Mein Kampf: os ecos da barbárie sobrevivem entre suas principais vítimas
O centenário do manifesto nazista exige mais do que repúdio simbólico —
exige vigilância contra novas formas de totalitarismo, inclusive quando
camufladas sob projetos nacionalistas e pretensamente defensivos
Em julho de 1925, Adolf Hitler publicou a primeira edição de Mein Kampf — um amálgama tóxico de
ressentimento, delírio racial e ambição totalitária que pavimentaria o caminho
para o maior crime de Estado do século XX: o Holocausto.
O livro, muitas vezes tratado como peça de museu ou relíquia de um tempo
irrecuperável, completa cem anos num mundo que teima em flertar com velhos
fantasmas. Longe de ser apenas uma memória histórica, Mein Kampf ainda fornece o alfabeto de ideologias que negam a
dignidade humana em nome da “pureza”, da “segurança” ou da “identidade
nacional”.
O centenário da obra é menos sobre Hitler e
mais sobre nós — sobre o quanto aprendemos, ou não, com as ruínas do século
passado.
O espaço vital como argumento de
dominação
Na lógica hitlerista, a ideia de Lebensraum
— o “espaço vital” — justificava a expansão do Reich sobre territórios do leste
europeu com base na suposta inferioridade dos povos eslavos e judeus. Era o
direito autodeclarado de um povo — o povo ariano — de invadir, colonizar e
aniquilar. Hoje, em pleno século XXI, a ideia de "espaço vital"
ressurge com outro vocabulário, em contextos distintos, mas com consequências
semelhantes: colonização, deslocamento forçado, apartheid.
É nesse ponto que a crítica progressista, sem
relativizar o Holocausto, precisa apontar os perigos de aplicar a lógica de um
Estado étnico-religioso sobre territórios historicamente habitados por outros
povos. O sionismo moderno, especialmente após a Guerra dos Seis Dias (1967),
adotou uma política expansionista que transformou a Cisjordânia e Jerusalém
Oriental em laboratórios de segregação, vigilância e exclusão. Não se trata
aqui de traçar igualdades simplistas entre nazismo e sionismo — o primeiro foi
um projeto genocida deliberado, o segundo nasceu como um movimento de
emancipação judaica. Mas a crítica ética e democrática não pode ser suspensa
quando práticas de opressão, exclusão territorial e humilhação coletiva se
instalam sob qualquer bandeira.
Como observou o historiador israelense Ilan
Pappé, em entrevista ao Democracy Now,
“a limpeza étnica da Palestina em 1948 foi deliberada e planejada, e a ocupação
posterior apenas aprofundou um regime de apartheid” (Democracy Now, 2006).
A crítica de Pappé é vital: ela não nega o direito de Israel existir, mas
questiona o custo humano e moral de manter sua existência como um Estado que
privilegia uma etnia e uma religião sobre todas as outras.
O Estado para um povo só
As Leis de Nuremberg de 1935 retiraram dos judeus alemães a cidadania e os
transformaram oficialmente em inimigos do Estado. O nazismo via o “outro” não
como parte da sociedade, mas como ameaça existencial. Em 2018, Israel aprovou
sua própria versão legal de exclusão ao adotar a Lei do Estado-Nação Judaico,
que estabelece que apenas judeus têm direito à autodeterminação no país,
rebaixa o status do idioma árabe e prioriza o desenvolvimento de comunidades
exclusivamente judaicas. Trata-se, como argumenta a organização israelense
B’Tselem, de um regime de apartheid legalizado — não igual ao nazismo, mas
também contrário à democracia liberal moderna (B’Tselem, 2021).
A distinção aqui não deve servir de atenuante: se o
nazismo implementou uma política de extermínio sistemático e industrializado
dentro de seu território, Israel — embora com outros métodos e narrativas —
conduz, há décadas, uma política de asfixia, segregação e destruição contra o
povo palestino. Desde outubro de 2023, a ofensiva israelense sobre Gaza
ultrapassou a marca de 60 mil mortos, segundo fontes do próprio Ministério da
Saúde de Gaza e do governo israelense, com mais de 83% das vítimas sendo civis
— mulheres e crianças em sua maioria. Trata-se de um massacre com fôlego
genocida, sustentado por bloqueios, bombardeios deliberados sobre
infraestrutura civil, deslocamentos forçados em massa e uso da fome como arma.
A retórica do “direito à defesa” já não sustenta a realidade de uma potência
militar impune, que opera como ocupante e executor. Diante desse cenário, não
há democracia que se sustente nem Estado que possa se esconder atrás do trauma
histórico do Holocausto para justificar tamanha barbárie.
A guerra como defesa
— ou como permanência do domínio?
O nazismo
foi um projeto expansionista com fins de dominação continental. Já Israel
construiu seu aparato militar como resposta aos traumas do Holocausto e às
sucessivas guerras travadas com vizinhos árabes. Mas o que começou como defesa
transformou-se, para muitos analistas, em um sistema de controle e expansão
sobre terras palestinas.
O
Tribunal Internacional de Justiça, em processo aberto pela África do Sul,
reconheceu indícios plausíveis de genocídio por parte de Israel, ordenando
medidas cautelares. Não há condenação ainda — nem deve haver julgamentos
precipitados —, mas há, sim, uma obrigação moral e legal de atenção e
responsabilização. Essa exigência, no entanto, esbarra em interesses políticos
concretos, como os de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelense há mais
de 16 anos, que enfrenta múltiplas acusações de corrupção e fraude, já em julgamento
no sistema de justiça do próprio país. Caso deixe o cargo, Netanyahu perde a
imunidade política que o protege da prisão.
Prolongar
o estado de guerra, alimentar o medo e a polarização interna, manter a coalizão
de extrema direita coesa — tudo isso serve ao seu projeto de sobrevivência
pessoal. Em outras palavras, há um cálculo perverso por trás da continuidade do
conflito: quanto mais sangue, mais tempo no poder. Como escreveu a jornalista
israelense Amira Hass, do Haaretz, “Netanyahu precisa da guerra como do
ar que respira”.
Nacionalismo e
identidade como muros de exclusão
Como alertava Hannah Arendt, o nacionalismo desenfreado é o oposto do
pluralismo democrático. Em Origens do
Totalitarismo, Arendt lembra que “o nacionalismo se torna perigoso quando
se recusa a reconhecer o direito dos outros à existência política” (Arendt, 1951).
Tanto o nazismo quanto certas vertentes do sionismo político operam nessa chave
de exclusividade identitária: um Estado para um povo específico, com
marginalização ativa dos “não pertencentes”.
É preciso afirmar sem ambiguidade: a luta
contra o antissemitismo não pode ser usada como escudo para políticas
antipalestinas. Da mesma forma, a crítica ao Estado de Israel não pode ser
confundida com ódio aos judeus. Confundir ambas é silenciar o debate público
sob o peso da culpa histórica — e isso só serve àqueles que querem preservar o
status quo da opressão.
Lutar contra as ideias de Mein Kampf
é, hoje, mais do que denunciar o neonazismo explícito — que segue vivo em
fóruns digitais, partidos marginais e atos de violência. É também resistir a
todas as formas de autoritarismo que se disfarçam de segurança, civilização ou
autodefesa. É rejeitar políticas de Estado baseadas em pureza étnica,
discriminação religiosa ou segregação territorial — não importa sob que nome
venham.
O verdadeiro antinazismo é universalista,
democrático e anticolonial. É antirracista por princípio. E é, acima de tudo, coerente.
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