Democracia; a palavra, grega, é atestada primeiro por Heródoto (século V a.C.) como "governo (do povo) pelo povo". A lição foi colhida pelo historiador dos lábios de Péricles, na oração póstuma aos atenienses mortos na Guerra do Peloponeso: "Nosso regime político é a democracia e assim se chama porque busca a utilidade do maior número e não a vantagem de alguns. Todos somos iguais perante a lei, e quando a República outorga honrarias o faz para recompensar virtudes e não para consagrar privilégios. Nossa cidade se acha aberta a todos os homens."
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“Se houvesse um governo de deuses, haveria governar-se democraticamente. Um governo tão perfeito não convém aos seres humanos” ROUSSEAU, J.J.
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Quando nos referimos à democracia, a primeira coisa que nos vem à mente é o dia das eleições. Pensamos em candidatos, em propostas, na nova composição dos legislativos e executivos. No entanto, uma análise mais cuidadosa aponta para o fato de que a democracia é muita mais que isso. Para situar a discussão é preciso lembrar que as democracias são muitas, mas podem ser resumidas na exercida pelos antigos e na contemporânea. Uma diferença fundamental as separa. Os gregos concebiam a democracia de uma forma que hoje classificamos como “democracia direta” ou “participativa”, um processo no qual a participação da vida política se dava através da assembléia, onde cada cidadão participava dos rumos da polis. A democracia contemporânea, por sua vez, acontece através dos representantes da população. É o que nós chamamos de "democracia representativa”, na qual o voto continuou assumindo papel central, mas diverso do voto exercido pelos antigos. Hoje, o voto não serve para decidir, mas para eleger quem deverá decidir em nosso nome.
É pensamento corrente e defendido por muitos pensadores e filósofos contemporâneos que a democracia representativa, esta a qual nos acostumamos, está morta, não cumpre mais o papel a ela atribuído. Isso ocorre não apenas no Brasil, mas no mundo. O motivo deste apodrecimento interno da democracia representativa é a submissão dos interesses públicos ao interesse dos que detém o poder político e econômico. Estes procuram manter o estado de coisas favorável aos seus interesses, impondo-se à estrutura do Estado, corrompendo os demais em nome dos seus interesses particulares.
O professor Henrique Ratner (FEA - USP, IPT e membro da Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Lideranças - ABDL) bem define a situação que herdamos dos últimos 150 anos de desenvolvimento da democracia representativa:
“Contra a lógica impiedosa dos mercados, os utopistas nos séculos XIX e XX depositaram sua fé no Estado, virtuoso e redentor, capaz de manter o equilíbrio na luta entre as classes sociais. Conquistando o poder do Estado, estaria aberto o caminho de reformas, garantindo a ordem, a segurança e o bem-estar de todos. Tarde demais percebemos que o Estado protege os mais ricos e continua a oprimir os mais pobres e fracos, devido a uma aliança perversa entre as elites tradicionais e modernas, os donos das terras e a burguesia industrial, sustentadas e legitimadas por uma tecnocracia que age em nome de uma suposta racionalidade científica...”.
Na democracia representativa, seria de se esperar que um parlamentar representasse os interesses da população que o elegeu. De fato, isso raramente ocorre pois o sistema já não o permite. Não se trata de separar o joio do trigo, os maus dos bons políticos, o problema reside no cerne da máquina pública. Legisla-se em causa própria ou em causa de uma pequena coletividade de interesses, invertem-se as prerrogativas que deveriam defender por aquelas dos investidores e das mais variadas classes de detentores da riqueza. Daí o surgimento das bancadas de especificidades como ruralistas, usineiros, evangélicos etc, etc. O interesse público submerge sob o peso dos interesses privados.
“É impossível salvar a democracia representativa, porque ela contém uma contradição em termos: a impossibilidade de uma representação legítima (seu pressuposto), isto é, não eivada de manipulação – manipulação que apenas cresce e se agiganta e toma as formas de um moloch na sociedade de massas –, pela exigência de instrumentos de mediação que se constituem, ao mesmo tempo, em incontornáveis instrumentos de defraudação da vontade-cidadão original.” (Roberto Amaral)
De forma mais simplista, os sinais desta desagregação da democracia podem ser vistos com clareza em algumas circunstâncias que afloram do seio das sociedades modernas. A falta de confiança nos políticos é uma delas, assim como o crescente desinteresse da população pela política tradicional. Cada vez mais a democracia representativa se afasta de seu objetivo primordial, afastando governados e governantes e criando, como conseqüência, uma casta de czares que tudo pode e, em nome do povo, exerce a política do clientelismo e dos interesses particulares que a eterniza no poder.
Pois bem, o leitor deve estar imaginando se o objetivo deste artigo é propor algum tipo de ditadura que substitua a nossa declamada democracia representativa. Ela, que defende-se com unhas e dentes e apresenta-se como única alternativa civilizada para a organização social. Ledo engano.
O sufrágio universal para a escolha dos governantes e representantes nos parlamentos é, sem dúvida, uma conquista fundamental para a construção do regime de direito. No entanto, são claras as demonstrações de que ele é insuficiente para coibir os abusos de poder e, principalmente, a utilização dos recursos públicos em favor de minorias privilegiadas sem consulta ao conjunto da população nem a adoção de critérios de transparência nos processos decisórios. “De qualquer forma, escolher quem vai ser o chefe não é de modo algum a democracia. A democracia é se encarregar coletivamente de nossa vida coletiva”, sustenta Pierre Lévy, ressaltando que o voto em si não define a democracia.
Ora, se a democracia representativa está desmoronando sob seus pilares carcomidos, para onde caminharemos? A resposta pode estar na radicalização democrática, na construção de mecanismos que possibilitem a democracia participativa: “... acredito que com a informática nós dispomos, talvez pela primeira vez, de uma técnica que pode permitir de um modo verdadeiramente operacional e razoável uma gestão coletiva do coletivo.”, opina novamente Pierre Levy.
Com o ciberespaço surgiram novamente condições para que o homem, fazendo uso da técnica, consiga de um modo verdadeiramente operacional e razoável a gestão coletiva das coisas públicas. A comunicação em tempo real, permitida pelo ciberespaço, de certo modo representa o retorno à comunicação tribal, aproximando as pessoas e colocando por terra a afirmação de Rousseau, segundo qual “... nunca existiu verdadeira democracia, nem jamais existirá por ser contra a ordem natural que o grande número governe e o pequeno seja governado. Não se pode imaginar que o povo permaneça constantemente reunido para ocupar-se dos negócios públicos; e vê-se facilmente que não seria possível estabelecer comissões para isso sem mudar a forma da administração”.
A diferença é que agora podemos, sim, estar constantemente reunidos para ocupar-nos dos negócios públicos, pois o espaço geográfico já não é um obstáculo. O ciberespaço transformou-se em uma “ágora virtual” com um alcance muito maior do que imaginavam os atenienses.
O senador José Sarney, em seu ensaio “Imprensa e governo”, arranha a superfície desta possibilidade: “Há uma falência da democracia representativa que não pode concorrer com a massificação dos assuntos, em tempo real. Nasceu um novo interlocutor da sociedade democrática: a opinião pública, que se expressa pela mídia, que é um dos maiores ramos econômicos mundiais e influencia todos os outros negócios públicos ou privados, direta ou indiretamente”. Na verdade, este interlocutor não está na mídia, como sustenta Sarney, mas no ciberespaço.
O Voto Contínuo
Trocando em miúdos, o que se propõe é que através da internet torna-se possível a aplicação radical de conceitos de democracia direta e partitipativa, de modo a condenar paulatinamente a democracia representativa a um papel secundário. São muitos os exemplos que já podem ser pinçados mundo afora, inclusive no Brasil. Um deles é o projeto Voto Contínuo, que propõe uma Ação Popular “para mudar a Democracia como é entendida no Brasil”.
A proposta é “quebrar a estabilidade e a impunidade que beneficiam nossos representantes eleitos, quer sejam vereadores, deputados estaduais, federais, senadores ou mesmo, em casos particulares, membros do Poder Executivo e Judiciário”. Os defensores do Voto Contínuo querem que vereadores, deputados e senadores que não estiverem representando a parcela da população que os elegeu devam ser retirados do cargo tão logo se identifique, por parte de seu eleitorado, uma insatisfação com sua forma de atuar. Para isso, seriam utilizadas as ferramentas disponíveis no ciberespaço em união com a obrigatoriedade do voto aberto em todas as instâncias do legislativo.
Resumindo: durante as eleições uma opção de voto aberto (não secreto) seria oferecida ao eleitor. Aqueles eleitores que escolhessem o voto aberto ganhariam o direito de voto contínuo sobre os atos do parlamentar que ajudaram a eleger; tal voto contínuo seria vinculado ao CPF ou título de eleitor e atrelado a uma senha específica dando ao cidadão o direito de, a qualquer momento, votar a favor da interrupção do mandato do seu candidato eleito.
Em um estágio mais avançado, propõe o Voto Contínuo, poderia-se utilizar o espaço virtual dos representantes eleitos como um espaço para debate de propostas efetivas para atender às demandas da comunidade. “Além de escolher entre o que está sendo legislado, vamos também propor projetos de lei, discuti-las e entregá-las praticamente prontas ao nosso representante para que leve à votação no cenário amplo (municipal, estadual ou federal, conforme o caso)”.
“...pode-se timidamente prever que a democracia do futuro goza do mesmo juízo de valor positivo da democracia dos modernos, embora retomando em parte, através da ampliação dos espaços da democracia direta, tornada possível com a difusão dos meios eletrônicos, à democracia dos antigos.” (Norberto Bobbio)
No mesmo tom, Pierre Levy volta a iluminar a possibilidade do uso do ciberespaço como ferramenta para a construção de uma democracia participativa ao afirmar que:
“Oferecendo a Internet ao mundo, a comunidade cientifica lhe ofertou a infra-estrutura técnica de uma inteligência coletiva que é, sem dúvida, sua mais bela descoberta. Ela transmitiu assim para o resto da humanidade sua melhor invenção, aquela de seu próprio modo de sociabilidade, de seu tipo humano e de sua comunicação. Essa inteligência coletiva refinada há séculos é perfeitamente encarnada pelo caráter livre, sem fronteiras, interconectado, cooperativo e competitivo da Web e das comunidades virtuais.”
Experiências reais
O filósofo Ivo José Triches (coordenador do Centro de Pós-Graduação e Extensão das Faculdades Integradas Espírita - Fies) reuniu em sua dissertação de mestrado um apanhado de experiências reais onde o ciberespaço já é testado como ferramenta de participação democrática em diversos níveis.
Fora do Brasil as primeiras experiências foram desenvolvidas nos Estados Unidos da América, no estado de Minnesota, por meio do site e-democracy. No Brasil, aponta Triches, são várias as tentativas que buscam estabelecer a conexão entre o ciberespaço e a democracia. Uma das primeiras experiências foi realizada na Faculdade de Educação da USP, por meio do site Democracia Digital, onde o cidadão, de maneira bastante didática, é levado a perceber como é fácil exercer sua cidadania através da rede. Outra experiência em âmbito nacional foi desenvolvida na Universidade de Minas Gerais, onde um grupo de alunos, sob orientação do prof. José Eisenberg, discute o caráter democratizante da Internet. O site Democracia Direta também é uma boa referência na relação entre o ciberespaço e a democracia.
Algumas instâncias do Executivo estão dando os primeiros passos, ainda que tímidos, no uso da internet como ferramenta de participação popular. É o caso do portal do Governo Federal, do projeto de Governo Eletrônico do Paraná que utiliza a rede para disponibilizar serviços e informações para a cidadania, e da Prefeitura de Porto Alegre. Ainda que focados como instrumentos a serviço da burocracia estatal, são experiências que mostram a viabilidade do conceito.
E então?
“Das definições de democracia, como todos sabem, são muitas. Entre todas, prefiro aquela que apresenta a democracia como o poder em público. Uso essa expressão sintética para indicar todos aqueles expedientes institucionais que obrigam os governantes a tomarem as suas decisões às claras e permitem que os governados vejam como e onde as tomam.” (Norberto Bobbio)
O ciberespaço, hoje, se configura em uma força produtiva, a chamada unimídia, onde podemos ler jornais e revistas, ver televisão, ouvir rádio, enviar mensagens, fazer reunião com amigos, pesquisas em enciclopédias, consultar dicionários, tudo em tempo real. “Desse modo essa nova forma de comunicação representa também o retorno à comunicação tribal, salvo que se trata de poder fazê-lo em uma escala completamente diferente daquela do clã, da tribo... É a partir dessa perspectiva que preconizamos a possibilidade do ciberespaço nos proporcionar uma retomada à democracia direta”, afirma Triches.
As análises e exemplos citados anteriormente indicam a possibilidade da existência de uma democracia substantiva, participante, regida por princípios éticos de liberdade e igualdade social onde todos os que desejarem podem participar da vida da cidade. Tudo isso nos leva a crer que o ciberespaço está possibilitando o exercício da democracia direta, podendo nos auxiliar na construção de um novo conceito de poder que resgate a democracia em sua essência, uma democracia que, como define José Afonso da Silva, “repousa sobre dois princípios fundamentais ou primários, que lhe dão a essência conceitual: a) o da soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte do poder, que se exprime pela regra de que todo o poder emana do povo; b) a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja efetiva expressão da vontade popular; sendo que as técnicas que a democracia usa para concretizar esses princípios têm variado, e certamente continuarão a variar”. (José Afonso da Silva)
Victor Barone
BIBLIOGRAFIA
RATNER, Henrique. O resgate da Utopia http://www.espacoacademico.com.br/054/54rattner.htm
AMARAL, Roberto. A democracia representativa está morta; viva a democracia participativa. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago - Org. Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 46
LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Informação. Trad. de Carlos Irineu da Costa. Editora 34, 1ª ed., São Paulo. 1993
ROUSSEAU, J.J. Do contrato social. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 83
SARNEY, José. Imprensa e governo http://www.senado.gov.br/sf/noticia/senamidia/historico/1999/12/zn120338.htm
BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política – A Filosofia Política e as lições dos Clássicos. Trad. de Daniela Deccaccia Versiani. Editora Campus, Rio de Janeiro, 2000 p. 382).
LÉVY, Pierre. A Conexão Planetária – O mercado, o ciberespaço, a consciência. Trad. Maria Lúcia e Ronaldo Entler , 1ª ed. Editora 34, São Paulo, 2001. p. 79
BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política – A Filosofia Política e as lições dos Clássicos. Trad. de Daniela Deccaccia Versiani. Editora Campus, Rio de Janeiro, 2000 p.387
TRICHES, Ivo José. Tese de Mestrado
DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed., São Paulo: Malheiros, 2002
É pensamento corrente e defendido por muitos pensadores e filósofos contemporâneos que a democracia representativa, esta a qual nos acostumamos, está morta, não cumpre mais o papel a ela atribuído. Isso ocorre não apenas no Brasil, mas no mundo. O motivo deste apodrecimento interno da democracia representativa é a submissão dos interesses públicos ao interesse dos que detém o poder político e econômico. Estes procuram manter o estado de coisas favorável aos seus interesses, impondo-se à estrutura do Estado, corrompendo os demais em nome dos seus interesses particulares.
O professor Henrique Ratner (FEA - USP, IPT e membro da Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Lideranças - ABDL) bem define a situação que herdamos dos últimos 150 anos de desenvolvimento da democracia representativa:
“Contra a lógica impiedosa dos mercados, os utopistas nos séculos XIX e XX depositaram sua fé no Estado, virtuoso e redentor, capaz de manter o equilíbrio na luta entre as classes sociais. Conquistando o poder do Estado, estaria aberto o caminho de reformas, garantindo a ordem, a segurança e o bem-estar de todos. Tarde demais percebemos que o Estado protege os mais ricos e continua a oprimir os mais pobres e fracos, devido a uma aliança perversa entre as elites tradicionais e modernas, os donos das terras e a burguesia industrial, sustentadas e legitimadas por uma tecnocracia que age em nome de uma suposta racionalidade científica...”.
Na democracia representativa, seria de se esperar que um parlamentar representasse os interesses da população que o elegeu. De fato, isso raramente ocorre pois o sistema já não o permite. Não se trata de separar o joio do trigo, os maus dos bons políticos, o problema reside no cerne da máquina pública. Legisla-se em causa própria ou em causa de uma pequena coletividade de interesses, invertem-se as prerrogativas que deveriam defender por aquelas dos investidores e das mais variadas classes de detentores da riqueza. Daí o surgimento das bancadas de especificidades como ruralistas, usineiros, evangélicos etc, etc. O interesse público submerge sob o peso dos interesses privados.
“É impossível salvar a democracia representativa, porque ela contém uma contradição em termos: a impossibilidade de uma representação legítima (seu pressuposto), isto é, não eivada de manipulação – manipulação que apenas cresce e se agiganta e toma as formas de um moloch na sociedade de massas –, pela exigência de instrumentos de mediação que se constituem, ao mesmo tempo, em incontornáveis instrumentos de defraudação da vontade-cidadão original.” (Roberto Amaral)
De forma mais simplista, os sinais desta desagregação da democracia podem ser vistos com clareza em algumas circunstâncias que afloram do seio das sociedades modernas. A falta de confiança nos políticos é uma delas, assim como o crescente desinteresse da população pela política tradicional. Cada vez mais a democracia representativa se afasta de seu objetivo primordial, afastando governados e governantes e criando, como conseqüência, uma casta de czares que tudo pode e, em nome do povo, exerce a política do clientelismo e dos interesses particulares que a eterniza no poder.
Pois bem, o leitor deve estar imaginando se o objetivo deste artigo é propor algum tipo de ditadura que substitua a nossa declamada democracia representativa. Ela, que defende-se com unhas e dentes e apresenta-se como única alternativa civilizada para a organização social. Ledo engano.
O sufrágio universal para a escolha dos governantes e representantes nos parlamentos é, sem dúvida, uma conquista fundamental para a construção do regime de direito. No entanto, são claras as demonstrações de que ele é insuficiente para coibir os abusos de poder e, principalmente, a utilização dos recursos públicos em favor de minorias privilegiadas sem consulta ao conjunto da população nem a adoção de critérios de transparência nos processos decisórios. “De qualquer forma, escolher quem vai ser o chefe não é de modo algum a democracia. A democracia é se encarregar coletivamente de nossa vida coletiva”, sustenta Pierre Lévy, ressaltando que o voto em si não define a democracia.
Ora, se a democracia representativa está desmoronando sob seus pilares carcomidos, para onde caminharemos? A resposta pode estar na radicalização democrática, na construção de mecanismos que possibilitem a democracia participativa: “... acredito que com a informática nós dispomos, talvez pela primeira vez, de uma técnica que pode permitir de um modo verdadeiramente operacional e razoável uma gestão coletiva do coletivo.”, opina novamente Pierre Levy.
Com o ciberespaço surgiram novamente condições para que o homem, fazendo uso da técnica, consiga de um modo verdadeiramente operacional e razoável a gestão coletiva das coisas públicas. A comunicação em tempo real, permitida pelo ciberespaço, de certo modo representa o retorno à comunicação tribal, aproximando as pessoas e colocando por terra a afirmação de Rousseau, segundo qual “... nunca existiu verdadeira democracia, nem jamais existirá por ser contra a ordem natural que o grande número governe e o pequeno seja governado. Não se pode imaginar que o povo permaneça constantemente reunido para ocupar-se dos negócios públicos; e vê-se facilmente que não seria possível estabelecer comissões para isso sem mudar a forma da administração”.
A diferença é que agora podemos, sim, estar constantemente reunidos para ocupar-nos dos negócios públicos, pois o espaço geográfico já não é um obstáculo. O ciberespaço transformou-se em uma “ágora virtual” com um alcance muito maior do que imaginavam os atenienses.
O senador José Sarney, em seu ensaio “Imprensa e governo”, arranha a superfície desta possibilidade: “Há uma falência da democracia representativa que não pode concorrer com a massificação dos assuntos, em tempo real. Nasceu um novo interlocutor da sociedade democrática: a opinião pública, que se expressa pela mídia, que é um dos maiores ramos econômicos mundiais e influencia todos os outros negócios públicos ou privados, direta ou indiretamente”. Na verdade, este interlocutor não está na mídia, como sustenta Sarney, mas no ciberespaço.
O Voto Contínuo
Trocando em miúdos, o que se propõe é que através da internet torna-se possível a aplicação radical de conceitos de democracia direta e partitipativa, de modo a condenar paulatinamente a democracia representativa a um papel secundário. São muitos os exemplos que já podem ser pinçados mundo afora, inclusive no Brasil. Um deles é o projeto Voto Contínuo, que propõe uma Ação Popular “para mudar a Democracia como é entendida no Brasil”.
A proposta é “quebrar a estabilidade e a impunidade que beneficiam nossos representantes eleitos, quer sejam vereadores, deputados estaduais, federais, senadores ou mesmo, em casos particulares, membros do Poder Executivo e Judiciário”. Os defensores do Voto Contínuo querem que vereadores, deputados e senadores que não estiverem representando a parcela da população que os elegeu devam ser retirados do cargo tão logo se identifique, por parte de seu eleitorado, uma insatisfação com sua forma de atuar. Para isso, seriam utilizadas as ferramentas disponíveis no ciberespaço em união com a obrigatoriedade do voto aberto em todas as instâncias do legislativo.
Resumindo: durante as eleições uma opção de voto aberto (não secreto) seria oferecida ao eleitor. Aqueles eleitores que escolhessem o voto aberto ganhariam o direito de voto contínuo sobre os atos do parlamentar que ajudaram a eleger; tal voto contínuo seria vinculado ao CPF ou título de eleitor e atrelado a uma senha específica dando ao cidadão o direito de, a qualquer momento, votar a favor da interrupção do mandato do seu candidato eleito.
Em um estágio mais avançado, propõe o Voto Contínuo, poderia-se utilizar o espaço virtual dos representantes eleitos como um espaço para debate de propostas efetivas para atender às demandas da comunidade. “Além de escolher entre o que está sendo legislado, vamos também propor projetos de lei, discuti-las e entregá-las praticamente prontas ao nosso representante para que leve à votação no cenário amplo (municipal, estadual ou federal, conforme o caso)”.
“...pode-se timidamente prever que a democracia do futuro goza do mesmo juízo de valor positivo da democracia dos modernos, embora retomando em parte, através da ampliação dos espaços da democracia direta, tornada possível com a difusão dos meios eletrônicos, à democracia dos antigos.” (Norberto Bobbio)
No mesmo tom, Pierre Levy volta a iluminar a possibilidade do uso do ciberespaço como ferramenta para a construção de uma democracia participativa ao afirmar que:
“Oferecendo a Internet ao mundo, a comunidade cientifica lhe ofertou a infra-estrutura técnica de uma inteligência coletiva que é, sem dúvida, sua mais bela descoberta. Ela transmitiu assim para o resto da humanidade sua melhor invenção, aquela de seu próprio modo de sociabilidade, de seu tipo humano e de sua comunicação. Essa inteligência coletiva refinada há séculos é perfeitamente encarnada pelo caráter livre, sem fronteiras, interconectado, cooperativo e competitivo da Web e das comunidades virtuais.”
Experiências reais
O filósofo Ivo José Triches (coordenador do Centro de Pós-Graduação e Extensão das Faculdades Integradas Espírita - Fies) reuniu em sua dissertação de mestrado um apanhado de experiências reais onde o ciberespaço já é testado como ferramenta de participação democrática em diversos níveis.
Fora do Brasil as primeiras experiências foram desenvolvidas nos Estados Unidos da América, no estado de Minnesota, por meio do site e-democracy. No Brasil, aponta Triches, são várias as tentativas que buscam estabelecer a conexão entre o ciberespaço e a democracia. Uma das primeiras experiências foi realizada na Faculdade de Educação da USP, por meio do site Democracia Digital, onde o cidadão, de maneira bastante didática, é levado a perceber como é fácil exercer sua cidadania através da rede. Outra experiência em âmbito nacional foi desenvolvida na Universidade de Minas Gerais, onde um grupo de alunos, sob orientação do prof. José Eisenberg, discute o caráter democratizante da Internet. O site Democracia Direta também é uma boa referência na relação entre o ciberespaço e a democracia.
Algumas instâncias do Executivo estão dando os primeiros passos, ainda que tímidos, no uso da internet como ferramenta de participação popular. É o caso do portal do Governo Federal, do projeto de Governo Eletrônico do Paraná que utiliza a rede para disponibilizar serviços e informações para a cidadania, e da Prefeitura de Porto Alegre. Ainda que focados como instrumentos a serviço da burocracia estatal, são experiências que mostram a viabilidade do conceito.
E então?
“Das definições de democracia, como todos sabem, são muitas. Entre todas, prefiro aquela que apresenta a democracia como o poder em público. Uso essa expressão sintética para indicar todos aqueles expedientes institucionais que obrigam os governantes a tomarem as suas decisões às claras e permitem que os governados vejam como e onde as tomam.” (Norberto Bobbio)
O ciberespaço, hoje, se configura em uma força produtiva, a chamada unimídia, onde podemos ler jornais e revistas, ver televisão, ouvir rádio, enviar mensagens, fazer reunião com amigos, pesquisas em enciclopédias, consultar dicionários, tudo em tempo real. “Desse modo essa nova forma de comunicação representa também o retorno à comunicação tribal, salvo que se trata de poder fazê-lo em uma escala completamente diferente daquela do clã, da tribo... É a partir dessa perspectiva que preconizamos a possibilidade do ciberespaço nos proporcionar uma retomada à democracia direta”, afirma Triches.
As análises e exemplos citados anteriormente indicam a possibilidade da existência de uma democracia substantiva, participante, regida por princípios éticos de liberdade e igualdade social onde todos os que desejarem podem participar da vida da cidade. Tudo isso nos leva a crer que o ciberespaço está possibilitando o exercício da democracia direta, podendo nos auxiliar na construção de um novo conceito de poder que resgate a democracia em sua essência, uma democracia que, como define José Afonso da Silva, “repousa sobre dois princípios fundamentais ou primários, que lhe dão a essência conceitual: a) o da soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte do poder, que se exprime pela regra de que todo o poder emana do povo; b) a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja efetiva expressão da vontade popular; sendo que as técnicas que a democracia usa para concretizar esses princípios têm variado, e certamente continuarão a variar”. (José Afonso da Silva)
Victor Barone
BIBLIOGRAFIA
RATNER, Henrique. O resgate da Utopia http://www.espacoacademico.com.br/054/54rattner.htm
AMARAL, Roberto. A democracia representativa está morta; viva a democracia participativa. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago - Org. Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 46
LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Informação. Trad. de Carlos Irineu da Costa. Editora 34, 1ª ed., São Paulo. 1993
ROUSSEAU, J.J. Do contrato social. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 83
SARNEY, José. Imprensa e governo http://www.senado.gov.br/sf/noticia/senamidia/historico/1999/12/zn120338.htm
BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política – A Filosofia Política e as lições dos Clássicos. Trad. de Daniela Deccaccia Versiani. Editora Campus, Rio de Janeiro, 2000 p. 382).
LÉVY, Pierre. A Conexão Planetária – O mercado, o ciberespaço, a consciência. Trad. Maria Lúcia e Ronaldo Entler , 1ª ed. Editora 34, São Paulo, 2001. p. 79
BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política – A Filosofia Política e as lições dos Clássicos. Trad. de Daniela Deccaccia Versiani. Editora Campus, Rio de Janeiro, 2000 p.387
TRICHES, Ivo José. Tese de Mestrado
DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed., São Paulo: Malheiros, 2002
6 comentários:
Que artigo fantastico Victor! Toda vez que leio, penso ou discuto sobre a democracia e o que se fez dela nas maos erradas, eu choro. Copiosamente. E entristecedor sentir que nada realmente vale alguma coisa, muito menos a voz de um ser humano. E sobre a rede sendo um novo modo de se abracar e viver a democracia, bem... entendo, mas nao sei ate quando!
um abraco e parabens!
Victor, como é bom visitar o seu blog e ter um encontro com as palavras que dão forma poética aos sentimentos e, também, a reflexões teóricas fundamentais para o destino humano, como estas que debatem os limites da democracia representantiva e ensaia alternativas para a construção da radicalização da democracia a partir de canais diretos via o ciberespaço. Gosto muito do Pierre Levy, é uma excelente fonte para a compreensão da potencialidade das novas tecnologias. Um beijo
Me pergunto: quantas pessoas que aqui chegarem irão atrás dos links? Quantas chegam, na pressa por serem seus/suas amigo(a)s, dão uma lida superficial só pra poder fazer um comentário e vão-se embora?
Quantas vão arremangar as mangas, pegar o telefone e ligar para outra pessoa e fazer com que algo aconteça, se materialize fora do mundo das idéias?
Vamos lá amigo: é mão na massa que eu quero!
Alice e Maria, obrigado. Mas o bom mesmo é espalhar esta idéia, como sugeriu o Rafael. Passem o link para outras pessoas se puderem. Beijos e abraços.
Barone, vou tentar ser breve. Aconteceu algo muito engraçado. Estou trabalhando em minha dissertação do Mestrado e ao pesquisar tags relativas à pesquisa aparece "escrevinhamentos" como segundo resultado. Pensei: ué, conheço esse endereço. Daí entro aqui e vejo, com muita satisfação, o texto muito bem escrito - como sempre - pelo meu amigo Victor Barone. E, ainda, escrito em 2008! É interessante como muita coisa mudou de lá pra cá: hoje temos muitos exemplos do poder das mídias sociais, por exemplo, no engajamento social - vide movimentos como a Marcha contra a Corrupção, a Primavera Árabe ou mesmo a eleição do Obama. Por outro lado, muita coisa ficou parada. Por isso mesmo o tema ainda rende muita discussão. Fora a Dissertação que voce citou, há muito poucos trabalhos que falam sobre a participação democrática no ciberespaço. Prometo que, quando publicar a Pesquisa, passo aqui pra trazer algumas problematizações. Por hora, fico apenas no comentário de que o Lévy tem uns pensamentos muito interessnates sobre a Cibercultura, principalmente no começo da carreira. Depois, por algum motivo, ele parece ter se transformado num guru da sociedade em rede e tem aparecido com umas proposições difíceis de sustentar - quase infantis. Assim, encerro dizendo que a linha de investigação fará uma crítica dessa dinâmica, lembrando que a tecnologia só existe enquanto fenômeno social, ou seja, está na mão das pessoas. Importa menos saber da velocidade e amplitude da propagação das informações e mais se as pessoas entendem e estão prontas para o fazer uso do proclamado "poder" que a Internet pode conceder para a discussão de causas importantes para a sociedade. "Cenas dos próximos capítulos"...
Abração pra voce e continuamos essa conversa qualquer hora, no "real" ou no "virtual" :-)
Barone, vou tentar ser breve. Aconteceu algo muito engraçado. Estou trabalhando em minha dissertação do Mestrado e ao pesquisar tags relativas à pesquisa aparece "escrevinhamentos" como segundo resultado. Pensei: ué, conheço esse endereço. Daí entro aqui e vejo, com muita satisfação, o texto muito bem escrito - como sempre - pelo meu amigo Victor Barone. E, ainda, escrito em 2008! É interessante como muita coisa mudou de lá pra cá: hoje temos muitos exemplos do poder das mídias sociais, por exemplo, no engajamento social - vide movimentos como a Marcha contra a Corrupção, a Primavera Árabe ou mesmo a eleição do Obama. Por outro lado, muita coisa ficou parada. Por isso mesmo o tema ainda rende muita discussão. Fora a Dissertação que voce citou, há muito poucos trabalhos que falam sobre a participação democrática no ciberespaço. Prometo que, quando publicar a Pesquisa, passo aqui pra trazer algumas problematizações. Por hora, fico apenas no comentário de que o Lévy tem uns pensamentos muito interessnates sobre a Cibercultura, principalmente no começo da carreira. Depois, por algum motivo, ele parece ter se transformado num guru da sociedade em rede e tem aparecido com umas proposições difíceis de sustentar - quase infantis. Assim, encerro dizendo que a linha de investigação fará uma crítica dessa dinâmica, lembrando que a tecnologia só existe enquanto fenômeno social, ou seja, está na mão das pessoas. Importa menos saber da velocidade e amplitude da propagação das informações e mais se as pessoas entendem e estão prontas para o fazer uso do proclamado "poder" que a Internet pode conceder para a discussão de causas importantes para a sociedade. "Cenas dos próximos capítulos"...
Abração pra voce e continuamos essa conversa qualquer hora, no "real" ou no "virtual" :-)
Alessandro (vulgo Irmão)
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