Semana On

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Vidas Secas - Graciliano Ramos

Na construção do cotidiano de uma família sertaneja das primeiras décadas do século XX, no romance “Vidas Secas”, Graciliano Ramos expôs o embrutecimento humano e a conseqüente impossibilidade de ultrapassar as barreiras do pensar. Exatamente por estas características a obra é tão atual, especialmente no que se refere à dificuldade que – expostos a necessidade de sobreviver matando um leão por dia – os milhões de brasileiros imersos na miséria que ainda se espalha pelos rincões deste país têm de abstraírem-se das estratégias que lhes possibilitem as necessidades mais primárias para, efetivamente, pensar.

É este o principal legado de “Vidas Secas”, um alerta contra o embrutecimento do ser humano, um aviso sobre o que ele pode causar de pior aos homens: o conformismo e a submissão.

Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito.” (Pág. 57)

Esta falta de horizontes marca toda a obra e permeia a trajetória dos personagens. Incapazes de argüir além do óbvio, se limitam a sonhos de curto alcance como uma cama de verdade, objetivo de vida de Sinhá Vitória. Ainda assim, há, no íntimo de cada um deles, uma chama que recusa apagar. É a chama que faz com que Fabiano deseje ser “homem” ao invés de “cabra”, que faz com que Sinhá Vitória acredite que logo ali, depois da próxima légua, haverá um mundo melhor, que incute nos meninos os sonhos mais loucos, a coceira das indagações sem resposta.

Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não calejassem, teriam o fim de Seu Tomás da bolandeira. Coitado. Para que lhe servira tanto livro, tanto jornal?” (Pág. 60)

Aspecto interessante da obra é a submissão. Fabiano, pai de família, trabalhador, se submete ao que for necessário para manter-se na condição de sobrevivente. Aceita os juros do patrão, as trapaças dos comerciantes, as desfeitas do soldado amarelo, as agruras da vida. Reclamar é algo que se faz a boca pequena, no escuro do casebre, sob a névoa da cachaça. Esta opressão sufocante é maestralmente conduzida no capítulo “Festa”. Fabiano, embalado pelo álcool, espalha impropérios a adversários imaginários. Chinga, pragueja, desafia o mundo na penumbra, sob a sombra da festa interiorana, “por detrás das barracas, para lá dos tabuleiros de doce”.

O trecho a seguir é, para mim, a apoteose da leitura de submissão que Graciliano Ramos incute em Fabiano. Incapaz de enfrentar o mundo a sua volta, ele sublima sua vingança em si mesmo.

Ali podia irritar-se, dirigir ameaças, desaforos a inimigos invisíveis. Impelido por forças opostas, expunha-se e acautelava-se. Sabia que aquela explosão era perigosa, temia que o soldado amarelo surgisse de repente, viesse plantar-lhe no pé a reiúna. O soldado amarelo, falto de substância, ganhava fumaça na companhia dos parceiros. Era bom evitá-lo. Mas a lembrança dele tornava-se ás vezes horrível. E Fabiano estava tirando uma desforra. Estimulado pela cachaça, fortalecia-se:

- Cadê o valente? Quem é que tem coragem de dizer que eu sou feio? Apareça um homem.

Lançava o desafio numa fala atrapalhada, com o vago receio de ser ouvido. Ninguém apareceu. E Fabiano roncou alto, gritou que eram todos uns frouxos, uns capados, sim senhor. Depois de muitos berros, supôs que havia ali perto homens escondidos, com medo dele. Insultou-os:

Ora, esta explosão de Fabiano não tem endereço. Não é contra o patrão, contra os comerciantes ou o soldado amarelo, mas contra tudo o que eles representam, as forças que o fazem ser “cabra” e não “homem”, as forças que o mantém submetido, bruto. O mais assustador, talvez, seja a possibilidade que cada um de nós temos de nos enxergarmos em Fabiano. Amarrado, amordaçado na roda vida, incapaz de espanar as engrenagens nas quais está inserido, o homem moderno – nós – pragueja na penumbra.

Os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo.” (Pág. 75)

Publicada em 1938, “Vidas Secas” é a primeira ficção de Graciliano Ramos em que a pessoa encarregada de narrar a história não é um dos personagens, mas o próprio romancista. Talvez por isso seja este o “mais humano” dos seus romances. Aliás, o único, arriscaria, em que ele expressa simpatia por um personagem. No caso, Baleia, a cadelinha.

Em meio a um cenário onde os personagens vagueiam entre o humano e o animalesco, no qual as conversas se dão por grunhidos, meias palavras, acenos de mãos e cabeças, onde as crianças são vistas como “bicho miúdo que não pensa”, onde o máximo que se pode almejar é sobreviver a mais um dia, Baleia surge como um contraponto. São dela os momentos de maior humanidade no romance. Apesar de sua passividade canina, era a ela que os meninos procuravam na tristeza, era ela que dividia com toda a família uma unanimidade afetiva.

Tão forte é o fator humano em Baleia que, mesmo baleada por Fabiano, recusa-se a morder a mão de seu companheiro. Da mesma forma que Fabiano se recusa a revoltar-se contra seus infortúnios, a cadela não pode ir contra a sua natureza. Eis aí um laço entre os dois principais personagens do romance. Fabiano, de humanidade embrutecida pela pobreza, guarda sua revolta, aceita o inaceitável, precisa sobreviver. Baleia, cujo caráter animal se vê impregnado de humanidade, não pode ir contra sua natureza de lealdade.

Esqueceu-se e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.”. (Pág. 132)

Esta relação de submissão é o que une Fabiano e Baleia, e é, em minha leitura, a amarra principal deste belíssimo romance.

2 comentários:

Adriana Godoy disse...

Belíssimo texto, Barone. Foi bom reencontrar aqui a história dessa família sob seu ponto de vista. Concordo também que a relação de Fabiano com Baleia simbolize o tema da obra. Beijo.

Fátima Lima disse...

Clássicos sempre serão clássicos.. Por isso, sempre revisitados.. Muito bom...