Semana On

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Vinte anos depois de Berlim, outros muros ainda nos envergonham

“Terrível! Esta fronteira de pedra ergue-se… ofende
os que desejam ir para onde lhes aprouver
não para um túmulo de massa
um povo de pensadores.”
Volker Braun, 1965

Nesta segunda-feira, dia 9 de novembro, precisamente às 23h, completa-se 20 anos que um dos maiores símbolos do totalitarismo veio abaixo como um castelo de cartas soprado por uma criança. O Muro de Berlim, conseqüência direta da ilusão de que o socialismo possa ser imposto de cima para baixo, durou 28 anos (do dia 13 de agosto de 1961 ao dia 9 de novembro de 1989), custou a vida de centenas de pessoas e condenou a uma divisão forçada quatro milhões de seres humanos que, até então, dividiam uma identidade. Na prática, uma cidade que até então funcionava como um único organismo urbano foi cortada ao meio com o bloqueio de 81 pontos de cruzamento e 193 ruas, separando famílias, amigos e casais, afastando trabalhadores dos seus empregos, estudantes de suas escolas.

O propósito do Muro - acabar com o êxodo dos alemães do lado oriental para o ocidental - foi justificado como uma medida adotada para acabar com o contrabando de divisas e a atividade dos espiões ocidentais. Na verdade, assim como hoje ocorre em Cuba, o regime totalitário obrigava todo um povo a viver sob sua leitura distorcida do socialismo, um socialismo que vivia (e anda vive na ilha de Fidel e Raul) sua grande controvérsia: construir uma sociedade igualitária em detrimento de todas as liberdades individuais.

Desde os primeiros momentos daquela manhã de agosto, a máquina de moer almas trabalhou incessantemente. Sua mais cruel engrenagem, a burocracia. Para atravessar a cidade, o cidadão era obrigado a passar por 18 operações de controle alfandegário, incluindo a revista das malas e bagagem, da carteira de dinheiro, do carro, além de se submeter a um estudo minucioso do passaporte – tudo isso sob a mira de policiais armados. A imensa maioria dos alemães orientais, no entanto, não reuniam credenciais suficientes nem mesmo para passar por esta maratona. Simplesmente foram condenados a viver isolados do mundo.

Vinte anos se passaram dando um fim a esta insanidade. No entanto, estas mesmas cenas, nas quais a burocracia é usada como arma de domínio sobre todo um povo, onde direitos básicos – como o de ir e vir - se perdem no burburinho obtuso da intolerância, continuam ocorrendo neste momento, diante dos nossos olhos, sem que tomemos uma atitude concreta para detê-las.

Estas cenas acontecem agora mesmo, enquanto você lê este artigo, nas fronteiras da Cisjordânia, onde um muro tão vergonhoso quanto o que dividiu Berlim por quase três décadas condena palestinos ao ostracismo e judeus ao isolamento moral; continuam acontecendo na divisa entre os Estados Unidos e o México, onde um muro fronteiriço construído sob o argumento de impedir a entrada de imigrantes ilegais separa, na verdade, o primeiro e o terceiro mundos; continuam acontecendo em Cuba, onde um muro natural formado pelo oceano isola milhões da realidade. São muros ideológicos, como o Muro de Berlim.

Um muro no deserto

O Muro da Cisjordânia começou a ser construída em 2002, durante o governo do primeiro ministro israelense Ariel Sharon com o objetivo de evitar que terroristas suicidas palestinos entrassem em Israel. Desde o início a iniciativa suscitou críticas da comunidade internacional, que considerou o muro como um símbolo de segregação.

Uma pequena parte do Muro (cerca 20%) coincide com a antiga Linha Verde e os 80% restantes situam-se em território palestino onde adentra até 22 km em alguns lugares, para incluir as densamente povoadas colônias ilegais de Israel, tais como Ariel, Gush Etzion, Emmanuel, Karnei Shomron, Guiv'at Ze'ev, Oranit e Maale Adumim.

O Tribunal Internacional de Justiça de Haia declarou o Muro ilegal em 2004. A ONU, por sua vez, classificou-o como uma tentativa – também ilegal - de anexar território palestino, violando o direito internacional a pretexto de razões de segurança. Ativistas de direitos humanos, incluindo organizações israelenses como a Machsom Watch (ou Checkpoint Watch), sustentam que a construção viola as fronteiras demarcadas pela ONU, com a apropriação indevida de territórios por Israel, e que os controles militares minam o desenvolvimento econômico do povo palestino, além de limitar a chegada de ajuda humanitária.

Você tem este enorme muro sendo construído bem no meio da Cisjordânia, como alguém pode acreditar que haverá um estado palestino ali? É um símbolo da opressão”, afirma o Rabbi Michael Lerner, da Tikkun Community.

Desde que a área localizada entre o Muro e a Linha Verde foi declarada restrita pelos militares israelenses para dar lugar ao labirinto de concreto, os palestinos que ali vivem ou que necessitam chegar às comunidades ali localizadas foram obrigados a portar vistos emitidos pelos israelenses.

Quinze comunidades palestinas reunindo cerca de 50 mil palestinos foram enclausuradas nestas áreas. Foram fisicamente separadas do resto da Cisjordânia e sua população obrigada a obter autorizações israelenses para continuar vivendo em suas casas e em suas terras.

Em 2006, um levantamento feito pela ONU analisou 57 comunidades palestinas impactadas pelo Muro e encontrou ali 94 cidadãos palestinos – a maioria mulheres e crianças - que nunca receberam o “visto”. Como resultado, estas pessoas vivem literalmente presas entre a Cisjordânia e Israel, apavoradas demais para arriscarem deixar o local e serem flagradas pelos soldados israelenses.

Os relatos que confirmam esta realidade recheada de violência e preconceito são vastos, alguns podem ser vistos no site da organização israelense B’Tselem, que se dedica a documentar violações dos direitos humanos nos territórios ocupados. Em março, por exemplo, Halimeh 'Abd Rabbo Muhammad a-Shawamreh, uma palestina de 56 anos, mãe de oito crianças e residente em uma fazenda em Deir al-'Asal al-Foqa, no distrito de Hebron, teve seu braço quebrado por um guarda do Muro, localizado a 50 metros da porta de sua casa.

Meu marido tem um defeito de nascença em sua perna esquerda e não pode trabalhar. Meu filho mais velho, Muhammad, 28, vive e trabalha em Ramallah. Meu filho Hussein, 22, foi ferido em 2004, enquanto estava pastoreando, por fragmentos de uma granada que o exército disparou durante um treinamento. Ele perdeu seu olho direito, e desde então vem sendo tratado no Sheikh Jarrach Hospital, em Jerusalém. Meu filho Fadi, 25, sofre de uma doença que ainda não foi diagnosticada. Ele vomita o tempo todo e não pode trabalhar. Nadi, 14, é epilética. Sou o esteio da família e faço o necessário para arranjar algum dinheiro”, explica Halimeh.

Em 11 de março, às 22h, ela tentava capturar o burro que lhe serve de instrumento de trabalho e que havia se soltado e corrido rumo ao Muro quando foi abordada pela Polícia de Fronteira. “Dois policiais saltaram de uma Toyota verde. Um deles pegou o cabresto do burro e o outro tentou arrancar a corda de minhas mãos e disse que eu deveria deixá-lo ir e que se o quisesse de volta deveria ir a Beersheva e pagar 1,000 shekels. Eu disse a ele que não tinha dinheiro e precisava do animal para trabalhar. Então, o policial que segurava o burro agarrou meu braço esquerdo enquanto o outro me golpeou no ombro com o rifle quebrando meu braço”, relatou Halimeh, que acabou sendo algemada - a despeito da fratura - e agredida até que os guardas resolveram liberá-la (Veja o relato completo aqui). Tudo isso ocorreu em território palestino, praticamente no quintal de Halimeh. Os invasores eram os soldados israelenses.

Além do isolamento humano e econômico, o Muro viabilizou o controle israelense da quase totalidade do Aqüífero de Basin, um dos três maiores da Cisjordânia, que fornece 362 milhões de metros cúbicos de água por ano. O controle dos recursos hídricos na região é outra forma de domínio imposta pelos israelenses sobre os palestinos. Segundo Noam Chomsky, “o Muro já abarcou algumas das terras mais férteis do lado oriental. E, o que é crucial, estende o controle de Israel sobre recursos hídricos críticos, dos quais Israel e seus assentados podem apropriar-se como bem entenderem”.

Durante sua recente viagem à Terra Santa, em maio, o Papa Bento XVI visitou a Cisjordânia. Em discurso pronunciado em uma escola, disse que o Muro pode ser derrubado, desde que Israel e os palestinos derrubem os muros em torno dos seus corações. "Embora muros possam ser construídos facilmente, todos sabemos que eles não duram para sempre. Eles podem ser derrubados. Primeiro, porém, é necessário remover os muros que construímos em torno dos nossos corações. Meu desejo mais sincero a vocês, o povo palestino, é que isso aconteça em breve. Dos dois lados do muro, é preciso grande coragem para que o medo e a desconfiança possam ser superados e para que seja possível resistir ao desejo de retaliar por perdas e feridas", afirmou o pontífice.

Para ir de Jerusalém a Belém, um trajeto de poucos quilômetros, o comboio do papa precisou atravessar portões de aço no meio da seqüência de muros de concreto, bloqueios (checkpoinsts) e torres de vigilância. Apenas uma rápida mostra do que os palestinos vivem diariamente.

Em 23 de fevereiro de 2004, Chomsky escreveu um artigo para o New York Times resumindo em poucas palavras as verdadeiras intenções por detrás do Muro da Cisjordânia. Disse ele: “Poucos questionariam o direito israelense de proteger seus cidadãos contra ataques terroristas ou mesmo de erguer um muro de segurança, se esse fosse um meio apropriado. Também é claro onde tal muro seria erguido se a segurança constituísse a preocupação orientadora: dentro de Israel, no interior da fronteira internacionalmente reconhecida, a Linha Verde estabelecida depois da guerra de 1948-49. O muro poderia então ser tão proibitivo quanto as autoridade quisessem: patrulhado pelo exército nos dois lados, pesadamente minado, impenetrável. Um tal muro maximizaria a segurança – e não haveria protesto internacional ou violação das leis internacionais.

Outro deserto, outro muro

Cerca de 5,6 mil pessoas já morreram tentando cruzar a fronteira do México com os Estados Unidos desde que o presidente Bill Clinton impulsionou o programa de segurança na fronteira em 1994. Cerca de 500 mortes ocorreram este ano, apesar das promessas de Barack Obama em estimular reformas na imigração. No entanto, estes são números estimados. Muita gente simplesmente desaparece no deserto. Morrem de sede, perdidos, são assassinados pelos “coiotes” ou por fazendeiros estadunidenses que tomam para si o patrulhamento da região.

Nos primeiros cinco meses deste ano, 160 mexicanos morreram tentando a travessia, em conflitos com fazendeiros, de sede ou desnutrição ao cruzar zonas desérticas, ou afogados ao tentar cruzar o Rio Grande, que separa o Texas do México. Na falta de guardas de fronteira e irritados com os imigrantes ilegais, fazendeiros da região, assumiram o policiamento. Neste ano três mexicanos que tentavam entrar no país pelo Arizona foram mortos por patrulhas civis e outros sete ficaram feridos.

O muro fronteiriço Estados Unidos–México, hoje com cerca de 965 km, inclui barreiras de contenção, iluminação de alta intensidade, detectores antipessoais de movimento, sensores eletrônicos e equipamentos de visão noturna, bem como vigilância permanente com veículos e helicópteros. Além de separar geograficamente a fronteira San Diego-Tijuana, o Muro é ideológico, impede a integração dos "subdesenvolvidos" com os “desenvolvidos”.

Recentemente, a secretária de Estado americana, Hillary Clinton afirmou que o Muro "não resolve o problema" do fluxo ilegal de pessoas, drogas e armas entre os dois países. Em 94, ao comentar a decisão de Clinton, o presidente mexicano, Felipe Calderón, já antecipava esta conclusão. "O muro não vai resolver nenhum problema. A humanidade cometeu um tremendo erro ao construir o muro de Berlim, e creio que hoje em dia os Estados Unidos estão cometendo um grave erro ao construir esta barreira na nossa fronteira comum".

Um muro de água

Enquanto escrevo estas linhas nesta quente noite de sexta-feira, dia 6 de novembro, acontece em São Paulo o debate “Liberdade de Expressão em Cuba”. Presentes, o senador Eduardo Suplicy, o jornalista Eugênio Bucci e o historiador e professor Jaime Pinsky (mediador). A terceira convidada, no entanto, foi impedida de participar do encontro. Trata-se de Yoani Sánchez, autora do livro “De Cuba, com carinho”, publicado pela editora Contexto, e de um dos blogs mais lidos do mundo, o Generación Y.

Yoani foi convidada a vir ao Brasil para o lançamento de sua obra, mas foi impedida de deixar o país pelas autoridades cubanas. Esbarrou, mais uma vez, nas muralhas ideológicas que mantém Cuba nas trevas. Não é a primeira vez que isso ocorre. A blogueira já teve negados diversos pedidos para sair de Cuba para receber prêmios e participar de palestras.

Essa inclinação infantil à traquinagem me permitiu suportar as negativas da viagem, o círculo radiativo em que tentam me envolver, os insultos, as campanhas de difamação, o controle da polícia política e até a neurose de possíveis microfones na minha casa. Tenho tratado de celebrar inclusive o que me tiraram, como a possibilidade de viajar, assistir as cerimônias de diversos prêmios, acessar Geração Y das redes cubanas, contatar com muitos amigos, entrar em eventos culturais no meu próprio país e presenciar o lançamento dos meus livros.

Precisamente hoje estou ébria de satisfação porque uma compilação dos meus textos, intitulada ‘De Cuba, com carinho’, será apresentada esta tarde no Brasil. Atenta às três horas de diferença que me separam do Rio de Janeiro, vou festejar as cinco da tarde a bela edição dos meus posts em português. Meus dentes serão vistos a vários metros de distância, não só porque os tenho grandes e separados, senão pela gargalhada permanente que levarei pendurada na cara. Uma risada corrosiva não compreendida pelos rostos carrancudos dos que me impediram de chegar até lá; punhalada de regozijo que corta e atravessa os que não sabem lidar com a inesperada alegria do cativo.

O trecho acima é de um post publicado no Generacion Y em 29 de outubro, dia em que “De Cuba, com carinho” foi lançado no Rio de Janeiro. Me faz crer que nenhum tipo de muro, seja ele físico ou psicológico, pode conter o espírito humano ou restringir totalmente o nosso impulso pela liberdade de pensar, questionar e ser.

5 comentários:

Adriana Godoy disse...

Barone, a primeira parte de seu artigo relativa ao muro de Berlim ou à sua queda está fantástica.Estive em Berlim em 96 e pude presenciar cenas inusitadas. Na realidade, a Alemanha Oriental ainda é bastante discriminada e com alto índice de desemprego e quem é de lá recebe menos(mesmo sem o muro) entre outras coisas. Há uma rivalidade entre os dois lados,sobretudo por parte dos ocidentais,(muro ideológico)
Em relação à segunda parte do texto, que trata do muro feito por Israel, não pude deixar de ficar chocada com a história de Halimeh 'Abd Rabbo Muhammad a-Shawamreh. É algo que corta o coração e só de pensar que ela é só um caso entre tantos dói mais ainda. Até quando? "Quanto mais conheço a humanidade mais gosto de bichos". Prabéns, Barone, seu artigo sempre elucidativo e sério, de qualidade inegável. Beijo.

Adriana Godoy disse...

E quanto à cubana, só podemos lamentar...ainda bem que ela parece forte par enfrentar esse cerceamento de sua liberdade. Se houvesse um desejo forte das autoridades brasileiras será que ela não conseguiria vir?

Anónimo disse...

Amigo Vitor!
Mais uma vez foste feliz em teu longo texto,principalmente em relação à 2ª parte "Um muro no deserto".Há alguns anos atrás comecei a escrever um texto que intitulei "O Muro" em que pretendia fazer uma analogia entre o muro de Berlim e o muro da Cisjordania;não terminei o texto por crer que não haveria interesse de improváveis leitores.Fico feliz com teu artigo;me realizei nele.
Agora,é inadmissível que em pleno século XXI, o mundo não tenha feito nada,efetivamente,para evitar um absurdo destes,não é mesmo?
A história de Halimeh é trágica, contundente, surreal até, mas é parte da história deste sofrido povo palestino.
Parabéns pelo brilhante artigo.
Capssa

Leonardo disse...

Oi Barone,

Tanto tempo sem vir aqui... Mas, felizmente, chego a tempo para ler este seu magnífico texto sobre os muros da vergonha.

Parabéns pelo texto que alia, com notável habilidade, informação a defesa intransigente da liberdade e dos direitos humanos. A história de Halimeh é emblemática em tocar nossos corações e a nos fazer agir.

Grande abraço do seu leitor- admirador.

Leonardo

Barone disse...

Adriana,
aidna que as coisas estejam difíceis no "lado oriental", ainda que haja preconceito, nada se compara a liberdade de tomar decisões sobre sua própria vida.

Grande Cacho,
bom te ver aqui. A relação entre os diversos muros ideológicos e físicos que nos separam é inegável. Temos que derrubá-los, um a um.

Leo,
agradeço suas palavras. ter você como visitante é uma grande honra. Abração.