
Há um momento, porém, em que uma palavra pronunciada e cuspida por muitas bocas, manipulada e abusada por muitas mãos incautas, torna-se imaculada. E ninguém sabe precisamente o motivo, não se pode percorrer o inverso do caminho para entender. Acontece, e basta.
Escutando Maria sussurrar aquele verso, pareceu-me, afinal, ter entendido tudo, como se ela me tivesse transmitido o mais precioso dos ensinamentos, aquele que eu tinha ido buscar longe, no fundo de baús de palavras, nos complexos questionamentos metafísicos, e que, no entanto, estava ali, simples e claro. Jogando os dados no tabuleiro dos pensamentos e aforismos, eu havia buscado respostas que não me satisfizeram, que nada me revelaram. E, agora, toda vez que me falta o conhecimento, que me falta a definição, toda vez que não percebo o sentido último, sei bem qual é a verdade do amor. A única que o peito ainda escuta e compreende: o contrário da morte.” (Págs. 63 e 64)
Assim o jornalista e escritor napolitano Roberto Saviano encerra seu segundo livro, “O contrário da morte: cenas da vida napolitana”, lançado no rastro do retumbante sucesso de “Gomorra” (2006), obra que vendeu quase dois milhões de exemplares em todo o mundo, inspirou uma peça de teatro homônima - que ganhou o prêmio das Olimpíadas de Teatro 2008 para Melhor Novo Escritor Italiano - e um filme que ganhou o Prémio do Júri no Festival de Cannes.
O conto que dá nome ao livro foi publicado originalmente no jornal Correio de la Sierra. Posteriormente, atendendo pedidos de seus editores, Saviano escreveu outra história, “O Anel”, e compilou ambas neste livro. “O contrário da morte” foi escrito com Saviano escondido, vigiado 24 horas por guarda-costas, proibido de circular naturalmente por sua cidade natal, sob pena de ser assassinado pela Camorra, a máfia italiana em que se infiltrou e que denunciou nas páginas de seu primeiro livro.
“Não nos compete decidir quanta esmola pedir ao azar, o que nos cabe e por que nos cabe.” (Pág. 20)
“O contrário da morte” reúne dois relatos que apresentam ao leitor a dura realidade do sul da Itália, região onde os jovens, para escapar da miséria e da falta de perspectivas, são lançados ao Exército ou a Camorra. Nestes dois contos, que não ocupam mais do que 77 páginas, o jornalista descreve as conseqüências desta falta de horizontes sobre a juventude e a submissão da população à violência que domina suas vidas.
A Itália de Saviano é, em certos aspectos, muito parecida com o Brasil. É inevitável uma relação entre o submundo comandado pela máfia, seus territórios mantidos a ferro e fogo, seu domínio sobre as vidas das pessoas e a realidade das favelas brasileiras, onde grupos armados, traficantes e milícias tomam posse do território fazendo com que os cidadãos vivam sob as suas leis. Da mesma forma, é clara a relação entre a situação destes jovens italianos e os das comunidades brasileiras que enxergam nestes grupos uma saída para a total ausência de futuro.
A desvalorização da vida humana, a estratégia do terror como arma de dominação é também um paralelo a ser traçado entre a massa de italianos do sul, expostos ao domínio da Camorra e a uma economia dilacerada, e os brasileiros que inflam os bolsões de pobreza de nossas grandes cidades e alimentam as estatísticas da violência gratuita.
“Quando morre um sexagenário, quando se morre de doença, o luto se restringe aos parentes mais próximos. Quando morre um jovem, ele deve ser de todos. Como um peso a ser compartilhado ou um infortúnio do qual não se pode escapar.” (Pág. 33)
Os dois contos
No primeiro conto, que dá nome ao livro, Saviano conta a história de Maria, uma jovem de 17 anos, cujo noivo, Enzo, alistou-se voluntariamente no exército para integrar as forças italianas no Afeganistão, com a esperança de conseguir o dinheiro necessário para o casamento. Enzo morre carbonizado dentro de um tanque, após a explosão de uma mina, adiando para sempre os planos de felicidade de Maria. Com este pano de fundo, Saviano expõem a falta de opções dos jovens italianos, que, expostos a subempregos, se submetem às forças armadas como alternativa à miséria.
O segundo conto do livro, “O Anel”, torna ainda mais próximo o drama de italianos e brasileiros que vivem sob a sombra da impunidade e dos poderes paralelos. O conto tem como ponto de partida o desconforto de Saviano ao receber em sua cidade uma amiga do norte e, mais tarde, sua revolta ao deparar-se com o preconceito em relação às jovens vítimas da violência, que, diante de uma visão hipócrita e estereotipada, têm, obrigatoriamente, que ter uma parcela de culpa para terem sido alvos da barbárie engendrada pela Camorra.
"O Anel" conta a história do pedreiro Vincenzo e do marceneiro Giuseppe, de uma reunião de amigos em um domingo, em numa praça de Nápoles, e da violência da Camorra que ceifa vidas como quem despreza um dejeto qualquer. Qualquer relação com o recente assassinato do jovem Alcides do Nascimento, no Recife, não é mera coincidência.
“A mãe de Giuseppe, desde então, passa os dias na rua. Sentada numa cadeira, perto do tal bar. A qualquer um com que cruza o olhar, ela pergunta: ‘Você aí, vai chamar o Giuseppe pra mim. Ele sempre chega tarde da noite... Amanhã tem que ir trabalhar.’ Todos respondem: ‘Já estou indo', e aí apertam o passo. A mulher observa até onde a miopia lhe permite, ou até que os vultos desaparecem dobrando a esquina, e, então, lentamente, se vira, baixa a cabeça e continua a esperar.” (pág. 91)
Para quem não conhece a história de Saviano, vale uma explicação.
Roberto Saviano nasceu em Nápoles, em 22 de setembro de 1979. Formou-se em Filosofia na Universidade de Nápoles Federico II e, como jornalista, colaborou com veículos como o L'Espresso, La Repubblica e outras revistas incluindo Nuovi Argomenti, Lo Straniero, Nazione Indiana, Sud, além de ter participado de várias antologias como Best Off. Il meglio delle riviste letterarie italiane (2005) e Napoli comincia a Scampia (2005).
Em 2006 lançou Gomorra, uma denúncia contundente do crime organizado na Itália. A partir daí, começou a receber ameaças de morte, o que obrigou as autoridades italianas a fornecer-lhe proteção policial 24 horas por dia. Desde 13 de outubro de 2006 ele vive na clandestinidade e tem de mudar continuamente os seus movimentos por razões de segurança.
A justiça italiana revelou planos contra a vida do escritor arquitetados pelo clan Casalesi, família ligada a Camorra, que teria escalado Giuseppe Setola para a missão. O ministro dos Assuntos do Interior, Giuliano Amato, designou que Saviano saísse de Nápoles e passasse a contar com um grupo de guarda-costas. No outono de 2008, Carmine Schiavone, primo do chefe do clan Casalesi, Francesco Schiavone – que se encontra preso – revelou às autoridades que o grupo planejava matar Saviano e sua escolta no Natal, nas proximidades da auto-estrada entre Roma e Nápoles, em um atentado à bomba. No mesmo período, o escritor anunciou que iria deixar a Itália para não ter que viver como um refém.
Em 20 de outubro de 2008, seis intelectuais e autores premiados com o Nobel (Orhan Pamuk, Dario Fo, Rita Levi Montalcini, Desmond Tutu, Günter Grass e Mikhail Gorbachev) publicaram um artigo no qual declararam seu apoio a Saviano em seu confronto com a Camorra, e declararam que a organização criminosa não é apenas um problema de segurança pública, mas também uma ameaça a democracia. Eles disseram, ainda, que o governo italiano deveria garantir a vida de Saviano e ajudá-lo a retomar sua vida com normalidade. Em apoio a carta, o jornal La Repubblica iniciou uma coleta de assinaturas em apoio ao autor.
Em 10 de dezembro de 2009, na presença do Prêmio Nobel Dario Fo, Saviano recebeu o título de Membro Honorário da Academy of Fine Arts of Brera e o Second Level Academic Diploma in Communication and Art Teaching Honoris Causa, o mais alto reconhecimento oferecido pela Brera Academy.
2 comentários:
Barone, muito bom o artigo sobre o livro e escritor. Esse, certamente, vou comprar. Suas dicas são valiosas. beijo.
Depois de muito tempo, eis-me aqui e lá também. Será que ainda lembra-se de mim? Finalmente o sistema de comentários voltou a funcionar. Espero que goste do que acabei de publicar.
Com o mesmo carinho de sempre, folhas secas deste Outono.
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