Afinal, que história é esta de demarcações indígenas em Mato Grosso do Sul? Quando a Fundação Nacional do Índio (Funai) publicou suas seis portarias com o intuito de iniciar estudos em 26 municípios do estado para identificar e delimitar terras indígenas dos povos guaranis-caiovás e guaranis-nhandevas o céu desabou. Produtores rurais, políticos e jornalistas alertaram para um cataclisma econômico. Defensores dos direitos dos índios levantaram a voz para apontá-los. Independente das opiniões divididas sobre a questão indígena no Brasil, é necessário abordar o tema com distanciamento, sob pena de reproduzirmos meias-verdades.
É fato que a política indigenista promovida pelo Governo Federal e pela Funai nas últimas décadas é perniciosa (em especial para os próprios índios). Excluindo as poucas tribos isoladas, com pouco ou nenhum contato com a cultura do homem branco, a maioria das populações indígenas do país está imersa em bolsões entranhados em meio à civilização. Estes índios há muito abandonaram seu modo de vida dependente da coleta e da caça. Vivem, isso sim, do paternalismo governamental, de sub-empregos nas cercanias das tribos ou da devastação de suas terras (basta perguntar quem são os maiores contrabandistas de madeira na Amazônia). São espectros vagando entre um passado de tradições e um presente pontilhado pela presença inexorável do homem branco.
Dizer que estas populações precisam de terras para manter suas tradições é tapar o sol com a peneira, é alimentar o romantismo arcaico que domina muitas linhas de pensamento filosófico e antropológico no Brasil. Estas populações precisam, sim, ter sua cultura preservada e incentivada, mas isso só é possível com cidadania. Muitas tribos norte-americanas mantém suas tradições imersas na cultura branca e com isso ganham em educação, formação técnico-científica e cultural o que, por conseqüência, leva desenvolvimento e melhores condições de vida a estes mesmos povos.
Portanto, é necessário repensar o tema. Nesta semana, o presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), antropólogo Carlos Caroso, publicou artigo no Jornal O Estado de São Paulo, no qual trata da reivindicação indígenas por terras em Mato Grosso do Sul. Ele garante que o alarde feito por produtores rurais não tem razão de ser. Diz que “as terras reivindicadas poderão alcançar aproximativamente de 500 mil a 600 mil hectares - 1,4% a 1,7% do território do Estado, e não 33%, como apregoado na mídia”.
Para Caroso – alinhado com o pensamento que viceja entre os indigenistas brasileiros – 44 mil hectares de terra (quantidade de terra a disposição dos guaranis no estado atualmente) é insuficiente para que os 43 mil indivíduos que compõem a população guarani em MS se desenvolvam e vivam em paz. Um hectare por pessoa. É o que os índios sul-mato-grossenses possuem hoje. É pouco? Se forem desapropriados 500 mil hectares cada índio no estado será dono de mais de 10 hectares.
É certo que a mobilização dos produtores rurais peca pelo exagero ao dizer que o estado poderia perder 12 milhões de hectares, correspondendo aproximadamente a um terço do território estadual. Colocaram no mesmo saco todas as terras passíveis de vistoria; optaram por espalhar o temor por entre a população. No entanto, o cerne da preocupação procede. Afinal, pensar em perder um centímetro de terra produtiva em uma época em que a produção de riqueza se faz tão necessária para o estado é algo difícil.
O filósofo Denis Lerrer Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), resumiu bem a questão em recente artigo que, apesar de também estar calcado em previsões superlativas quanto à quantidade de terras a serem desapropriadas, expõe a real preocupação dos que criticam a política da Funai.
Rosenfield alega que, seguindo-se a filosofia da Fundação, a maior parte da orla brasileira poderia ser desapropriada e entregue a nações indígenas: “Quais foram às primeiras cidades a que chegaram os portugueses? Salvador e Rio de Janeiro. É de todos conhecido, por relatos históricos e quadros, que se tratava de regiões tradicionalmente ocupadas por indígenas. Se fôssemos seguir esse argumento à risca, chegaríamos à conclusão de que estamos diante de terras indígenas, que deveriam ser demarcadas”, argumenta.
A questão transcende interesses regionais ou de classe. A pergunta que deve ser feita é se estamos dispostos a ceder imensas quantidades de terras a grupos indígenas que já se encontram à orla da civilização e que – até que se prove o contrário – continuarão vivendo em condições sub-humanas, com ou sem terra, pelo simples fato de que sua cultura está equilibrada sobre a fina navalha da civilização.
É preciso deixar de lado o romantismo paternalista de muitos indigenistas e as visões apocalípticas dos produtores rurais para estabelecer critérios que possibilitem aos povos indígenas condições mínimas de sobrevivência e desenvolvimento diante da inevitável proximidade da civilização. Para isso, no entanto, é preciso mexer em um vespeiro no qual poucos homens públicos teriam coragem de colocar a mão.
Victor Barone
2 comentários:
Victor, há um ou dois meses, recebi um e-mail interessante que contém uma matéria veiculada no jornal O Estado de São Paulo, de autoria do Prof. Rosenfield, também (não saberia dizer se é o mesmo). Contém ainda, uma escritura pública onde um índio delata a situação vivida pelo seu povo, aliado ao problema de demarcação de terras no estado. Vale a pena ler. Vou te mandar o e-mail. O assunto é "Brasil: MS pede socorro". Um abraço, Barone!
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