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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Zelota - Reza Aslan



Terminei de ler hoje “Zelota: a vida e os tempos de Jesus de Nazaré”, do hisroriador iraniano, radicado nos Estados Unidos, Reza Aslan. Lançado no ano passado, o livro liderou a lista de mais vendidos do The New York Times e da Amazon e desbancou até recordistas de vendas como a britânica J.K.Rowling. Em 2014, chegou ao Brasil. E é de tirar o fôlego. 
 
Aslan defende a seguinte tese: Jesus, ao contrário do que prega a Igreja Católica, não foi um pacifista que, diante da violência “oferecia a outra face” e amava os inimigos. Jesus foi um revolucionário, cujo objetivo principal era expulsar os romanos da Judeia, criar um reino de Deus na Terra e assumir seu trono. “A maior parte dos cristãos pensa que Jesus não tinha ambições políticas ou terrenas, que foi um pacifista de boas ações. O que não percebem é que no tempo de Jesus religião e política eram a mesma coisa”, argumenta, com a autoridade de quem possui um doutorado e especializações em história das religiões e 20 anos de estudo sobre as origens do cristianismo

Zelota é uma palavra derivada do aramaico. Significa “Alguém que zela pelo nome de Deus”. Sua origem está ligada ao movimento político judaico que defendia a rebelião do povo da Judeia contra o Império Romano. Os zelotas pretendiam expulsar os romanos pela força.  Essa é a função do Messias. Se ele (Jesus) se intitulava o Messias, o que queria dizer é que era o descendente do rei David, que tinha vindo para estabelecer o trono de David na terra. É tão simples quanto isso. Ou nunca pensou que era o Messias; ou pensou e a sua tarefa era remover a ocupação romana. Era o que se esperava do Messias”, afirma o autor.

Como diz Aslan na introdução da sua obra, é um milagre que saibamos alguma coisa sobre o homem chamado Jesus de Nazaré. Pois sua figura não era incomum na Palestina dominada pelos romanos. “O pregador itinerante, vagando de cidade em cidade clamando sobre o fim do mundo e sendo seguido por um bando de maltrapilhos, era uma visão comum no tempo de Jesus - tão comum, de fato, que havia se tornado uma espécie de caricatura entre a elite romana”, afirma.

O século I foi uma era de expectativa apocalíptica entre os judeus da Palestina, a designação romana para a vasta extensão de terra que abrange os atuais Estados de Israel/Palestina, bem como grande parte da Jordânia, Síria e Líbano. Inúmeros profetas, pregadores e messias caminhavam pela Terra Santa proclamando mensagens do iminente julgamento de Deus. Acrescente-se a essa lista a seita dos essênios, da qual alguns membros viveram em reclusão no alto do planalto seco de Qumran, na costa noroeste do mar Morto; o partido revolucionário judeu do século I, conhecido como partido zelota, ou zelote, que ajudou a lançar uma guerra sangrenta contra Roma; e os temíveis bandidos-assassinos a quem os romanos apelidaram de sicários ("homens dos punhais"), e a imagem que emerge da Palestina no século I é a de uma era imersa em energia messiânica.

É difícil enquadrar Jesus de Nazaré em qualquer um dos movimentos político-religiosos conhecidos de seu tempo, afirma Aslan. Ele era um homem de contradições profundas, um dia pregando uma mensagem de exclusão racial ("Eu fui enviado apenas às ovelhas perdidas de Israel", Mateus 15:24), no outro, de benevolente universalismo ("Ide e fazei discípulos de todas as nações", Mateus 28:19); às vezes clamando por paz incondicional ("Bem- aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus", Mateus 5:9), às vezes promovendo violência e conflitos ("Se tu não tens uma espada, vai vender teu manto e compra uma", Lucas 22:36).

O Jesus histórico

O problema de situar o Jesus histórico é que, fora do Novo Testamento, não há quase nenhum vestígio do homem que iria alterar de modo permanente o curso da história humana. A referência não bíblica mais antiga e mais confiável de Jesus é do historiador judeu Flávio Josefo, do século I (morto em 100 d.C.). Em uma breve passagem na sua obra Antiguidades, Josefo escreve sobre um sumo sacerdote judeu chamado Ananus que, após a morte do governador romano Festo, condenou ilegalmente um certo "Tiago, irmão de Jesus, o que eles chamam de messias" a apedrejamento por transgressão da lei. A passagem prova não apenas que "Jesus, o que eles chamam de messias" provavelmente existiu, mas que pelo ano de 94 d.C., quando a obra Antiguidades foi escrita, era amplamente reconhecido como o fundador de um movimento novo e duradouro.

É esse movimento, não o seu fundador, que recebe a atenção de historiadores do século II, como Tácito (morto em 118) e Plínio, o Jovem (morto em 113), que mencionam Jesus de Nazaré, mas revelam pouco sobre ele além de sua prisão e execução. Somos, portanto, restritos às informações que possam ser obtidas a partir do Novo Testamento.

O primeiro testemunho escrito sobre Jesus de Nazaré vem das epístolas de Paulo, um dos primeiros seguidores de Jesus, que morreu por volta de 66 d.C. (a primeira epístola de Paulo, 1 Tessalônicos, pode ser datada entre 48 e 50 d.C., cerca de duas décadas depois da morte de Jesus). O problema com Paulo, no entanto, é que ele exibe uma extraordinária falta de interesse pelo Jesus histórico. Apenas três cenas da vida de Jesus são mencionadas em suas epístolas: a Última Ceia (1 Coríntios 11:23-26), a crucificação (1 Coríntios 2:2), e, mais importante para Paulo, a ressurreição, sem a qual, segundo ele, "a nossa pregação é vazia e sua fé é em vão" (1 Coríntios 15:14). Paulo pode ser uma excelente fonte para os interessados na formação inicial do cristianismo, mas é um guia pobre para se descobrir o Jesus histórico.

Restam os evangelhos, que apresentam seu próprio conjunto de problemas. Primeiro de tudo, afirma Aslan, é preciso reconhecer que, com a possível exceção do evangelho de Lucas, nenhum dos evangelhos foi escrito pela pessoa que o nomeia. Isso é verdade para a maioria dos livros do Novo Testamento. “Tais obras, chamadas pseudoepigráficas - obras atribuídas a um autor específico, mas não escritas por ele -, eram extremamente comuns no mundo antigo e não devem ser, de forma alguma, consideradas falsificações”, alerta. Mas, mesmo estas obras não são relatos de testemunhas oculares das palavras e atos de Jesus. Eles são testemunhos de fé compostos por comunidades de fé e escritos muitos anos depois dos acontecimentos que descrevem. Simplificando, os evangelhos nos dizem sobre Jesus, o Cristo, e não sobre Jesus, o homem.

A teoria mais aceita sobre a formação dos evangelhos, "A teoria das duas fontes", sustenta que o testemunho de Marcos foi escrito algum tempo depois de 70 d.C., cerca de quatro décadas depois da morte de Jesus. Marcos tinha à disposição um conjunto de tradições orais e talvez um punhado de tradições escritas que haviam sido repassadas pelos primeiros seguidores de Jesus durante anos. Ao adicionar uma narrativa cronológica a este amontoado de tradições, Marcos criou um gênero literário totalmente novo chamado evangelho, palavra grega (evangelion) para "boa notícia". Duas décadas depois de Marcos, entre 90 e 100 d.C., Mateus e Lucas, trabalhando de forma independente um do outro e tomando o manuscrito de Marcos por modelo, atualizaram a história do evangelho, adicionando suas próprias e exclusivas tradições, incluindo duas narrativas - diferentes e conflitantes -  da infância e uma série de histórias de ressurreição elaboradas para satisfazer seus leitores cristãos.

Juntos, esses três evangelhos, Marcos, Mateus e Lucas, tornaram-se conhecidos como os sinópticos (grego para "vistos juntos"), porque eles mais ou menos apresentam uma narrativa e uma cronologia iguais sobre a vida e o ministério de Jesus, que é muito em desacordo com o quarto evangelho, o de João, que foi provavelmente escrito logo após o fim do século I, entre 100 e 120 d.C.

Estes são os evangelhos canônicos. Mas eles não são os únicos. “Temos hoje acesso a uma biblioteca inteira de escrituras não canônicas, escritas principalmente nos séculos II e III, que fornecem uma perspectiva muito diferente sobre a vida de Jesus de Nazaré”, alerta Aslan. Estas incluem o evangelho de Tomé, o evangelho de Filipe, o Livro Secreto de João, o evangelho de Maria Madalena e uma série de outros chamados "evangelhos gnósticos", descobertos no alto Egito, perto da cidade de Nag Hammadi, em 1945. Embora eles tenham sido deixados de fora do que se tornaria o Novo Testamento, esses livros são importantes na medida em que demonstram a dramática divergência de opinião que existia sobre quem era Jesus e o que Jesus significava, mesmo entre aqueles que andaram com ele, que compartilharam seu pão e comeram com ele, que ouviram suas palavras e oraram com ele.

Revolucionário

No final, há apenas dois fatos históricos efetivos sobre Jesus de Nazaré nos quais se pode realmente confiar, afirma o pesquisador: o primeiro é que Jesus foi um judeu que liderou um movimento popular judaico na Palestina no início do século I d.C.; o segundo é que Roma o crucificou por isso.

Por si sós, esses dois fatos não podem fornecer um retrato completo da vida de um homem que viveu há 2 mil anos. “Mas quando combinados com tudo o que sabemos sobre a época tumultuada em que Jesus viveu - e graças aos romanos sabemos bastante -, esses dois fatos ajudam a pintar um retrato de Jesus de Nazaré que pode ter mais precisão histórica do que o pintado pelos evangelhos. Na verdade, o Jesus que emerge desse exercício histórico - um revolucionário fervoroso arrebatado, como todos os judeus da época o foram, pela agitação política e religiosa da Palestina do século I - tem pouca semelhança com a imagem do manso pastor cultivado pela comunidade cristã primitiva”.

Aslan argumenta, com bases históricas, que a crucificação era uma punição que Roma reservava quase exclusivamente para o crime de sedição. A placa que os romanos colocaram acima da cabeça de Jesus enquanto ele se contorcia de dor - "Rei dos Judeus" - era chamada de titulus, e, apesar da percepção comum, não era para ser sarcástica. Todo criminoso que era pendurado em uma cruz recebia uma placa declarando o crime específico pelo qual estava sendo executado. O crime de Jesus, aos olhos de Roma, foi o de buscar o poder político de um rei (ou seja, traição), o mesmo crime pelo qual foram mortos quase todos os outros aspirantes messiânicos da época. E Jesus também não morreu sozinho. Os evangelhos afirmam que em ambos os lados de Jesus estavam pendurados homens que, em grego, eram chamados lestai, uma palavra muitas vezes traduzida como "ladrões", mas que, na verdade, significa "bandidos" e era a designação romana mais comum para um insurreto ou rebelde.

Três rebeldes em uma colina coberta de cruzes, cada cruz com o corpo torturado e ensanguentado de um homem que ousou desafiar a vontade de Roma. Essa imagem por si só deveria lançar dúvidas sobre a interpretação dos evangelhos de Jesus como um homem de paz incondicional quase totalmente isolado das convulsões políticas de seu tempo. “A ideia de que o líder de um movimento messiânico popular pedindo a imposição do ‘Reino de Deus’ - um termo que teria sido entendido, tanto por judeus quanto por gentios, como implicando revolta contra Roma - pudesse ter permanecido sem envolvimento com o fervor revolucionário que atingiu quase todos os judeus na Judeia é simplesmente ridícula”, diz o autor.

De revolucionário a sagrado

Por que então os escritores dos evangelhos iriam tão longe para amainar o caráter revolucionário da mensagem e do movimento de Jesus? Para responder a essa pergunta, Aslan sugere que devemos primeiro reconhecer que quase toda história dos evangelhos escrita sobre a vida e a missão de Jesus de Nazaré foi composta após a rebelião judaica contra Roma, em 66 d.C. Naquele ano, um grupo de rebeldes judeus, estimulado por seu fervor por Deus, levou seus companheiros judeus à rebelião. Milagrosamente, os rebeldes conseguiram libertar a Terra Santa da ocupação romana. Durante quatro anos, a cidade de Deus esteve de novo sob controle judaico. Então, em 70 d.C., os romanos voltaram. Depois de um breve cerco a Jerusalém, os soldados violaram as muralhas da cidade e desencadearam uma orgia de violência contra seus residentes. Quando o massacre foi completado, os soldados atearam fogo ao Templo, aos prados de Jerusalém, as terras cultivadas e as oliveiras.

“Tudo queimado. Tão completa foi a devastação praticada sobre a Cidade Santa que Josefo escreve que nada fora deixado que provasse que Jerusalém já tinha sido habitada. Dezenas de milhares de judeus foram massacrados. O resto foi levado acorrentado para fora da cidade”, explica.

O trauma espiritual enfrentado pelos judeus após esse evento catastrófico foi tão grande que, exilados da terra a eles prometida por Deus, forçados a viver como párias entre os pagãos do Império Romano, os rabinos do século II gradual e deliberadamente divorciaram o judaísmo do nacionalismo messiânico radical que tinha iniciado a guerra malfadada com Roma. A Torá substituiu o Templo no centro da vida judaica, e surgiu o judaísmo rabínico.

Aslan argumenta que os cristãos também sentiram necessidade de se distanciarem do fervor revolucionário que levara ao saque de Jerusalém, não só porque isso permitia à Igreja primitiva afastar a ira de uma Roma profundamente vingativa, mas também porque, tendo a religião judaica se tornado pária, os romanos tinham se transformado no principal alvo de evangelismo da Igreja. Assim começou o longo processo de transformar Jesus de um nacionalista judeu revolucionário em um líder espiritual pacífico, sem nenhum interesse em qualquer assunto terreno. Esse era um Jesus que os romanos podiam aceitar, e de fato aceitaram três séculos mais tarde, quando o imperador romano Flávio Teodósio (morto em 395) fez do movimento do pregador judeu itinerante a religião oficial do Estado, e nascia o que hoje reconhecemos como o cristianismo ortodoxo.

A obra de Reza Aslan traz também dados fundamentais para a compreensão das origens do cristianismo através da disputa entre duas vertentes do movimento nas primeiras décadas após a morte de Jesus: os “hebreus”, cristãos liderados por Thiago (irmãos de Jesus) e Pedro, que não apartavam sua crença das bases do judaísmo, e os “helenistas”, liderados por Paulo, que rompiam radicalmente com o judaísmo em busca de uma nova religião que alçava Jesus ao patamar do divino, filho de Deus, o que não ocorrera até então.

O processo que culminou, a partir daí, na transformação de uma seita judaica do século I na maior religião do planeta é magistralmente construído por Aslan, especialmente em sua descrição do Credo de Niceia, em 325 d.C., quando, convocados pelo recém convertido imperador Constantino, dois mil bispos definiram as bases do Novo Testamento, transformando para sempre a leitura que o mundo faria de Jesus e de sua história nos próximos 1687 anos.

“De fato, se nos comprometermos a colocar Jesus firmemente dentro do contexto social, religioso e político da época em que ele viveu - uma época marcada por uma persistente revolta contra Roma que iria transformar para sempre a fé e a prática do judaísmo -, então, de certa forma, sua biografia se escreve por si própria. O Jesus que é revelado nesse processo pode não ser o Jesus que esperamos, e ele certamente não será o Jesus que os cristãos mais modernos reconheceriam. Mas, no final, ele é o único Jesus que podemos acessar por meios históricos. Todo o resto é uma questão de fé.”,  finaliza Aslan.

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