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segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O caçador de pipas - Khaled Hosseini

- Não tem problema – retruquei. E virando-me para meu sogro: - Sabe, general, o que acontece é que meu pai dormiu com a mulher do empregado dele. Ela lhe deu um filho chamado Hassan. Hassan está morto. Aquele menino, dormindo ali no sofá, é filho dele. Meu sobrinho. É isso que o senhor vai dizer às pessoas que perguntarem.
Todos ficaram me olhando.
- E tem mais uma coisa, general sahib – prossegui. – Nunca mais se refira a ele como um ‘menino hazara’ na minha frente. Ele tem nome, e esse nome é Sohrab.
” (Pág. 355).

Esta passagem de “O caçador de pipas”, romance de Khaled Hosseini que ganhou versão cinematográfica em 2007, é um bom ponto de partida para abordar a obra do ponto de vista do preconceito. Para quem nunca ouviu falar, hazara é a denominação para um povo de origem mongol que se espalhou especialmente pelo Afeganistão, Paquistão e Irã.

Vítimas de perseguição religiosa (os hazaras são sunitas mergulhados em sociedades majoritariamente xiitas) os hazaras foram, também, estigmatizados por sua origem étnica e considerados “casta inferior” por muitos séculos. Hoje, após as mudanças políticas na região, o garrote afrouxou e os hazaras começam a ocupar espaço político e social.

“O caçador de pipas” traz o assunto à tona. A história tem como pano de fundo uma série de acontecimentos políticos tumultuosos, que começa com a queda da monarquia do Afeganistão decorrente da invasão soviética (24 de dezembro de 1979), embarca na massa de refugiados afegãos que inundaram o Paquistão e os EUA e relembra a implantação do regime fundamentalista pelo Talibã com todos os horrores que se seguiram.

'Pois diga-lhe que ele está redondamente enganado. A guerra não nega a decência. Pelo contrário, exige isso, muito mais que os tempos de paz.'” (Pág. 120)

Em primeiro plano esta a relação entre Baba, seu filho legítimo Amir (que narra a história) e o menino hazara Hassan (filho ilegítimo do velho afegão), que serve de elo condutor para uma narrativa na qual a questão do preconceito pode e deve ser analisada.

Sob este aspecto, “O caçador de pipas” é muito mais que uma análise da paternidade e da amizade tendo como protagonistas dois pequenos amigos, um que enfrentaria o conflito interno de sua omissão e outro que permaneceria fiel e íntegro à amizade. Por isso, ao ler o trecho com que iniciei esta resenha, imediatamente fui remetido a uma situação que vivi recentemente na casa de uma grande amiga. Seu irmão, homossexual, introduziu o companheiro no seio familiar. O pai e a mãe fingem que não sabem o que ocorre à sua volta. Embora tratem o rapaz com carinho, guardam um preconceito velado: um considera o fato do filho ser homossexual um “karma”, a outra age como se o rapaz fosse um “amigo próximo” do filho.

Quis fugir de onde estava, fugir da realidade, subir feito uma nuvem e sair voando por aí afora, me fundir com essa noite úmida de verão e desaparecer bem longe daqui, além das colinas.” (Pág. 340)

Debatemos a situação e, resumindo a ópera, nos colocamos em posições divergentes quanto à situação. Eu – embora estivesse na tranqüilidade de quem analisa a situação de longe – considerei importante que, aos poucos, a relação fosse colocada abertamente para os pais, mesmo que isso levasse a algum tipo de conflito. Minha amiga, no contraponto, defendeu a tese de que o confronto não levaria a nada, que “não convenceria seus pais, já velhos, de algo que consideram errado devido a sua formação”.

‘É duro dizer isso’, acrescentou ele dando de ombros. ‘Mas é melhor uma verdade que dói que uma mentira que conforta.’” (Pág. 63)

Não pude deixar de relembrar esta conversa entre amigos ao ler a obra de Khaled Hosseini, pois é exatamente nesta passividade em relação ao preconceito que repousa parte da trama.

Penso que a passividade, a fuga do contraditório, embora pareça ser uma opção pela tranqüilidade, pelo bom convívio, é, na verdade, uma bomba relógio que um dia explodirá.

Foi há muito tempo, mas descobri que não é verdade o que dizem a respeito do passado, essa história de que podemos enterrá-lo. Porque, de um jeito ou de outro, ele sempre consegue escapar.” (Pág. 09)

“O caçador de pipas” é, também, uma história de lealdade, de sinceridade e bondade ressaltadas pela traição, pela mentira e pela maldade geradas pelo egoísmo, pela tendência que temos em fechar os olhos para situações desconfortáveis com o objetivo de pouparmo-nos, de evitarmos o confronto quando ele, muitas vezes, é a única saída para uma paz verdadeira.

Mas espero que pense bem nisso: um homem que não tem consciência, que não tem bondade, não sofre.” (Pág. 297)

Também permeia a obra o atrito entre o ocidente e o oriente, em especial nos trechos que se referem à vida de Baba e Amir nos EUA. O confronto cultural é gigantesco. Embora o livro se atenha timidamente as impressões dos refugiados afegãos a partir de alguns momentos de seu dia a dia, é palpável o nevoeiro que se interpõe entre estes dois mundos.

Edward Said disse, em “Orientalismo”, que o Ocidente criou uma visão deturpada do Oriente como o “outro”, o antípoda, numa estratégia de diferenciação que perpetua os estereótipos colonialistas. Khaled Hosseini concorda e destaca este estigma, mais especificamente da visão ocidental sobre o mundo árabe como uma massa homogênea ao invés de uma cultura rica e diversificada. “Estamos tratando de mais de um bilhão de pessoas que falam línguas diferentes e de uma região com grande diversidade étnica e cultural. Quando vejo, por exemplo, o Afeganistão retratado nos noticiários e programas de televisão, fico escandalizado com os inúmeros equívocos de interpretação do universo cultural afegão”, afirmou o escritor em 2007, em entrevista à Antonio Gonçalves Filho.

Esta sensação é presente no romance quando o analisamos sob o ponto de vista dos recentes acontecimentos no Oriente Médio. A Cabul retratada por Baba, a capital afegã da infância de Amir e Hassan em nada se parece com o campo de batalha entre forças ocidentais e o Talibã que, em última análise, colocou em confronto dois mundos muito diferentes.

Senti uma onda de tristeza. Estar de volta a Cabul era como ir ao encontro de um velho amigo que tínhamos esquecido, e ver que a vida não tinha sido boa para com ele; que tinha se tornado um indigente, um sem-teto.” (Pág. 248)

No fim das contas, o livro aborda uma questão muito simples e, ao mesmo tempo, complexa ao extremo: como lidar com a sinceridade. O ponto de partida da obra é exatamente esta dificuldade.

E esse é o problema das pessoas que são sinceras: acham que todo mundo também é.” (Pág. 61)

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