Semana On

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O verdadeiro alvo

Afinal de contas, quem exatamente o governo de Israel quer atacar, quando avança sobre a Faixa de Gaza? É este o subtítulo do ensaio publicado pelo filósofo Vladimir Safatle no UOL. O texto expõe o assunto de forma aprofundada, desvendando dogmas que têm impedido o debate.

“De fato, encontramos todos os dias artigos e mais artigos sobre o problema. Mas a grande maioria está bloqueada pela profusão infindável de preconceitos toscos, assim como amálgamas intelectualmente desonestos e apressados, produzidos por ambos os lados. Isto, quando não se entra no mais raso psicologismo”, afirma Safatle.

Em três páginas, o autor desfia os principais paradigmas do tema, lançando uma luz sobre idéias pré-concebidas que têm sido repetidas à exaustão por ambos os lados. A seguir, um resumo do artigo:

Direito de Defesa

O direito de defesa é inquestionável. Israel, como qualquer nação, tem o direito e o dever de defender sua soberania, como ocorreu legitimamente nas guerras de 1967 e de 1973. O crescimento do caráter beligerante do fundamentalismo islâmico, representado na região pelo Hamas, é outro fator que deve ser levado em conta. No entanto, deve-se perguntar se a manutenção do conflito é a maneira mais inteligente de os israelenses sentirem-se seguros.

O direito de defesa seria correto se aplicado à relação entre Israel e Palestina, dois estados soberanos. “No entanto, este direito não pode ser aplicado quando se trata de ações referentes à gestão de um território ocupado ilegalmente”. É o que ocorre hoje diante do direito internacional. A ONU (mesma instituição que criou o Estado de Israel) reconhece à Palestina o estatuto jurídico de "território ocupado", ocupação considerada totalmente ilegal pelas resoluções 242 e 338 há mais de 40 anos.

Além disso, como apontou o ex-presidente estadunidense Jimmy Carter, o caminho para a paz passaria por negociação direta com o Hamas e com a suspensão do bloqueio a Gaza. Estas duas medidas colocariam Israel no caminho da legalidade e impediriam que a humilhação palestina se transformasse em “solo fértil para o crescimento do apoio ao grupo islâmico”.

O exemplo está ao lado: o Irã estava em um claro movimento de abertura de seu regime e normalização de relações internacionais quando, em 2005, a invasão no vizinho Afeganistão interrompeu o processo. “O desejo iraniano de transformação em potência nuclear foi resultado de um cálculo simples: os EUA invadiram o Iraque mesmo sem mandato da ONU e não invadiram a Coréia do Norte (com suas ameaças à "ordem mundial") porque o primeiro não tinha armas nucleares”.

Fundamentalismos e terrorismos

Um dos principais argumentos utilizados pelos israelenses para não negociar com o Hamas é que o grupo não reconhece o Estado de Israel. É fato, é difícil negociar com quem não o reconhece como interlocutor. Isso acontece com o Hamas em relação a Israel, mas também ocorre com o partido israelense Likud (que lidera as pesquisas eleitorais), cuja carta programática simplesmente não reconhece o direito à existência de um Estado palestino.

Ainda assim, durante o governo do likudista Benjamin Netanyahu, Yasser Arafat negociou com Israel. “Se Arafat fez, os políticos israelenses também podem fazer. Diga-se de passagem, mesmo aquilo que o atual partido governista Kadima propõe aos palestinos, além de ignorar frontalmente todas as resoluções da ONU a respeito dos territórios ocupados, dificilmente pode ser chamado de ‘Estado’, pois não leva em conta princípios fundamentais de autonomia e autodeterminação”.

Os israelenses costumam, ainda, alegar que não negociarão com terroristas, repetindo "as mesmas palavras usadas pela administração colonial britânica na Palestina, referindo-se a grupos judaicos de luta armada, atuantes nos anos 40, como o Irgun e o grupo Stern”. Em uma carta ao New York Times, datada de 4 de dezembro de 1948, Albert Einstein e Hannah Arendt referiram-se ao futuro primeiro-ministro de Israel, Menachen Begin, como terrorista. Begin era o líder do futuro Likud, do qual saiu o atual primeiro-ministro israelense, Ehud Olmert.

Fortalecendo o islamismo radical

“Cada palestino morto significa a consolidação de um sentimento de humilhação e descrença em relação à negociação política. E o que é expulso do campo simbólico da política retorna sob a forma de violência real. Por sinal, esta foi a equação que sempre alimentou o Hamas e que continuará a alimentá-lo. Pois não se destrói um grupo armado aumentando seu apoio popular.”.

De fato, as tentativas de "aniquilar" militarmente o Hamas aumentaram sua força: “... pois tais ações militares criaram o quadro narrativo ideal para que ele aparecesse, aos olhos dos palestinos, como representante legítimo da resistência à ocupação”.

Em 1994, na época dos acordos de Oslo, a popularidade do grupo não passava de 15%. Hoje, ela é assustadoramente alta.

Israel: a única democracia

É comum o argumento de que Israel é a única democracia da região, cercada por um mar de estados autocráticos e baseados no fundamentalismo religioso. Ocorre que desde a década de 50 o Ocidente vem minando todas os movimentos de auto-determinação dos países do Oriente Médio e aliando-se a ditaduras vergonhosas por simples interesse político-econômico.

A conspiração contra o líder nacionalista iraniano Mossadegh é um caso emblemático desta estratégia. “Por outro lado, os regimes mais corruptos e totalitários da região são apoiados de maneira irrestrita pelo Ocidente (Paquistão, Arábia Saudita, Jordânia, Tunísia, Egito - cujo "presidente" Hosni Mubarak está no poder há meros 37 anos). Ou seja, a experiência cotidiana de um árabe em relação aos valores modernizadores e democráticos ocidentais é que eles servem apenas para justificar o contrário do que pregam.”.

O retorno à tradição religiosa com suas promessas de revitalização moral é sempre uma tendência. Por isto, os movimentos islâmicos contam com forte apoio popular, “e este é o caráter verdadeiramente dramático da situação. Desmontar este apoio popular só é possível criando alternativas políticas reais e com forte potencial de transformação social”.

A esquerda e o sócio do Hamas

Outra crítica persistente dos que querem colocar uma pedra sobre o debate é dizer que a esquerda apóia o Hamas contra Israel por enxergar neste último um posto avançado do imperialismo. Safatle desfaz esta visão rasa com um parágrafo consistente:

“... se houver esquerdistas dispostos a admitir certa complacência ideológica perigosa com grupos como o Hamas, devemos dizer claramente: não há compromisso possível entre a esquerda e um grupo claramente antissemita e reacionário. Ao contrário, ele representa tudo aquilo contra o qual lutamos, já que foi a esquerda que elevou o antissemitismo a um dos crimes mais inaceitáveis”.

Por outro lado, é possível traçar um paralelo entre os interesses do Hamas e da direita israelense, que se perpetua no poder desde a época de Netanyahu.

Graças ao fundamentalismo islâmico, a direita têm conseguido atingir seus antagonistas: os judeus esquerdistas, anticomunitaristas e pacifistas de Israel e do mundo. Desde o acordo de Oslo, estes radicais direitistas vêm minando os esforços pela paz com enfrentamentos entre colonos judeus (que ocupavam ilegalmente terras palestinas) e o exército israelense que culminaram no assassinato de Yitzhak Rabin por um colono judeu.

“... ficou claro que o avanço do processo de paz só seria possível através de uma confrontação corajosa com este núcleo teológico-político que sempre serviu de alimento para uma parte de seu imaginário como nação. No entanto, isto seria simplesmente a morte da direita israelense com seu comunitarismo indisfarçável e seus partidos religiosos que visam colonizar o campo social com narrativas mítico-religiosas.”.

Portanto, para manter sua visão do estado, a direita israelense optou por boicotar o processo de paz e enfraquecer qualquer movimento social que lhe oferecesse oposição. Para isso, “alimentou a popularidade de um grupo de fanáticos islâmicos através de uma escalada de provocações, ações militares e humilhações ao governo da Autoridade Palestina. Foi assim que a direita israelense e o Hamas cresceram juntos a partir do final do governo Rabin. Um precisa do outro para existir. Foi assim também que os grupos judaicos pela paz, espalhados pelo mundo, foram impiedosamente esvaziados.”.

Dois povos, um estado

Safatle faz uma leitura interessante sobre a solução para o conflito: a criação de um Estado binacional reunindo judeus e palestinos. Para ele, a criação de um Estado palestino não é viável economicamente “e serviria apenas de dormitório para mão-de-obra barata e sem direitos trabalhistas a ser explorada por seus vizinhos”.

Gaza é uma faixa de terra árida com 11 km de largura e 44 km de extensão. A Cisjordânia é do tamanho do Distrito Federal. “Não se constrói um Estado com tão pouco”, sustenta filósofo.

A proposta de um estado binacional levaria a criação de “uma dinâmica sociopolítica realmente transformadora, com poder irradiador para toda a região”. Os críticos desta visão unificadora sustentam que um estado binacional significaria uma derrota para ambos os lados. “Bem, neste caso, devemos dizer claramente: nenhum povo tem direito a ter um Estado, pois o ímpeto fundamental do Estado moderno é a dissociação radical entre Estado, nação e povo”, rebate Safatle.

Apontando a saída

A conclusão do raciocínio lúcido que Safatle nos oferece é baseada na superação dos paradigmas que hoje mantém “ocidente” e “oriente” em campos opostos, unidos apenas pelos frangalhos dos interesses político-econômicos. Recomendo a leitura de todo o artigo, mas especialmente de sua conclusão, uma luz sobre o tema em meio a tanta irresponsabilidade que os “donos da verdade” – de ambos os lados – insistem propagar.


Vladimir Safatle é professor do departamento de filosofia da USP e autor, entre outros, de "A Paixão do Negativo: Lacan e a Dialética" (Unesp, 2006), "Lacan" (Publifolha, 2007) e "Cinismo e Falência da Crítica" (Boitempo, 2008).

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