Publicada no dia 7/12/2002 no jornal O Estado de Mato Grosso do Sul.
“Lula não quer que o estado seja uma grande vaca com uma teta para cada boca”
Conselheiro e amigo de Lula há duas décadas, o escritor aposta na mobilização popular
Victor Barone
O escritor Frei Betto falou ontem, em entrevista exclusiva ao jornal O Estado, que a questão da fome no Brasil será prioridade no governo Lula, independente de questões políticas e de governabilidade. Conselheiro e amigo de Luiz Inácio Lula da Silva há duas décadas ele acredita que o presidente eleito terá o suporte popular necessário para dar andamento aos 25 projetos que compõem a sua estratégia de ação social. Frei Betto fez uma ressalva a respeito dos perigos do assistencialismo. Para ele, os programas de assistência têm que estar ligados a educação, afim de que o assistido transforme-se, no futuro em um protagonista de seu destino.
Lula representa esperança para muitos. O PT não se preocupa que – com as concessões necessárias para a governabilidade – está esperança de transforme em decepção?
Acho que esta preocupação já existe na medida em que o Lula já sinalizou que no seu governo haverá uma mudança da gramática do poder. Não teremos em Brasília o social atrelado ao econômico, como temos visto até então, mas o econômico atrelado ao social. Nossa prioridade será sempre o social. Além disso, não seremos um governo que vai estar preocupado com as oscilações do mercado, mas com as oscilações da qualidade de vida da população brasileira. Então, isso muda a lógica do governo. E, mudando esta lógica de governo, este tipo de inquietação, que seria própria da lógica anterior, não poderá mais estar presente. Não seremos um governo de clientelismo, de paternalismo. Por que senão, não haveria nenhum tipo de renovação, e aí sim haveria uma grande frustração nacional gerada pela ausência de mudanças.
Mas para governar será preciso fazer concessões. E isso pode inviabilizar muitos projetos que antes eram "sonhos" dos eleitores do PT, e programas do partido.
As concessões nunca poderão ser de princípio. Elas poderão ser táticas, para segurar esta governabilidade. Mas, a governabilidade do presidente Lula será muito mais assegurada pela mobilização da sociedade brasileira do que pelo Congresso Nacional. Esta mobilização já existe a partir do momento que ele teve mais de 66% de índice de aprovação. É um governo que começa com um embasamento popular fantástico.
E como alimentar esta participação popular?
Através do projeto fome zero por exemplo, e de todos os 25 projetos sociais que fazem parte do plano de governo do PT. Cada um destes programas poderá, e deve ser, canal de mobilização social. É um desafio, não será fácil. Mas a tendência é irmos nesta direção.
É possível inverter a pauta de prioridades num país que tem compromissos com o FMI e é vulnerável ao mercado externo?
Vai ter que inverter, sim. Ou então não muda nada. Ou os 53 milhões de votos do Lula ficarão frustrados. Não adianta o FMI vir para cá achando que o modelo é o mesmo. O FMI precisa saber que há fome no Brasil. Isso não significa que vai ter calote. O Lula manterá excelentes relações com todos os organismos internacionais, mas com outras prioridades. Não terá mais essa coisa de cassino neoliberal, em que especuladores têm grandes margens de lucro a custo da miséria.
O senhor aprova a idéia da distribuição de um cartão-alimentação?
Sim, desde que o benefício esteja associado à educação cidadã. Caso contrário, o governo pode fortalecer a dependência da família carente em relação ao poder público, não estimulando-a a ter um desempenho na vida social, política ou profissional. Além disso, é preciso ter cuidado para se evitar a corrupção com o uso desses cartões.
O Sr. fez algumas críticas as políticas de cadastramento utilizadas hoje nos programas sociais em MS. Eles não são seguros?
O problema é o seguinte. Não estou dizendo aqui que alguém blefou, que houve ou há desvios, mas quando as próprias administrações do Partidos dos Trabalhadores me dizem que houve alguns erros nos cadastramentos, ou que eles não foram feitos com qualidade necessária, isto significa que temos que rever os nossos métodos, nossas formas e procedimentos. Não estou acusando ninguém de ter sonegado. Mas as coisas parecem que não retratam devidamente a geografia da fome no Brasil. Não queremos colocar em discussão a questão do benefício pago em cupom ou em dinheiro.
O governo Lula vai ter dinheiro para dar prosseguimento ao projeto Fome Zero?
Todos os indicativos que se apresentam são de que há verba sim. Está tudo dentro dos conformes. Há uma previsão de que teremos disponibilidade de aproximadamente R$ 45 bilhões destinados a questão social. Por outro lado, há também muitas parcerias internacionais sendo apresentadas, como a do Bird, e a do Banco Mundial, por exemplo. Além disso, vamos contar também com uma grande mobilização voluntária por parte da população brasileira. Sentimos a cada contato com esta gente que há um entusiasmo com o projeto. De modo que acho que não há risco de que o Fome Zero seja atrapalhado por falta de recursos. O fato é que é óbvio aos olhos de qualquer brasileiro que há fome neste país, e precisamos encontrar as políticas mais eficazes para combatê-la.
Segundo o presidente Fernando Henrique Cardoso não há fome no Brasil.
Ele fez um eufemismo. Eu acho que a colocação do presidente é a mesma coisa que chamar prostituta de mulher de vida fácil. Nem por isso ela deixa de ser prostituta, com uma vida, na verdade, muito difícil. Então, o fato é que há muita criança morrendo de fome neste país. Das cerca de 1 milhão de crianças de 0 a 5 anos que morrem anualmente na América Latina, o Brasil colabora com mais de 100 mil. Aí não dá para falar que não existe fome no país. Lula é o primeiro presidente da história que veio da miséria. Quando chegou a São Paulo, o Lula, a mãe e os irmãos foram morar na Vila Carioca, nos fundos de um bar, dividindo banheiro com bêbados. Eles tinham que molhar o pão duro na água para amolecer e poder comer. Ele pode falar em fome.
É possível reverter este quadro em quatro anos de governo?
Se não for, será um fracasso para o governo Lula.
O PT já falou muito sobre a necessidade de se criar um imposto sobre grandes fortunas, cujo recolhimento seria revertido em projetos de combate à fome. O senhor concorda e acredita que esse caminho seja seguido?
O imposto depende de uma reforma tributária. Não posso pensar no projeto de combate à fome atrelado à futura aprovação de uma reforma que vai passar pelo Congresso. Há uma sensibilidade tão grande para o fim da exclusão social que é possível mobilizar a sociedade civil independentemente de legislação processada no Congresso. Hoje, 30% da produção agrícola nacional vai para o lixo e a União poderia mobilizar exército, prefeituras e defesa civil para arrecadar esse excedente.
O Sr. veio a Mato Grosso do Sul para avaliar e somar aos planos de apoio social existentes aqui. Qual o quadro encontrado?
Em primeiro lugar, acho que a reeleição do Zeca é uma prova que a população apóia a sua índole e os objetivos do seu governo. Em segundo lugar, os programas sociais estão bem articulados. Mato Grosso do Sul tem um elenco de programas sociais exemplar, como o Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação, o Prove Pantanal, programas de moradia e de renda mínima. O estado aloca um alto índice de recursos no Bolsa Escola, por exemplo. São R$ 133 quando a nível federal são R$ 15. É algo surpreendente. Nesta nova administração vi que há a preocupação de desenvolver melhores conjuntos de políticas públicas para não só ampliar o trabalho quantitativo como também o qualitativo. Esta foi a razão de minha visita ao Estado. Vim avaliar e somar experiências a estes projetos.
Como evitar que a população fique dependente do poder público por meio destes projetos?
Qualquer beneficiado e qualquer projeto desenvolvido pelo governo na área social têm que levar em conta a inclusão social do beneficiado. O objetivo destes projetos é transformar este beneficiado em um não beneficiado no futuro. Ele será um não beneficiado, pois estará incluído socialmente. Isso não dá para ser feito universalmente, com todos os beneficiados. É preciso que haja uma política pedagógica de inclusão social que, progressivamente, vá incutindo cidadania nos núcleos de beneficiados.
Alguns adversários políticos do governador Zeca do PT consideram estes programas excessivamente assistencialistas.
O Estado não pode desenvolver políticas de assistencialismo, mas sim políticas educativas. O assistencialismo reforça a dependência ao poder público, cria vícios que são contrários ao que se pretende em um projeto social que tenha como objetivo transformar o beneficiado em um incluído e, portanto, em um sujeito político. Até mesmo em um protagonista da produção de sua própria vida. O objetivo final destes projetos é que o beneficiado possa investir em uma qualificação que lhe gere uma renda no futuro, e que ele não dependa mais de qualquer tipo de donativo. Portanto, os projetos sociais não podem ser assistencialistas. Eles precisam ser voltados para a educação do cidadão, para a inclusão social. Queremos criar cidadãos que, em médio prazo, conquistem sua independência dos benefícios públicos e participem do processo político.
Uma preocupação muito presente em Mato Grosso do Sul diz respeito a situação das crianças e adolescentes.
É uma grande preocupação. Qualquer presença marginal de crianças na sociedade é um sintoma de que a questão social chegou ao seu limite. Para você ter uma idéia, não havia crianças de rua no Brasil na época da minha infância. Não existia criança de rua na Argentina há 10 anos atrás. Não existia na Rússia até 1989. Hoje elas estão por toda a parte. Então, este é um sintoma que mostra a gravidade da situação. É preciso trabalhar na causa deste problema. E esta causa está na desestruturação da família, no desemprego. São focos sérios, que precisam ser atacados e por isso não podemos mais pensar em política social sem a convergência das demais políticas. Não basta garantir aos filhos do seu João e da dona Maria a Bolsa Escola, é preciso garantir a eles a Bolsa Alimentação, o acesso a renda mínima, o emprego. Tem que haver esta convergência. Sem isso, eles serão sempre dependentes de um beneficio que, no dia que termina, fará com que eles retornem ao estágio anterior.
Em relação a violência. O Sr. considera que vivemos hoje em um estado de guerra civil?
Diria que certas regiões do país estão sim imersas em uma guerra civil não declarada. Um país que tem 40 mil assassinatos por ano, a grande maioria, cerca de 90%, vitimando jovens com idade até 25 anos, é um país em guerra civil. A situação é grave.
Como reverter esta situação?
Em primeiro lugar através das políticas sociais e, em segundo lugar, com uma política de segurança pública. Os detalhes não sei lhe dizer, não é a minha área de pesquisa. Mas não podemos acreditar que apenas o combate à pobreza vá acabar com a violência. É preciso também enfrentar o bandido na rua, levando-o às penas previstas pela lei. Todos estes aspectos pressupõem uma imensa conjugação de esforços.
O que o povo brasileiro pode esperar do governo Lula nos próximos quatro anos?
Pode esperar um salto de qualidade neste país. Pode esperar um governo que respeita e fomenta a cidadania e, ao mesmo tempo, vai procurar ser sempre um estímulo para que o povo brasileiro não seja apenas um espectador da política pública, mas sim um protagonista dela.
E o que é que Lula espera da população nestes quatro anos que virão por aí?
Ele espera que a população participe dos projetos. O presidente não quer fazer um governo que seja uma grande vaca com uma teta para cada boca. Ele quer que todo mundo seja capaz de ir atrás dos projetos, participando ativamente como voluntários para um Brasil melhor.
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