inclusive um, hoje – Projeto de Lei 6557/08). Se a ATMS tinha requisitos legais para requerer a utilidade pública municipal, qual o motivo de este benefício estar sendo sistematicamente negado a ela, quando foi garantido a inúmeras outras associações?

Indo mais longe, os veículos de comunicação de Mato Grosso do Sul poderiam ligar o que ocorreu ontem na capital do Estado com os movimentos nacionais e internacionais de combate ao preconceito e pela discriminação aos homossexuais. Poderia-se ter usado como gancho fatos recentes, como a declaração do porta-voz do Vaticano, Frederico Lombardi, de que a Igreja Católica é a favor da descriminalização do homossexualismo.

O fato é que o tema poderia ter sido abordado de muitas formas, todas elas fugindo do que o jornalista Luis Weiss, no artigo “Desafio ao leitor - e ao jornalista”, classifica como “a saída pelo facilitário”, isto é, pela abordagem óbvia e pouco desafiadora para o leitor.

No entanto, o que se viu na mídia sul-mato-grossense entre ontem e hoje foi somente pasmaceira e omissão.

O jornal Correio do Estado foi o veículo que mais destaque deu ao tema, dedicando a ele manchete secundária de capa (“Homossexuais, evangélicos e vereadores colidem”) e reportagem (na página 9A) intitulada “Projeto pró-homossexuais gera bate-boca na Câmara”, expondo o factual e os dois lados da questão sem, no entanto, questionar o seu mérito. O jornal O Estado de MS, por sua vez, deixou o tema de fora da capa, dando o mesmo tratamento que o Correio em matéria interna sob o título “Votação sobre utilidade pública de associação é suspensa após tumulto”. Outros dois jornais diários da capital, Diário do Pantanal e Folha do Povo não dedicaram uma linha sequer à polêmica.

Ontem, o site de notícias Campo Grande News noticiou com a matéria “Bate-boca entre evangélicos e travestis suspende sessão”. Mais tarde, deu espaço a uma vereadora evangélica eleita: “Evangélica, Rose votaria contra Associação das Travestis”. O Midiamax não deu uma linha sequer sobre o tema, apesar de ter noticiado no dia 15 que o projeto seria votado. Na mesma linha, o site TVMorena, braço virtual da TV Morena (repetidora da TV Globo em MS), deixou o fato passar em branco, embora tenha incluído a votação da Lei em nota sobre a pauta da Câmara Municipal.

As emissoras de tevê locais também ignoraram o projeto e as suas repercussões. A TV Morena, ontem, citou apenas que a Câmara Municipal havia aprovado o orçamento municipal de 2009. A TV Record e a repetidora do SBT no Estado, TV Campo Grande, também passaram batidas.

Recentemente, no artigo “Jornalismo e assessoria de imprensa: ética e realidade”, citei uma análise do professor Venício A. de Lima, pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp) da Universidade de Brasília, segundo a qual: “...imparcialidade e objetividade são princípios irrealizáveis na prática concreta da apuração e da redação de notícias, sejam elas de política ou de outra editoria”. Para Lima, “o que se busca no jornalismo sério e responsável é minimizar a contaminação da cobertura pelas preferências pessoais do(a) repórter e pelos interesses dos donos dos jornais, expressos nos editoriais e nas colunas de opinião dos respectivos veículos”.

Em sua resenha do livro “Políticas Públicas Sociais e os Desafios para o Jornalismo”, o jornalista Luciano Milhomem aponta um caminho similar ao dizer que, apesar de estabeleceram as regras para o setor, os grandes meios de comunicação de massa não são totalmente impermeáveis a mudanças e que é nesse nicho que “o jornalista de sólida e vasta formação pode e deve atuar, de maneira a promover a criatividade, a inovação, a consciência crítica, a cidadania”. Segundo ele, “se, hoje em dia, jornalismo engajado é visto como de qualidade duvidosa ou, no mínimo, de baixa credibilidade, o jornalismo neutro é considerado um mito”.

Talvez esteja aí o principal paradigma a ser quebrado no Jornalismo para que ele volte a cumprir um papel mais importante que a mera reprodução de notícias velhas, mornas e descomprometidas com a sociedade. Não sugiro que os jornalistas devam rasgar o código de ética, mas que busquem um equilíbrio entre um fazer-jornalístico imbuído de seriedade, que busca a verdade antes de tudo, e o que poderia ser chamado de função social da profissão.

Um dos relatórios do Fórum dos Cursos de Jornalismo realizado em São Paulo, em 2002, resume este pensamento: “O compromisso do jornalismo é com a cidadania e com os interesses gerais e públicos da sociedade, especialmente na defesa dos setores marginalizados, excluídos e sem espaço no sistema de comunicação. A defesa da liberdade de informação e da cidadania está acima dos interesses comerciais do mercado”.

Voltando a citar a análise de Milhomem, o jornalismo tem, inevitavelmente, responsabilidade social, seja quando se omite, seja quando assume posições, e contribui, de forma significativa, para o estabelecimento de prioridades, seja no âmbito público ou privado, sendo um fator decisivo para a formulação de políticas públicas sociais.

Em sua edição de dezembro de 2006 o Jornal da ABI traz editorial no qual reforça a necessidade de um jornalismo focado nos temas de caráter social, nas questões que dizem respeito à situação da gente comum e à grande massa de deserdados. “É esse jornalismo de superior qualidade ética, política e social que eleva os profissionais e seus veículos a merecido destaque na copiosa massa de informações que todo santo dia se oferecem aos leitores, ouvintes e espectadores”.

Para isso, no entanto, é preciso fugir do óbvio.

Leia mais sobre o mesmo tema:
- Obscurantismo ganha espaço em Campo Grande
- Campo Grande pode dar exemplo contra homofobia
- Melhor ser ladrão que viado

4 comentários:

Anónimo disse...

Independente da posição quanto aos homossexuais, a associação promove programas e debates sobre sexo e doenças. A sociedade de MS perde com essa "burrocracia" política e religiosa, para não não dizer medrosa (...fobia).

Fredemetrio disse...

Resumindo..........
O Jornalismo em Campo Grande é deficitário, incompetente, pragmático, altamente evasivo e totalmente alheio.
Resumindo ainda mais.
Eita cidadezinha de interior!

Barone disse...

É verdade Brunno. A verdade é que não importa que agrupamento social, étnico, religioso ou sexual é defendido por uma associação desde ela o faça dentro da lei. Fred, seria alentador se este problema fosse do Jornalismo campo-grandense. Não é. Trata-se de uma crise muito maior, de identidade do Jornalismo, que se espalha pelo mundo.

Anónimo disse...

Pois é, mas nesse caso, mostra-se totalmente alheio. Mesmo os posts e comentários nos nossos jornais eletrônicos são demorados na liberação, censurados e se caso é irônico - mas sem agressão não é postado.
Outro exemplo é o atraso nas informações gerais. Caso da PEC dos Vereadores, mesmo com 2 horas de atraso acerca da não promulgação a mídia eletrônica ainda teimava em postar " Caso seja aprovada".
Quanto a esse da ATM, já foi até postado em fórum específico, e segundo respostas, nem foto havia.
Lamentável