Semana On

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Nós, os analfabetos funcionais

É comum no imaginário brasileiro olharmos nossos vizinhos com um certo ar de superioridade, como se o Brasil estivesse em patamar superior as demais nações latino-americanas. Apesar de ficarmos atrás apenas do Chile no que se refere à economia, a “pujança” brasileira é repleta de buracos negros, de indícios de nosso subdesenvolvimento. É o que mostra a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), divulgada nesta semana, que nos coloca atrás da Bolívia e do Suriname nos índices de analfabetismo. Estamos em 15º lugar em um ranking de 22 países da América do Sul e do Caribe.
Alguns noticiários destacaram o fato de que, assim como os demais indicadores sociais, o índice de analfabetismo também apresentou avanços em 2007, de acordo com o IBGE, atingindo o menor índice em 15 anos. O Instituto considera alfabetizado quem consegue ler e escrever pelo menos um bilhete e calcula que o país tenha 14,1 milhões de habitantes inaptos para concluir uma simples leitura ou rascunhar algumas frases.

Pelo critério mais correto, no entanto, e crescentemente adotado mundo afora - o de analfabeto funcional – a situação se mostra mais complexa. Segundo este critério, apenas 1 de cada 4 brasileiros (25% da população) seria plenamente alfabetizado. Além disso, por qualquer critério, o número absoluto de analfabetos no Brasil é maior do que o registrado em 1960 e o dobro do verificado no início do século 20, segundo pesquisa recém-concluída pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), ligado ao Ministério da Cultura (MEC).
O Analfabeto Funcional é aquele que consegue escrever um pouco, assina o nome, mas não é capaz de entender tudo o que lê, é incapaz de interpretar textos mais complexos ou de realizar simples operações matemáticas. A maioria destes brasileiros deixa a escola com menos de quatro anos de estudo e depois enfrentam limitações por toda a vida.

Recente reportagem do Jornal do Commercio, de Recife (PE), mostra o problema em seu nascedouro ao entrevistar alunos da Rede Municipal de Ensino. Um menino da 6ª série do ensino fundamental escrevia kaia no lugar de casa; no lugar de bola, bobi. A palavra mala foi grafada baga. Lata foi escrita aia. Em outra escola, um estudante de 14 anos negou-se a ler um pequeno texto do livro de ciências, ciente de sua deficiência. Na verdade, segundo uma professora, o menino não sabia ler. “Em outro colégio municipal, um estudante da 5ª série, 13, aceita o pedido, mas nas primeiras frases, desiste. Atropela as palavras e confunde as letras. Pára e diz que não quer mais continuar. Questionado se entendeu o que leu, ele fica em silêncio”, continua a reportagem.

Apesar de os índices de analfabetismo serem mais fortes no Nordeste, enganam-se os que imaginam que esta realidade seja exclusividade desta região. Ela se espalha por todo o Brasil e também não se limita ao ensino fundamental. Recentemente, em uma universidade particular de Campo Grande, um aluno do curso de jornalismo expunha sua dificuldade em entender conceitos básicos de ideologia em um artigo lido em sala de aula. Segundo um professor universitário campo-grandense, “muitos alunos são incapazes de ler um texto e interpretá-lo nas entrelinhas, ou mesmo nas linhas, e de escrever um texto de uma página com coerência e coesão”.

A pesquisa do INEP aponta que o analfabeto funcional não é fruto apenas da precariedade do ensino no Brasil, mas também de hábitos familiares. A escolaridade dos pais dos analfabetos funcionais não chega à 4ª série para 71% dos casos e apenas 6% passaram da 8ª série. A pesquisa indica que os hábitos de leitura da família e a presença de livros em casa afetam o nível de alfabetização. Normalmente quem cresceu em um ambiente em que a leitura não era valorizada hoje não tem o hábito de ler.

Segundo dados recentes do Instituto Paulo Montenegro (braço social do Ibope), no Brasil o analfabetismo funcional atinge cerca de 68% da população (30% no nível 1 e 38% no nível 2 – Veja o Box 1). Somados esses 68% de analfabetos funcionais com os 7% da população que é totalmente analfabeta, resulta que 75% da população não possui o domínio pleno da leitura, da escrita e das operações matemáticas, ou seja, apenas 1 de cada 4 brasileiros (25% da população) é plenamente alfabetizado, isto é, está no nível 3 de alfabetização funcional.

Este drama se reflete diretamente na formação do brasileiro, em sua capacidade de raciocínio e de produção. É o que mostra pesquisa para tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP), realizada no final do ano passado pelo professor de finanças e consultor de empresas Geraldo Galhano, segundo a qual trabalhadores alfabetizados não conseguem compreender informações fundamentais para o desenvolvimento da atividade profissional. Um exemplo prático ocorre em uma montadora de São Bernardo (SP), onde simples manuais de instruções de equipamentos ou comunicados do departamento de Recursos Humanos tornam-se enigmas indecifráveis para 78,5% dos funcionários de um setor da produção.

Com base no Produto Interno Bruto (PIB) das indústrias brasileiras e no percentual médio destinado pelas empresas a desenvolvimento de pessoal, estima-se que as companhias do país perdem entre US$ 6 bilhões e US$ 10 bilhões em razão do analfabetismo funcional. Isso porque, muitas vezes as empresas treinam funcionários que não entendem a mensagem transmitida, o que prejudica a produtividade.


BOX 1

O que significa Alfabetismo Funcional

A definição de analfabetismo vem, ao longo das últimas décadas, sofrendo revisões significativas como reflexo das próprias mudanças sociais. Em 1958, a UNESCO definia como alfabetizada uma pessoa capaz de ler e escrever um enunciado simples, relacionado a sua vida diária. Vinte anos depois, a UNESCO sugeriu a adoção dos conceitos de analfabetismo e alfabetismo funcional. Portanto, é considerada alfabetizada funcional a pessoa capaz de utilizar a leitura e escrita e habilidades matemáticas para fazer frente às demandas de seu contexto social e utilizá-las para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida.

Quais os níveis de alfabetismo funcional em relação às habilidades de leitura e escrita

Analfabeto - não consegue realizar tarefas simples que envolvem decodificação de palavras e frases;
Nível 1 - Alfabetismo nível rudimentar: corresponde à capacidade de localizar informações explícitas em textos muito curtos, cuja configuração auxilia o reconhecimento do conteúdo solicitado. Por exemplo, identificar o título de uma revista ou, em um anúncio, localizar a data em que se inicia uma campanha de vacinação ou a idade a partir da qual a vacina pode ser tomada;
Nível 2 - Alfabetismo nível básico: corresponde à capacidade de localizar informações em textos curtos (por exemplo, em uma carta reclamando de um defeito em uma geladeira comprada, identificar o defeito apresentado; localizar informações em textos de extensão média); e
Nível 3 - Alfabetismo nível pleno: corresponde à capacidade de ler textos longos, orientando-se por subtítulos, localizando mais de uma informação, de acordo com condições estabelecidas, relacionando partes de um texto, comparando dois textos, realizando inferências e sínteses.

Quais os níveis de alfabetismo funcional em relação às habilidades de matemáticas.

Analfabeto - não consegue realizar operações básicas com números como ler o preço de um produto ou anotar um número de telefone;
Nível 1 - Alfabetismo nivel rudimentar: corresponde à capacidade de ler números em contextos específicos como preço, horário, números de telefone etc.;
Nível 2 - Alfabetismo nível básico: corresponde à capacidade de dominar completamente a leitura de números, resolver operações usuais envolvendo soma, subtração e até multiplicação, recorrendo facilmente à calculadora, mas não possuindo a capacidade de identificar a existência de relação de proporcionalidade;
Nível 3 - Alfabetismo nível pleno: corresponde à capacidade de controlar uma estratégia na resolução de problemas mais complexos, com execuções de uma série de operações relacionadas entre si, apresentando familiaridades com mapas e gráficos, e não apresentando dificuldades em relação à matemática.


BOX 2

A importância da escolaridade no Indicador de Alfabetismo Funcional

- A maioria dos brasileiros (64%) entre 15 e 64 anos que estudaram até a 4ª série atinge no máximo o grau rudimentar de alfabetismo, ou seja, localizam somente informações explícitas em textos curtos e efetuam operações matemáticas simples, mas não compreendem textos mais longos nem definem estratégias de cálculo para resolução de problemas.
- E ainda mais grave: 12% destas pessoas podem ser consideradas analfabetas absolutas em termos de leitura/escrita, não conseguindo codificar palavras e frases, mesmo que simples, além de terem dificuldade em lidar com números em situações do dia-a-dia.
- Dentre os que cursam da 5ª a 8ª série, apenas 20% podem ser considerados plenamente alfabetizados e 26% ainda permanecem no nível rudimentar, com sérias limitações.
- Enquanto 47% dos que cursaram ou estão cursando o Ensino Médio atingem o nível pleno de alfabetismo, esperado para este grau de escolaridade, outros 45% ainda permanecem no nível básico.
- Somente entre aqueles que atingem ou completam o Ensino Superior observa-se uma maioria (74%) com pleno domínio das habilidades de leitura/escrita e das habilidades matemáticas.

Victor Barone

1 comentário:

Alice Salles disse...

É uma vergonha, o analfabetismo no Brasil, e esse ar de superioridade também é! Mostrando que se realmente fossemos assim tão melhores saberíamos cuidar melhor de nossas crianças e nosso povo, os dando a educação necessária para ser um cidadão consciente.