Semana On

domingo, 1 de janeiro de 2006

José Genoíno 04/08/03

Publicada no dia 04/08/2003 no jornal O Estado de Mato Grosso do Sul.

Mudanças sociais serão realizadas sem ruptura
O presidente nacional do PT alerta para os perigos da pressa nas reformas

Victor Barone

O presidente nacional do PT, José Genoíno, tem uma "batata quente" nas mãos: administrar um partido que se divide entre a responsabilidade de governar o Brasil e adequar seu discurso a realidade de "ser governo". Para Genoíno, apesar da crise interna com os chamados radicais, apesar dos conflitos e desacertos com os movimentos sociais, o Partido dos Trabalhadores tem alcançado seus objetivos. Neste final de semana, em visita a Campo Grande, onde participou do encontro regional do PT, o dirigente encontrou alguns minutos para falar a O Estado.

Após mais de seis meses de Governo, o PT esta no caminho certo?
Recentemente realizamos uma pesquisa interna para saber o que nossos militantes achavam destes primeiros passos. Descobrimos que 95% dos entrevistados confiam no presidente Lula, 80% acham que o governo tem um desempenho ótimo ou bom, 79% avaliam que a velocidade das mudanças que o governo está fazendo é adequada ou mais rápida do que deveria e 89% dizem que o governo tem um desempenho igual ou melhor do que as expectativas anteriores à posse. Quanto às reformas, 95% dizem que elas são importantes, 87% apóiam a reforma da Previdência, 77% são favoráveis a um regime único de previdência dos servidores públicos e dos trabalhadores da iniciativa privada, 77% concordam com a instituição do teto máximo de aposentadoria de R$ 2.400 e 59% concordam com a taxação dos inativos. Ou seja, a pesquisa comprova que o PT é um partido plural e que está tomando medidas corretas.

O PT esperava passar por esta tensão junto aos movimentos sociais?
Como já disse em outras oportunidades, este clima de confronto entre o Governo Federal e os movimentos sociais não é verdadeiro. É artificial. No entanto, é preciso reavaliar conceitos. No que diz respeito a questão da reforma agrária, por exemplo. Ela não se resume à distribuição de terras, passa também pela melhoria de assentamentos, pela viabilização do micro e pequeno produtor e da agricultura familiar, com a implantação do micro-crédito. Nossa proposta é a de promover mudanças sociais profundas no Brasil. Mas estas mudanças vão acontecer sem rupturas. Não adianta querer impor a força. Acredito que nossa relação com os movimentos sociais legítimos não será abalada.

A questão da reforma agrária interessa diretamente a Mato Grosso do Sul. O Sr. teme que o Governo perca o controle da situação?
O recrudescimento de invasões de terras e o crescimento do número de acampamentos sinalizam para a necessidade de se imprimir velocidade na implementação da reforma agrária. O aumento das pressões por parte dos movimentos dos sem-terra é conseqüência de dois fatores: o crescimento de demanda por terra por parte de camponeses e famílias pobres que vivem na periferia das grandes cidades e as expectativas desencadeadas pela eleição do presidente Lula. Quanto ao primeiro fator, o problema é histórico. Enquanto a maioria dos países resolveram os problemas de distribuição de terras ainda no século XIX, o Brasil atravessou o século XX sem resolvê-los. Quanto ao segundo fator, não resta dúvida de que o governo Lula está determinado em promover uma ampla e pacífica reforma agrária. O movimento social, no entanto, precisa perceber que a demora dos trâmites legais nas desapropriações e a escassez de recursos são limitadores da velocidade com que a reforma agrária deveria andar.

Mas qual a saída para refrear este início de processo de radicalização no campo?
Diante dessa limitação imposta pela realidade, a única saída racional e politicamente correta consiste em o governo e o movimento negociarem uma agenda realista de assentamentos. Essa agenda deveria também hierarquizar prioridades, medidas, regiões e acampamentos. A agenda negociada poderia funcionar como um mecanismo regulador do movimento e como parâmetro para que ele pudesse cobrar devidamente o governo. Em contrapartida, o movimento deveria comprometer-se em agir dentro da lei, evitando a invasão de propriedades produtivas e de prédios públicos, de pedágios. Sem dúvida, um acordo de tal magnitude permitiria diminuir sensivelmente a tensão no campo. O legislativo, o judiciário e o ministério público também deveriam ser chamados para celebrar esse acordo com o executivo e os movimentos dos sem terra. A questão da reforma agrária precisa ser focalizada como um problema de acesso a um direito e como uma questão relacionada ao desenvolvimento do país, não como uma questão ideológica relacionada a modelos de Estado e sociedade. Para o PT, a realização de uma reforma agrária ampla e pacífica é um compromisso irrenunciável. Compromisso que nasceu com o partido. Por isso, a direção do PT está comprometida com a negociação, com a busca do entendimento e de soluções para viabilizar a reforma agrária com a maior urgência possível. Somente a realização da reforma agrária acabará com o triste espetáculo dos acampamentos às margens das estradas e com as legiões de famintos se deslocando de um município para outro. A realização da reforma agrária é, também, condição imprescindível para conquistar a paz no campo.

Ainda existe esquerda no Brasil?
Com a vitória de Lula, pela primeira vez, a esquerda chegou ao governo federal. A vitória, no entanto, veio limitada por uma série de condicionantes de ordem política, definidas pelo fato de que o PT e os demais partidos de esquerda não constituem maioria na Câmara e no Senado, não têm a maioria dos governos estaduais e não governam a maioria dos municípios brasileiros. Ou seja, tanto do ponto de vista numérico quanto do ponto de vista institucional, a esquerda não é hegemônica. Claro que pelo peso específico da Presidência da República, a esquerda agregou força política significativa. Mas para governar o país em termos de parâmetros democráticos o governo foi obrigado a fazer um movimento ao centro para garantir sustentabilidade e governabilidade. Do ponto de vista do método, além de procurar alargar os espaços da democracia participativa, o governo busca implementar práticas que visem construir consensos sociais em torno das diretrizes e medidas governamentais. O governo Lula não poderia se estreitar ao ponto de colocar em risco a governabilidade e a própria durabilidade do mandato. A esquerda já tem experiências negativas e trágicas acumuladas nesse mesmo sentido, na América Latina.

Estas adequações se refletem especialmente no campo econômico?
Sim. Em primeiro lugar é preciso levar em conta a situação de crise deixada pelo governo anterior e os problemas de desconfiança que se projetavam sobre o novo governo. Neste início de governo, conseguiu-se estancar a crise e desfazer as desconfianças sobre Lula e o PT. Em segundo lugar, é preciso prestar atenção ao fato de que o novo governo assumiu compromissos pregressos, que limitam significativamente as margens de manobra da gestão econômica. Não honrar esses compromissos significaria aprofundar a crise, isolar o país do contexto internacional e decretar o fracasso prematuro do governo. Ainda no âmbito econômico, em terceiro lugar, é preciso ter consciência de que os países periféricos como o Brasil vivem numa condição de enorme dependência em relação aos países centrais e aos mercados financeiros internacionais. Essa dependência não pode ser removida por via de rupturas e sem redefinir uma nova ordem internacional. Somente com políticas de recuperação consistente de crescimento econômico, de promoção social, de aumento das exportações, de incremento da poupança interna e de redefinição de seus espaços internacionais o Brasil recuperará condições de operar com mais autonomia e mais soberania na gestão econômica.

É estranho ao PT se ver combatido no Governo por setores da esquerda?
A atitude dos indivíduos, grupos e partidos de esquerda em relação ao governo Lula, além do programa e dos objetivos históricos desse governo, precisam levar em conta as limitações políticas e econômicas impostas pela realidade. A maior parte da esquerda compreendeu ou está compreendendo essas implicações. Compreende também a necessidade de se dar tempo ao governo para que os obstáculos e entraves sejam removidos. É compreensível ainda que parte da esquerda, que não comunga com as mesmas diretrizes programáticas do PT e de seus aliados, faça uma oposição de esquerda ao governo. Espera-se, contudo, que essa oposição seja democrática e não destrutiva. Experiências recentes na Europa revelam que quando governos de esquerda sofreram uma oposição sectária e destrutiva de esquerda, quem se fortaleceu foi a direita. O que não é compreensível e não pode ser aceito é que setores do próprio PT e de partidos aliados façam oposição ao governo. O PT e seus aliados receberam uma determinação do povo para serem partidos de governo. A função de oposição foi confiada a outros partidos. Assim, não é democrático, coerente e ético permanecer no PT e na base governista e, ao mesmo tempo, fazer oposição ao governo.

O Sr. Está se referindo aos fatos relacionados a senadora Heloísa Helena e aos deputados Luciana Genro e Babá?
É preciso esclarecer que não há uma crise do partido ou do governo com as chamadas tendências radicais do PT. O que há é uma crise com alguns parlamentares que pertencem a essas tendências. Portanto, trata-se de uma crise localizada que deriva do comportamento político pessoal de integrantes dessas tendências. A crise tem como foco duas questões: a indisciplina de um ou outro parlamentar em relação à decisões partidárias e críticas à política econômica adotada pelo governo. O PT vem sendo criticado por alguns articulistas da imprensa por exigir disciplina de ação ou de voto de seus parlamentares. Antes de tudo é preciso dizer que o PT talvez seja o único partido no Brasil que garante estatutariamente a liberdade de expressão e a liberdade de opinião de seus integrantes. Garante também o chamado voto de consciência. Isto é, em questões éticas ou religiosas, o PT não obriga nenhum parlamentar a seguir a decisão do partido ou da maioria. Ressalvadas as questões de natureza ética e religiosa, o parlamentar obriga-se a seguir a decisão do partido ou da bancada. A disciplina de voto é uma prática universal, que existe em praticamente todas as democracias do mundo. A própria legislação partidária brasileira prevê a disciplina partidária em caso de fechamento de questão. A disciplina partidária ou de voto é decisiva para a existência de partidos e da própria democracia.

Está havendo pressa por parte de setores do PT no que se refere a mudanças no País?
O povo quer mudanças, o governo quer mudanças e o PT quer mudanças. Mas as mudanças são processos, muitas vezes lentos. O governo e o PT não podem promover mudanças às pressas, sem apoio da sociedade e sem apoio político. Esta forma de procedimento poderia isolar o governo e o PT e bloquear qualquer avanço significativo, no sentido de consolidar mais justiça e mais democracia no Brasil. As mudanças, a rigor, já começaram. A aposta no social e as políticas de crescimento e geração de emprego que estão sendo e serão implementadas são provas resolutas de que o governo do Lula veio para mudar o Brasil. O governo deve seguir o caminho da responsabilidade, da prudência e da ousadia. Não pode se deixar pressionar pelas veleidades voluntaristas que nada produzem, além de impotências e crises. A Venezuela está aí para nos ensinar uma dura lição.

Algumas críticas se dirigem especialmente ao posicionamento que o partido adotou no Governo, em relação às reformas.
Nos últimos meses, têm se falado sobre a suposta incoerência do PT em torno da reforma da Previdência. Esse também tem sido o mote dos chamados parlamentares radicais, que fazem oposição sistemática do partido e ao governo. Um levantamento do histórico do PT na sua relação com o tema da reforma da Previdência revela que a acusação de incoerência não procede. O que houve foi uma evolução das posições do partido, fato normal na vida política. O contato com a realidade, a interação com os outros agentes políticos e com a sociedade, a mudança do ângulo de visão e os processos de negociação inerentes aos temas políticos produzem, em todos os partidos, mudanças parciais ou profundas de suas abordagens sobre determinadas questões. Nossa proposta de reforma da Previdência é compatível com o núcleo da posição histórica do PT sobre o tema. Em relação à proposta de reforma previdenciária do governo Fernando Henrique Cardoso, o PT nunca tomou posição contra a reforma em si, mas contra alguns de seus aspectos. Mesmo assim, a bancada e o partido nunca se recusaram a negociar com o governo. A reforma da Previdência só não foi aprovada no governo passado pela ausência de condições políticas que favorecessem a construção de um consenso maior em torno da proposta. Uma diferença significativa da proposta do governo Lula em relação à proposta do governo anterior reside em que a proposta atual fixa um piso de R$ 1.058 para os aposentados do setor público. Na proposta anterior não existia esse piso. Quanto à taxação dos benefícios dos inativos do setor público, o PT foi percebendo sua necessidade num processo evolutivo.

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