Excelente, o texto a seguir é de autoria de João Paulo Rodrigues, foi publicado nas caixas de comentários do Pedro Doria e Idelber Avelar. João Paulo faz uma análise profunda e isenta do golpe de estado em Honduras. Recomendo.
Há muitos mal entendidos, meias-verdades e boatos circulando sobre Zelaya e a Constituição hondurenha. Para dirimir as dúvidas, é bom compreender que há três problemas de ordens distintas na atual crise hondurenha, problemas intimamente relacionados mas não redutíveis uns aos outros. Um dos problemas se refere à crise política de curto prazo, outro se refere ao conceito de golpe de estado, e o último, mas não menos importante, se refere aos problemas constitucionais hondurenhos.
Conjunturalmente, tem-se a posição política insustentável e incongruente de Zelaya que, em vista de sua incompetência (compartilhada com a elite política de Honduras que se reveza no poder há décadas e legou um dos países mais pobres da AL) em retirar Honduras do estado miserável em que se encontra, optou apenas recentemente por adotar uma perspectiva personalista e de discurso superficialmente esquerdista de condução política. Zelaya não tem um programa de esquerda e poucas medidas neste sentido adotou. É – parece-me - mais um demagogo do que outra coisa. É um erro taxa-lo de chavista, já que de Chávez só importou a idéia de plebiscitos para permitir mais tempo no cargo e o uso da mídia privada para longos discursos televisionados.
Ele não conduz um movimento militarizado e de massas, não propõe estatizar a economia e não confronta os Estados Unidos (o que, em termos da história hondurenha tornaria sua posição mais agravante do que a do líder bolivariano). Sua ligação com a Venezuela é muito recente, e, parece, superficial, baseada na adesão à ALBA e nuns poucos acordos comerciais. Falou-se muito em agentes venezuelanos no país, mas até o momento o exército e a imprensa oficialista parecem ser incrivelmente incompetendes, num contexto de total liberdade de ação, em leva-los a público, mesmo havendo denúncias de que foram detidos por algumas horas diplomatas e jornalistas daquele país – fatos também sem confirmação independente. O que chamou a atenção, e serviu de pretexto também para o golpe, foi a já conhecida verve do caudilho de Caracas. Da mesma forma que em outras ocasiões (bombardeio do Equador pela Colômbia, conflitos legislativos na Bolívia) e sem que isso levasse a maiores conflitos internos nos países atingidos, Chávez fez intensa campanha de declarações tão bombásticas quanto vazias de efeitos práticos. O mundo todo sabe que ele é um fanfarrão, cuja palavra nestes assuntos é para ser tratada com desdém – o que, aliás, é o que fez o chanceler do atual governo golpista de Honduras, o que, ironicamente, deslegitima a justificativa do perigo de uma chavinização de Honduras. Chávez mal consegue mobilizar tropas contra um vizinho de fronteira, quanto mais contra um país acessível somente por mar e ar.
Zelaya efetivamente procurou o confronto e desrespeitou as instituições dos demais poderes da república hondurenha. Não há que tegiversar sobre isso. Se seu poder é investido pela constituição, também são suas obrigações para com o que ela diz em termos de respeito a suas normas.
Mas desrespeitar normas constitucionais e afrontar a esfera de ação dos demais poderes não constitui golpe de estado, já que esse se caracteriza, basicamente, pela tomada do poder político por uma força oriunda do próprio estado, ou seja, é um modo, um método, uma tática, não é um programa político, não é o fundo em si das questões constitucionais, sociais, econômicas ou políticas que determinada força pode querer alterar. O golpe sequer precisa alterar ou abolir a constituição vigente. Há golpes que o fazem, mas tantos outros que não – e estes talvez sejam maioria, sobretudo no caso latino-americano. Daí porque poucos golpes intervêm na estrutura do judiciário, pois um golpe de estado é um golpe político-institucional e o judiciário não possui poder político, ou o possui muito lateralmente.
Mais detalhadamente, todo e qualquer golpe precisa de apoio militar. Isso é ponto pacífico. Não é necessário que os tanques vão às ruas. Bordaberry no Uruguai, Lanusse na Argentina e Fujimori no Peru são exemplos claros de que basta a anuência militar para haver um golpe, já que os destituídos ficam privados justamente do elemento mais nuclear (e portanto mais vital) da constituição do estado moderno: o monopólio do uso da força. Se um dos poderes (desconhece-se caso de golpe de estado liderado pela judiciário) não possui esse controle e ainda assim tenta alcançar o controle político por via armada, lidera uma insurreição ou uma revolução, não um golpe de estado.
Outro elemento fundamental e presente em todos os casos existentes é o fator tempo. Independente de quanto se gasta na articulação do golpe, seu desencadeamento é rápido, geralmente consolidando a tomada do poder político em questão de horas. Daí o nome: “golpe”. Se a luta progride, pode resultar, no pior quadro, numa guerra civil – o que, de qualquer forma não desqualifica sua origem num golpe. Analisando a falta de apoio social, político e militar de Zelaya, dificilmente isso ocorreria, o que é mais uma razão contra a justificativa de “defesa da democracia” levantada pelos golpistas.
Em resumo, golpe necessita de, conjuntamente: rapidez na tomada do poder; prévio controle da força militar; intervenção direta no sentido de substituição dos agentes encarregados do poder político.
Em vista disso, cai por terra o argumento de que Zelaya (e o que vai desgostar os anti-chavistas mais empedernidos, sempre esclarecendo que sou um anti-chavista) ou Chávez são atualmente golpistas (Chávez o foi lá em 92). Se eles não respeitam as leis fundamentais vigentes e confrontam diretamente a legitimidade dos poderes contituídos estando a cargo eles mesmos de um destes poderes, sua tática não é a mesma de um golpe. Pode-se discutir o efeito disto e a intenção dos mesmos. Mas golpe não é estratégia, golpe não é a intenção, golpe não é ter, necessariamente (embora também possa ser) um objetivo último anti-constitucional e anti-institucional.
Institucionalmente, e isso tem passado meio batido, já que a discussão gira muito em torno de Zalaya, Chávez, esquerda, direita há também o problema da constituição de Honduras. Apesar de coisas a meu ver boas que seguem medidas clássicas liberais, ela tem furos inaceitáveis, inclusive pelas incongruências sérias entre estas diretrizes liberais e certas cláusulas incompletas e silêncios que na presente crise se tornam ensurdecedores. Parece que a constituição foi revisada por alunos de primeiro ano de Direito. Como é que uma carta deste tipo não possui mecanismos claros de controle de um poder pelos demais? Como não possui um rito de impedimento? Talvez haja leis ordinárias regulando isso. Na página do Congresso hondurenho na internet não há informações sobre isso e já que as declarações dos golpistas e da imprensa hondurenha falam que a deposição foi constitucional, forçoso é concluir que tampouco estas leis existem.
No que consistem as contradições que não legalizam o “ritual” seguido há uns poucos dias em Tegucigalpa?
Nem em um nível formal há amparo à destituição de Zelaia. Ao contrário do que está sendo dito, a deposição não é amparada pelos art. 239 (sobre alternabilidade) ou 272 (FFAA como garantidoras da alternabilidade), muito menos pelos 373 (que obriga reformas constitucionais pela via única congressual), 374 (que institui como cláusula pétrea a “alternabilidade”) e 375 (que institui julgamento de quem desrespeite os art. 373 e 374). Quanto ao art. 272, sugiro que leiam o artigo de Jorge Zeverucha (segue abaixo) na Folha de hoje, em que ele mostra como este artigo é contraditório e atenta contra a soberania popular que está inscrita (lembro eu) no art. 2 da constituição hondurenha. O art. 239 reza que “aquele que quebre esta disposição [da alternabilidade] ou proponha sua reforma… cessar[á] de imediato o desempenho” de seu cargo. Ora, é matéria de opinião que Zelaya tenha proposto formalmente a alteração deste dispositivo. Que ele tencionasse, para mim está claro, mas leis não julgam intenções e pretensões futuras, e sim atos. E o ato era uma consulta popular em que se perguntava se o povo queria num futuro próximo ser consultado sobre a possibilidade de chamar uma Assembléia Constituinte. Era uma pergunta e não uma defesa de um ponto. Mais, a constituição é silenciosa sobre quem define a quebra de um princípio constitucional.
Portanto, também não se aplicam os art. 4, que reza ser a “alternabilidade” algo “obrigatório” e sua “infração” um “delito de traição à pátria”.
Faço dois comentários laterais. Em primeiro lugar a “alternabilidade” parece derivar de uma louvável tentativa de deslegitimar governos militares, o que foi a tônica do século XX naquele país. Isso, em conjunção ao art. que fala que as FFAA são “apolíticas” e que devem acima de tudo respeitar a constituição, indica que a medida foi tomada como forma de constranger as quarteladas e forçar um jogo político partidário. Não tem nada a ver com evitar líderes populistas. Em segundo lugar, a redação do art. 239 é surreal, pois não há forma de alguém ocupar o cargo duas vezes, já que isso está proibido e a proposição neste sentido é criminalizada. Como é que alguém vai ocupar o cargo mais de uma vez sem que antes se proponha a fazer isso, o que já é em si crime e resulta na suspensão dos direitos políticos? Se isso hipoteticamente ocorresse seria sinal de que a constituição não estaria mais em vigor e, portanto, o parágrafo em questão não teria mais aplicabilidade, sendo, então, inútil e dirigido a uma situação impossível de ocorrer nos seus próprios termos.
E aqui chegamos no terreno da incompetência em termos de Direito. A constituição hondurenha, reformada 21 vezes desde 1982 sem que se tenha, aparentemente, modificado tal lacuna grave, carece do elemento básico de definição dos “check and balances” entre os poderes e até mesmo dos mecanismos de legalização e publicidade aos atos que formalizam tanto este controle entre poderes - isso para não falam da ausência do instituto do impedimento. O art. 316, referente ao poder judiciário, chega a afirmar no inciso (1) que a Corte Suprema possui uma Sala Constitucional (bom, se nem isso mencionasse…) entre cujas atribuições está a de dirimir os conflitos entre os poderes, cuja conseqüência é a de que suas decisões são de imediata aplicação – mas isso é relativo “à constitucionalidade de uma norma”, não se referindo á destituição do supremo mandatário ou medidas similares. E, ainda que se interprete a intenção original disso como abarcando quem está relacionado à norma declarada inconstitucional, o art. exige que se comunique previamente o Congresso (o que o caso da carta renúncia evidencia não ter sido o caso).
Ou seja, sequer está definido que a Suprema Corte, que teria dado uma ordem de prisão a Zelaya segundo versões não confirmadas e, como veremos, impossíveis de ocorrer de uma forma legal, tenha este poder de prisão, sequer que tenha o poder de sentenciar o afastamento do Presidente da República. Da mesma forma, não está dito em lugar nenhum que o Legislativo possa fazer o mesmo, embora seu caso seja menos grave porque ele tem o poder de nomear um novo presidente no caso de vacância do cargo.
Para piorar as coisas, e aí temos o lado louvável da constituição amparando a demanda de Zelaya (até se quisesse argumentar em prol do fim da alternabilidade), existem numerosos art. que vão contra a forma como ele foi apeado do poder. A livre emissão do pensamento é protegida (art. 72), o direito de defesa é “inviolável” (art. 82), não se pode prender ninguém sem mandato escrito (art. 84), aceita-se a presunção de inocência (art. 89), só tribunais competentes podem julgar (art. 90), proíbem-se penas “infamantes, proscritivas ou confiscatórias” (art. 97) e a expatriação (art. 102), e, por fim, admite-se a inviolabilidade domicilial (art. 99).
Além da simples contradição entre esta série de normas e a forma como Zelaya foi expulso do país, existe a contradição mais séria do ponto de vista constitucional entre estas mesmas normas e o parágrafo 2º. do art. 239, já que este institui um procedimento sumário. Seria como instituir a pena de morte com instância de julgamento e apelações, além das formas de execução, e inserir um item não vinculado sobre execuções sumárias!
Tendo em mente todo o exposto acima, e sabendo que faltam muitas informações para se compor todo o quadro dos eventos dos últimos dias no país centroamericano, parece-me que a explicação mais condizente com os elementos levantados é o de que o golpe de estado foi gestado pelas lideranças militares, pelo presidente do Congresso e por lideranças políticas liberais já há algum tempo, sendo postergado quando Zelaya destituiu o chefe do comando militar, e deslanchado logo após sua reintegração.
Creio que o judiciário e o MP foram apenas uma platéia passiva no caso. A própria imprensa que apóia o novo governo falava em golpe 48h antes, assim como a ONU e os Estados Unidos. Uma operação rápida de tomada das ruas principais de uma cidade grande, a invasão de um palácio de madrugada, o corte de energia elétrica, a ocupação de edifícios públicos, a imediata alteração da programação televisiva e a suspensão de redes a cabo estrangeiras não tem como ser organizada nas poucas horas noturnas entre uma ordem de tribunal e a expulsão do presidente do país. Daí se entende a data da falsa renúncia ser anterior à “renúncia” propriamente dita (um lapso ineludível) e a ausência de pronunciamento diretos do Legislativo ou do Judiciário, uma vez que a justificativa primeiramente planejada para dar um ar constitucional ao golpe seria a de “renúncia”.
Se isso tivesse ocorrido, não seria necessário o apelo, que é ex post facto, de que houve ordem da Suprema Corte, justificativa não apresentada na manhã do golpe ao Congresso que empossou Micheletti. É provável que sentindo uma possível falha de legitimidade e legalidade no argumento da renúncia, os golpistas apelaram para a tal misteriosa ordem judicial (até porque se foi ordem verbal é obviamente inconstitucional; se não teve autos de um processo, idem). O problema (para os golpistas) é que, se tal ordem existiu, o Legislativo foi formalmente ludibriado e o presidente não teve direito a defesa. E se a renúncia é a justificativa, ela é deslegitimada pela ação da qual ela teria resultado.
O que, em última instância, faz de toda a elite política, as FFAA e os poucos milhares de hondurenhos que se manifestaram em apoio à destituição de Zelaya o exato oposto daquilo que apregoam ser: estão sob o espesso véu da inconstitucionalidade e da ilegalidade.
Há muitos mal entendidos, meias-verdades e boatos circulando sobre Zelaya e a Constituição hondurenha. Para dirimir as dúvidas, é bom compreender que há três problemas de ordens distintas na atual crise hondurenha, problemas intimamente relacionados mas não redutíveis uns aos outros. Um dos problemas se refere à crise política de curto prazo, outro se refere ao conceito de golpe de estado, e o último, mas não menos importante, se refere aos problemas constitucionais hondurenhos.
Conjunturalmente, tem-se a posição política insustentável e incongruente de Zelaya que, em vista de sua incompetência (compartilhada com a elite política de Honduras que se reveza no poder há décadas e legou um dos países mais pobres da AL) em retirar Honduras do estado miserável em que se encontra, optou apenas recentemente por adotar uma perspectiva personalista e de discurso superficialmente esquerdista de condução política. Zelaya não tem um programa de esquerda e poucas medidas neste sentido adotou. É – parece-me - mais um demagogo do que outra coisa. É um erro taxa-lo de chavista, já que de Chávez só importou a idéia de plebiscitos para permitir mais tempo no cargo e o uso da mídia privada para longos discursos televisionados.
Ele não conduz um movimento militarizado e de massas, não propõe estatizar a economia e não confronta os Estados Unidos (o que, em termos da história hondurenha tornaria sua posição mais agravante do que a do líder bolivariano). Sua ligação com a Venezuela é muito recente, e, parece, superficial, baseada na adesão à ALBA e nuns poucos acordos comerciais. Falou-se muito em agentes venezuelanos no país, mas até o momento o exército e a imprensa oficialista parecem ser incrivelmente incompetendes, num contexto de total liberdade de ação, em leva-los a público, mesmo havendo denúncias de que foram detidos por algumas horas diplomatas e jornalistas daquele país – fatos também sem confirmação independente. O que chamou a atenção, e serviu de pretexto também para o golpe, foi a já conhecida verve do caudilho de Caracas. Da mesma forma que em outras ocasiões (bombardeio do Equador pela Colômbia, conflitos legislativos na Bolívia) e sem que isso levasse a maiores conflitos internos nos países atingidos, Chávez fez intensa campanha de declarações tão bombásticas quanto vazias de efeitos práticos. O mundo todo sabe que ele é um fanfarrão, cuja palavra nestes assuntos é para ser tratada com desdém – o que, aliás, é o que fez o chanceler do atual governo golpista de Honduras, o que, ironicamente, deslegitima a justificativa do perigo de uma chavinização de Honduras. Chávez mal consegue mobilizar tropas contra um vizinho de fronteira, quanto mais contra um país acessível somente por mar e ar.
Zelaya efetivamente procurou o confronto e desrespeitou as instituições dos demais poderes da república hondurenha. Não há que tegiversar sobre isso. Se seu poder é investido pela constituição, também são suas obrigações para com o que ela diz em termos de respeito a suas normas.
Mas desrespeitar normas constitucionais e afrontar a esfera de ação dos demais poderes não constitui golpe de estado, já que esse se caracteriza, basicamente, pela tomada do poder político por uma força oriunda do próprio estado, ou seja, é um modo, um método, uma tática, não é um programa político, não é o fundo em si das questões constitucionais, sociais, econômicas ou políticas que determinada força pode querer alterar. O golpe sequer precisa alterar ou abolir a constituição vigente. Há golpes que o fazem, mas tantos outros que não – e estes talvez sejam maioria, sobretudo no caso latino-americano. Daí porque poucos golpes intervêm na estrutura do judiciário, pois um golpe de estado é um golpe político-institucional e o judiciário não possui poder político, ou o possui muito lateralmente.
Mais detalhadamente, todo e qualquer golpe precisa de apoio militar. Isso é ponto pacífico. Não é necessário que os tanques vão às ruas. Bordaberry no Uruguai, Lanusse na Argentina e Fujimori no Peru são exemplos claros de que basta a anuência militar para haver um golpe, já que os destituídos ficam privados justamente do elemento mais nuclear (e portanto mais vital) da constituição do estado moderno: o monopólio do uso da força. Se um dos poderes (desconhece-se caso de golpe de estado liderado pela judiciário) não possui esse controle e ainda assim tenta alcançar o controle político por via armada, lidera uma insurreição ou uma revolução, não um golpe de estado.
Outro elemento fundamental e presente em todos os casos existentes é o fator tempo. Independente de quanto se gasta na articulação do golpe, seu desencadeamento é rápido, geralmente consolidando a tomada do poder político em questão de horas. Daí o nome: “golpe”. Se a luta progride, pode resultar, no pior quadro, numa guerra civil – o que, de qualquer forma não desqualifica sua origem num golpe. Analisando a falta de apoio social, político e militar de Zelaya, dificilmente isso ocorreria, o que é mais uma razão contra a justificativa de “defesa da democracia” levantada pelos golpistas.
Em resumo, golpe necessita de, conjuntamente: rapidez na tomada do poder; prévio controle da força militar; intervenção direta no sentido de substituição dos agentes encarregados do poder político.
Em vista disso, cai por terra o argumento de que Zelaya (e o que vai desgostar os anti-chavistas mais empedernidos, sempre esclarecendo que sou um anti-chavista) ou Chávez são atualmente golpistas (Chávez o foi lá em 92). Se eles não respeitam as leis fundamentais vigentes e confrontam diretamente a legitimidade dos poderes contituídos estando a cargo eles mesmos de um destes poderes, sua tática não é a mesma de um golpe. Pode-se discutir o efeito disto e a intenção dos mesmos. Mas golpe não é estratégia, golpe não é a intenção, golpe não é ter, necessariamente (embora também possa ser) um objetivo último anti-constitucional e anti-institucional.
Institucionalmente, e isso tem passado meio batido, já que a discussão gira muito em torno de Zalaya, Chávez, esquerda, direita há também o problema da constituição de Honduras. Apesar de coisas a meu ver boas que seguem medidas clássicas liberais, ela tem furos inaceitáveis, inclusive pelas incongruências sérias entre estas diretrizes liberais e certas cláusulas incompletas e silêncios que na presente crise se tornam ensurdecedores. Parece que a constituição foi revisada por alunos de primeiro ano de Direito. Como é que uma carta deste tipo não possui mecanismos claros de controle de um poder pelos demais? Como não possui um rito de impedimento? Talvez haja leis ordinárias regulando isso. Na página do Congresso hondurenho na internet não há informações sobre isso e já que as declarações dos golpistas e da imprensa hondurenha falam que a deposição foi constitucional, forçoso é concluir que tampouco estas leis existem.
No que consistem as contradições que não legalizam o “ritual” seguido há uns poucos dias em Tegucigalpa?
Nem em um nível formal há amparo à destituição de Zelaia. Ao contrário do que está sendo dito, a deposição não é amparada pelos art. 239 (sobre alternabilidade) ou 272 (FFAA como garantidoras da alternabilidade), muito menos pelos 373 (que obriga reformas constitucionais pela via única congressual), 374 (que institui como cláusula pétrea a “alternabilidade”) e 375 (que institui julgamento de quem desrespeite os art. 373 e 374). Quanto ao art. 272, sugiro que leiam o artigo de Jorge Zeverucha (segue abaixo) na Folha de hoje, em que ele mostra como este artigo é contraditório e atenta contra a soberania popular que está inscrita (lembro eu) no art. 2 da constituição hondurenha. O art. 239 reza que “aquele que quebre esta disposição [da alternabilidade] ou proponha sua reforma… cessar[á] de imediato o desempenho” de seu cargo. Ora, é matéria de opinião que Zelaya tenha proposto formalmente a alteração deste dispositivo. Que ele tencionasse, para mim está claro, mas leis não julgam intenções e pretensões futuras, e sim atos. E o ato era uma consulta popular em que se perguntava se o povo queria num futuro próximo ser consultado sobre a possibilidade de chamar uma Assembléia Constituinte. Era uma pergunta e não uma defesa de um ponto. Mais, a constituição é silenciosa sobre quem define a quebra de um princípio constitucional.
Portanto, também não se aplicam os art. 4, que reza ser a “alternabilidade” algo “obrigatório” e sua “infração” um “delito de traição à pátria”.
Faço dois comentários laterais. Em primeiro lugar a “alternabilidade” parece derivar de uma louvável tentativa de deslegitimar governos militares, o que foi a tônica do século XX naquele país. Isso, em conjunção ao art. que fala que as FFAA são “apolíticas” e que devem acima de tudo respeitar a constituição, indica que a medida foi tomada como forma de constranger as quarteladas e forçar um jogo político partidário. Não tem nada a ver com evitar líderes populistas. Em segundo lugar, a redação do art. 239 é surreal, pois não há forma de alguém ocupar o cargo duas vezes, já que isso está proibido e a proposição neste sentido é criminalizada. Como é que alguém vai ocupar o cargo mais de uma vez sem que antes se proponha a fazer isso, o que já é em si crime e resulta na suspensão dos direitos políticos? Se isso hipoteticamente ocorresse seria sinal de que a constituição não estaria mais em vigor e, portanto, o parágrafo em questão não teria mais aplicabilidade, sendo, então, inútil e dirigido a uma situação impossível de ocorrer nos seus próprios termos.
E aqui chegamos no terreno da incompetência em termos de Direito. A constituição hondurenha, reformada 21 vezes desde 1982 sem que se tenha, aparentemente, modificado tal lacuna grave, carece do elemento básico de definição dos “check and balances” entre os poderes e até mesmo dos mecanismos de legalização e publicidade aos atos que formalizam tanto este controle entre poderes - isso para não falam da ausência do instituto do impedimento. O art. 316, referente ao poder judiciário, chega a afirmar no inciso (1) que a Corte Suprema possui uma Sala Constitucional (bom, se nem isso mencionasse…) entre cujas atribuições está a de dirimir os conflitos entre os poderes, cuja conseqüência é a de que suas decisões são de imediata aplicação – mas isso é relativo “à constitucionalidade de uma norma”, não se referindo á destituição do supremo mandatário ou medidas similares. E, ainda que se interprete a intenção original disso como abarcando quem está relacionado à norma declarada inconstitucional, o art. exige que se comunique previamente o Congresso (o que o caso da carta renúncia evidencia não ter sido o caso).
Ou seja, sequer está definido que a Suprema Corte, que teria dado uma ordem de prisão a Zelaya segundo versões não confirmadas e, como veremos, impossíveis de ocorrer de uma forma legal, tenha este poder de prisão, sequer que tenha o poder de sentenciar o afastamento do Presidente da República. Da mesma forma, não está dito em lugar nenhum que o Legislativo possa fazer o mesmo, embora seu caso seja menos grave porque ele tem o poder de nomear um novo presidente no caso de vacância do cargo.
Para piorar as coisas, e aí temos o lado louvável da constituição amparando a demanda de Zelaya (até se quisesse argumentar em prol do fim da alternabilidade), existem numerosos art. que vão contra a forma como ele foi apeado do poder. A livre emissão do pensamento é protegida (art. 72), o direito de defesa é “inviolável” (art. 82), não se pode prender ninguém sem mandato escrito (art. 84), aceita-se a presunção de inocência (art. 89), só tribunais competentes podem julgar (art. 90), proíbem-se penas “infamantes, proscritivas ou confiscatórias” (art. 97) e a expatriação (art. 102), e, por fim, admite-se a inviolabilidade domicilial (art. 99).
Além da simples contradição entre esta série de normas e a forma como Zelaya foi expulso do país, existe a contradição mais séria do ponto de vista constitucional entre estas mesmas normas e o parágrafo 2º. do art. 239, já que este institui um procedimento sumário. Seria como instituir a pena de morte com instância de julgamento e apelações, além das formas de execução, e inserir um item não vinculado sobre execuções sumárias!
Tendo em mente todo o exposto acima, e sabendo que faltam muitas informações para se compor todo o quadro dos eventos dos últimos dias no país centroamericano, parece-me que a explicação mais condizente com os elementos levantados é o de que o golpe de estado foi gestado pelas lideranças militares, pelo presidente do Congresso e por lideranças políticas liberais já há algum tempo, sendo postergado quando Zelaya destituiu o chefe do comando militar, e deslanchado logo após sua reintegração.
Creio que o judiciário e o MP foram apenas uma platéia passiva no caso. A própria imprensa que apóia o novo governo falava em golpe 48h antes, assim como a ONU e os Estados Unidos. Uma operação rápida de tomada das ruas principais de uma cidade grande, a invasão de um palácio de madrugada, o corte de energia elétrica, a ocupação de edifícios públicos, a imediata alteração da programação televisiva e a suspensão de redes a cabo estrangeiras não tem como ser organizada nas poucas horas noturnas entre uma ordem de tribunal e a expulsão do presidente do país. Daí se entende a data da falsa renúncia ser anterior à “renúncia” propriamente dita (um lapso ineludível) e a ausência de pronunciamento diretos do Legislativo ou do Judiciário, uma vez que a justificativa primeiramente planejada para dar um ar constitucional ao golpe seria a de “renúncia”.
Se isso tivesse ocorrido, não seria necessário o apelo, que é ex post facto, de que houve ordem da Suprema Corte, justificativa não apresentada na manhã do golpe ao Congresso que empossou Micheletti. É provável que sentindo uma possível falha de legitimidade e legalidade no argumento da renúncia, os golpistas apelaram para a tal misteriosa ordem judicial (até porque se foi ordem verbal é obviamente inconstitucional; se não teve autos de um processo, idem). O problema (para os golpistas) é que, se tal ordem existiu, o Legislativo foi formalmente ludibriado e o presidente não teve direito a defesa. E se a renúncia é a justificativa, ela é deslegitimada pela ação da qual ela teria resultado.
O que, em última instância, faz de toda a elite política, as FFAA e os poucos milhares de hondurenhos que se manifestaram em apoio à destituição de Zelaya o exato oposto daquilo que apregoam ser: estão sob o espesso véu da inconstitucionalidade e da ilegalidade.
1 comentário:
Concordo com a conclusão, mas não com as premissas antichavistas: se Zelaya fosse tão inócuo, poderia estar sendo combatido através de artigos de jornal e não manu militari.
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