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terça-feira, 23 de abril de 2013

Lendo Lolita em Teerã - Azar Nafisi



"O problema não é a religião, mas quando a religião se transforma em Estado, quando a religião vira lei." - Azar Nafisi

A iraniana Azar Nafisi,  tem um mundo a contar. Parte dele está em seu livro mais festejada, "Lendo Lolita em Teerã" (A Girafa, 502 páginas), cuja leitura finalizei ontem. Lançada no Brasil em 2004, a obra desvela um retrato sensível – às vezes chocante – da situação das mulheres no Irã, submetidas ao fanatismo do regime islâmico, através da experiência de Nafisi e de sete de suas alunas da época em que ela lecionava na Universidade de Teerã.

Por dois anos, desafiando a repressão do regime dos aiatolás, elas se encontraram semanalmente no apartamento de Nafisi para discutir autores proibidos no país - como Henry James, Jane Austen, Scott Fitzgerald  e Vladimir Nabokov - e exorcizar seus próprios demônios.

Nascida em Teerã, Nafisi deixou seu país aos 13 anos para estudar na Europa e nos Estados Unidos. Retornou ao Irã em 1979, logo após a Revolução Islâmica, e lá permaneceu por dezoito anos. Uma das "filhas da revolução", Nafisi era uma entre muitos intelectuais iranianos que apoiaram a derrubada do Xá  Reza Pahlavi mas que se viram enredados no totalitarismo islâmico.

Cansada de lutar contra a "atmosfera de terror", decidiu voltar para os EUA. "Para uma mulher, viver no Irã é comparável a fazer sexo com o homem que ela mais odeia, é um estupro dissimulado", diz Nafisi.

Esta tortura diária é exposta por Nafisi com maestria ao tecer, no livro, comentários trançados sobre a vida no Irã sob os aiatolás e os livros que debatia com seus alunos e alunas nas aulas de literatura inglesa que ministrou em universidades e, depois, de forma velada em sua própria casa.

Em uma recente entrevista, quando questionada sobre o motivo que a levou a elencar "Lolita" como a obra inspiradora para suas reuniões literárias e, posteriormente, como ponto de partida para seu livro, Nafisi expôs toda a força política e social que a literatura carrega e que , muitas vezes, passa ao largo de nossas percepções imediatas.

Disse ela: "Na literatura de ficção, o romance de Nabokov é uma das representações que mais se aproximam do regime totalitário em que vivíamos. Vai muito além de 1984, de George Orwell, que se tornou um símbolo do autoritarismo. Mais do que expor a dor física e a tortura das ditaduras, Nabokov transmite em Lolita como é apavorante viver num estado de terror permanente. A tragédia maior da história não é o estupro de uma menina de 12 anos por um senhor, mas o confisco de uma vida individual por outra. Lolita é uma menina que não tem para onde ir. Ela depende de Humbert, o personagem que faz de tudo para possuí-la, tenta transformá-la em sua fantasia, em seu amor, mas a destrói. Ela satisfaz os desejos dele porque não há outra saída, porque sempre é levada a crer que será recompensada. Ela é o tipo de pessoa que não pode articular a própria história. Assim é a vida numa sociedade totalitária. Um mundo de solidão, em que o Estado é o salvador e o carrasco."

A seguir, alguns trechos pinçados do livro, cuja força e relevância me cativaram:

Durante cerca de dois anos, quase todas as quintas-feiras pela manhã, com chuva ou com sol, elas vinham à minha casa e, em quase todas as vezes, eu não conseguia me recuperar do choque de vê-las tirar sua sobrigatórias túnicas e véus, e explodir em cores.

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"A curiosidade é a insubordinação em sua forma mais pura." - Nabokov

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"A docilidade do prisioneiro é um orgulho da prisão" - Nabokov em Invitation to a Beheading

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Todo conto de fadas oferece o potencial para superar os limites presentes e, assim, num certo sentido, os contos de fadas oferecem liberdades que a realidade nos nega.

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Humbert, como a maioria dos ditadores, estava interessado somente em sua própria visão das outras pessoas. - Nafisi falando do personagem de Nabokov em Lolita.

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Eles invadem todos os espaços privados e tentam moldar cada gesto para nos forçar a nos tornarmos um deles, o que em si mesmo é uma outra forma de execução.

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O Partido Comunista Tudeh e a Organização Marxista Fedayin apoiavam os radicais reacionários contra os que chamavam de liberais.

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A melhor ficção sempre nos força a questionar o que não damos importância, porque damos como certo.

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Nos Estados Unidos, quando gritávamos Morte a isso ou a aquilo, essas mortes pareciam mais simbólicas, mais abstratas, como se a impossibilidade dos nossos slogans nos encorajasse a insistir neles ainda mais. Mas em Teerã, em 1979, esses slogans se tornavam realidade com uma precisão macabra. Sentia-me impotente e indefesa: todos os sonhos e todos os slogans se tornavam verdades, e não havia como escapar deles.

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A maioria dos grupos revolucionários concordava com o governo sobre a questão das liberdades individuais, que eles condescendentemente chamavam de "burguesas" e "decadentes". Isso facilitou a promulgação de algumas das leis mais reacionárias pela nova elite dominante, que chegou a ponto de criminalizar certos gestos e a expressão de emoções, como o amor... Baniu o balé e a dança, e avisou às bailarinas que elas podiam escolher entre atuar e cantar. Mais tarde, as mulheres foram proibidas até de cantar, porque a voz de uma mulher, como seu cabelo, era sexualmente provocante e deveria se manter oculta.

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Não queria discutir com Mahtab e suas amigas, cuja organização marxista havia tacitamente ficado ao lado do governo, denunciando os que protestavam como discordantes, divisores e, em última análise, como instrumentos a serviço dos imperialistas. De algum modo, acabei discutindo, não com o senhor Bahri, mas com elas, as ostensivamente progressistas. Elas afirmavam que existiam peixes maiores a fritar, que precisávamos primeiro lidar com os imperialistas e seus lacaios. Concetrar-se nos direitos das mulheres era individualista e burguês, e fazia o jogo deles.

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Sentados na sala da união dos estudantes, bebendo café ou Coca-Cola, nossos camaradas, atrapalhando o flerte que rolava na mesa vizinha, se inflamavam e defendiam os direitos das massas de torturar e eliminar fisicamente os seus opressores. Ainda lembro de um deles... argumentando que existiam dois tipos de tortura, dois tipos de assassinato - aqueles cometidos pelo inimigo, e aqueles cometidos pelos amigos do povo. Era legal assassinar os inimigos.

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Será que meus antigos camaradas previram que um dia eles seriam julgados pelo Tribunal Revolucionário, torturados e mortos como traidores e espiões? Será que eles poderiam prever, senhor Bahri? Posso lhes dizer com certeza absoluta que eles não previram. Nem em seus sonhos mais alucinados.

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... o maior pecado é ficar cego diante dos problemas e do dofrimento das outras pessoas. Não enxergar esses problemas e esses sofrimentos significa negar sua existência.

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Um grande romance eleva suas percepções e sua sensibilidade sobre as complexidades da vida e dos indivíduos, e impede que você, da sua hipocrisia, encare a moralidade através de fórmulas determinadas sobre o bem e o mal.

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Só depois que cheguei em casa que compreendi o verdadeiro sentido do exílio. Enquanto caminhava por aquelas ruas ternamente amadas, amorosamentre relembradas, senti que esmagava as memórias que jaziam no caminho.

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Pensar que as universidades seriam fechadas parecia tão artificial quanto a possibilidade de as mulheres finalmente sucumbirem a usar o véu... O comitê foi autorizado a expulsar docentes e alunos indesejáveis... Se os esquerdistas chegassem ao poder, eles fariam a mesma coisa.

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O assunto não era o véu, mas a liberdade de escolha... Pouco e mal sabia que em breve me seria dada a escolha entre usar o véu ou ser presa, açoitada e talvez morta se desobedecesse.

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Certo dia, na primavera de 1981, tornei-me irrelevante.

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Um aiatolá implacável, um filósofo-rei cego e improvável, decidira impor seu sonho sobre um país e sobre um povo, e nos recriar segundo sua própria visão míope.

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Por causa da esmagadora objeção das mulheres às novas leis, o governo impôs os novos regulamentos nos locais de trabalho e depois nas lojas, que ficaram proibidas de atender mulheres sem véu. A desobediência era punida com multas em dinheiro, com até setenta e cinco chibatadas e com a prisão. Mais tarde, o governo criou os notórios esquadrões da moralidade: quatro homens armados e uma mulher, em carros toyota de patrulha, monitoravam as ruas e asseguravam o cumprimento  das leis.

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Não tinha compreendido o quanto as rotinas da vida criam uma ilusão de estabilidade.

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Desta vez abrimos os portões, não para os invasores estrangeiros, mas para os domésticos, aqueles que voltaram para nós em nome de nosso próprio passado, mas que distorceram cada milímetro dele e nos roubaram Ferdowsi e Hafez.

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Era um lugar pequeno, um bar em seus dias pré-revolucionários, agora encarnado num café. Pertencia a um armênio, e verei para sempre ao lado do nome do restaurante, em letras miúdas na porta de vidro, o aviso compulsório em grandes letras pretas: MINORIA RELIGIOSA. Todos os restaurantes administrados por não-muçulmanos tinham que exibir esse aviso em suas portas para que  os bons muçulmanos, que consideravam sujos todos os não-muçulmanos, e que não comiam nos mesmos pratos ou bebiam nos mesmos copos ou xícaras, pudessem ser advertidos com antecedência.

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"Quem quer que lute com monstros", Nietzsche dissera, "deve cuidar para que no processo não se torne um monstro. E quando você olha longamente para o abismo, o abismo também olha dentro de você."

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"Graças a Deus que você é um fracasso - foi o motivo pelo qual o distingui! Qualquer outra coisa atualmente é muito abominável. Olhe ao seu redor - veja os sucessos. Você seria um deles sobre a sua honra?" - Henry James em Os Embaixadores.

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Essas são pessoas que conscientemente escolheram o fracasso para preservar seu próprio senso de integridade... Eles se isolaram em si mesmos, e fervilharam em seus sonhos destroçados.

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Aqueles nas associações islâmicas haviam provado o gosto e o poder das coisas ocidentais: eles usaram seu poder, sobretudo, para usufruir privilégios negados a outros.

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De fato, às vezes me parecia que nossa época era mais ficcional do que a própria ficção.

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Como todos os fazedores de mitos, ele tentara moldar a realidade pelo seu sonho e, no final, como Humbert, conseguira destruir tanto a realidade quanto o sonho. Adicionada aos crimes, aos assassinatos e às torturas, naquele momento tivemos que enfrentar essa última indignidade - o assassinato dos nossos sonhos. Ainda assim, ele o fizera com a nossa completa aquiescência, o nosso total assentimento e cumplicidade.

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Meus anos de juventude testemunharam a chegada de duas mulheres ao ministério. Depois da revolução, essas mesmas duas mulheres foram sentenciadas à morte, pelos pecados de antagonizar a Deus e disseminar a prostituição. Uma delas, a ministra para os assuntos das mulheres, estava no exterior na época da revolução, e permaneceu no exílio, onde se tornou uma importante porta-voz dos direitos das mulheres e dos direitos humanos. A outra, a ministra da educação e antiga diretora da minha escola secundária, foi colocada num saco e apedrejada até morrer.

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Todos precisamos criar um paraíso  para escapar

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Mais do que qualquer outra coisa, sinto falta da esperança.

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Tenho uma fantasia recorrente de que mais um artigo foi acrescido à Declaração de Direitos Humanos: o direito ao acesso livre à imaginação. Cheguei à conclusão e agora acredito que a genuína democracia não pode existir sem a liberdade de imaginar e sem o direito de usar obras ficcionais sem quaisquer restrições. Para possuir a totalidade de uma vida, precisamos ter a possibilidade de modelar e de expressar publicamente mundos, sonhos, pnsamentos e desejos privados, de ter constantemente acesso a um diálogo entre  omundo público e o mundo privado. De que outra maneira nós saberemos que existimos, sentimos, desejamos, odiamos e tivemos medo?

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