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domingo, 24 de agosto de 2025

Mein Kampf - Adolf Hitler


 Mein Kampf: os ecos da barbárie sobrevivem entre suas principais vítimas

O centenário do manifesto nazista exige mais do que repúdio simbólico — exige vigilância contra novas formas de totalitarismo, inclusive quando camufladas sob projetos nacionalistas e pretensamente defensivos

 

Em julho de 1925, Adolf Hitler publicou a primeira edição de Mein Kampf — um amálgama tóxico de ressentimento, delírio racial e ambição totalitária que pavimentaria o caminho para o maior crime de Estado do século XX: o Holocausto.

O livro, muitas vezes tratado como peça de museu ou relíquia de um tempo irrecuperável, completa cem anos num mundo que teima em flertar com velhos fantasmas. Longe de ser apenas uma memória histórica, Mein Kampf ainda fornece o alfabeto de ideologias que negam a dignidade humana em nome da “pureza”, da “segurança” ou da “identidade nacional”.

O centenário da obra é menos sobre Hitler e mais sobre nós — sobre o quanto aprendemos, ou não, com as ruínas do século passado.

O espaço vital como argumento de dominação

Na lógica hitlerista, a ideia de Lebensraum — o “espaço vital” — justificava a expansão do Reich sobre territórios do leste europeu com base na suposta inferioridade dos povos eslavos e judeus. Era o direito autodeclarado de um povo — o povo ariano — de invadir, colonizar e aniquilar. Hoje, em pleno século XXI, a ideia de "espaço vital" ressurge com outro vocabulário, em contextos distintos, mas com consequências semelhantes: colonização, deslocamento forçado, apartheid.

É nesse ponto que a crítica progressista, sem relativizar o Holocausto, precisa apontar os perigos de aplicar a lógica de um Estado étnico-religioso sobre territórios historicamente habitados por outros povos. O sionismo moderno, especialmente após a Guerra dos Seis Dias (1967), adotou uma política expansionista que transformou a Cisjordânia e Jerusalém Oriental em laboratórios de segregação, vigilância e exclusão. Não se trata aqui de traçar igualdades simplistas entre nazismo e sionismo — o primeiro foi um projeto genocida deliberado, o segundo nasceu como um movimento de emancipação judaica. Mas a crítica ética e democrática não pode ser suspensa quando práticas de opressão, exclusão territorial e humilhação coletiva se instalam sob qualquer bandeira.

Como observou o historiador israelense Ilan Pappé, em entrevista ao Democracy Now, “a limpeza étnica da Palestina em 1948 foi deliberada e planejada, e a ocupação posterior apenas aprofundou um regime de apartheid” (Democracy Now, 2006). A crítica de Pappé é vital: ela não nega o direito de Israel existir, mas questiona o custo humano e moral de manter sua existência como um Estado que privilegia uma etnia e uma religião sobre todas as outras.

O Estado para um povo só

As Leis de Nuremberg de 1935 retiraram dos judeus alemães a cidadania e os transformaram oficialmente em inimigos do Estado. O nazismo via o “outro” não como parte da sociedade, mas como ameaça existencial. Em 2018, Israel aprovou sua própria versão legal de exclusão ao adotar a Lei do Estado-Nação Judaico, que estabelece que apenas judeus têm direito à autodeterminação no país, rebaixa o status do idioma árabe e prioriza o desenvolvimento de comunidades exclusivamente judaicas. Trata-se, como argumenta a organização israelense B’Tselem, de um regime de apartheid legalizado — não igual ao nazismo, mas também contrário à democracia liberal moderna (B’Tselem, 2021).

A distinção aqui não deve servir de atenuante: se o nazismo implementou uma política de extermínio sistemático e industrializado dentro de seu território, Israel — embora com outros métodos e narrativas — conduz, há décadas, uma política de asfixia, segregação e destruição contra o povo palestino. Desde outubro de 2023, a ofensiva israelense sobre Gaza ultrapassou a marca de 60 mil mortos, segundo fontes do próprio Ministério da Saúde de Gaza e do governo israelense, com mais de 83% das vítimas sendo civis — mulheres e crianças em sua maioria. Trata-se de um massacre com fôlego genocida, sustentado por bloqueios, bombardeios deliberados sobre infraestrutura civil, deslocamentos forçados em massa e uso da fome como arma. A retórica do “direito à defesa” já não sustenta a realidade de uma potência militar impune, que opera como ocupante e executor. Diante desse cenário, não há democracia que se sustente nem Estado que possa se esconder atrás do trauma histórico do Holocausto para justificar tamanha barbárie.

A guerra como defesa — ou como permanência do domínio?

O nazismo foi um projeto expansionista com fins de dominação continental. Já Israel construiu seu aparato militar como resposta aos traumas do Holocausto e às sucessivas guerras travadas com vizinhos árabes. Mas o que começou como defesa transformou-se, para muitos analistas, em um sistema de controle e expansão sobre terras palestinas.

O Tribunal Internacional de Justiça, em processo aberto pela África do Sul, reconheceu indícios plausíveis de genocídio por parte de Israel, ordenando medidas cautelares. Não há condenação ainda — nem deve haver julgamentos precipitados —, mas há, sim, uma obrigação moral e legal de atenção e responsabilização. Essa exigência, no entanto, esbarra em interesses políticos concretos, como os de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelense há mais de 16 anos, que enfrenta múltiplas acusações de corrupção e fraude, já em julgamento no sistema de justiça do próprio país. Caso deixe o cargo, Netanyahu perde a imunidade política que o protege da prisão.

Prolongar o estado de guerra, alimentar o medo e a polarização interna, manter a coalizão de extrema direita coesa — tudo isso serve ao seu projeto de sobrevivência pessoal. Em outras palavras, há um cálculo perverso por trás da continuidade do conflito: quanto mais sangue, mais tempo no poder. Como escreveu a jornalista israelense Amira Hass, do Haaretz, “Netanyahu precisa da guerra como do ar que respira”.

Nacionalismo e identidade como muros de exclusão

Como alertava Hannah Arendt, o nacionalismo desenfreado é o oposto do pluralismo democrático. Em Origens do Totalitarismo, Arendt lembra que “o nacionalismo se torna perigoso quando se recusa a reconhecer o direito dos outros à existência política” (Arendt, 1951). Tanto o nazismo quanto certas vertentes do sionismo político operam nessa chave de exclusividade identitária: um Estado para um povo específico, com marginalização ativa dos “não pertencentes”.

É preciso afirmar sem ambiguidade: a luta contra o antissemitismo não pode ser usada como escudo para políticas antipalestinas. Da mesma forma, a crítica ao Estado de Israel não pode ser confundida com ódio aos judeus. Confundir ambas é silenciar o debate público sob o peso da culpa histórica — e isso só serve àqueles que querem preservar o status quo da opressão.

Lutar contra as ideias de Mein Kampf é, hoje, mais do que denunciar o neonazismo explícito — que segue vivo em fóruns digitais, partidos marginais e atos de violência. É também resistir a todas as formas de autoritarismo que se disfarçam de segurança, civilização ou autodefesa. É rejeitar políticas de Estado baseadas em pureza étnica, discriminação religiosa ou segregação territorial — não importa sob que nome venham.

O verdadeiro antinazismo é universalista, democrático e anticolonial. É antirracista por princípio. E é, acima de tudo, coerente.

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