Por Ilan Pappe (Site oficial http://ilanpappe.com/)
Tradução de Vinicius Valentin Raduan Miguel
Nota do tradutor
O presente texto foi originalmente publicado em inglês como editorial do site Electronic Intifada (http://electronicintifada.net) no dia 2 de janeiro de 2009. Ilan Pappé nasceu em 1954, Haifa, Israel. É filho de judeu-alemães que escaparam da perseguição nazista nos anos 1930 e é um dos mais renomados especialistas do conflito Israelo-Palestino tendo publicado 9 livros, sido co-autor em outros 3 e escrito centenas de artigos para jornais acadêmicos.
O mais famoso de seus livros, A Limpeza Étnica da Palestina (The Ethnic Cleansing of Palestine. Oneworld Publications, 2006; sem tradução para o português) denuncia que a guerra de 1948 foi uma sistemática e elaborada estratégia para expulsão dos palestinos, destruição das áreas construídas, objetivando a eliminação de não-judeus para a criação de Israel - um Estado para um só grupo étnico-religioso e/ou cultural-lingüístico. Um processo racista e colonial, eliminando a população tradicional para a instalação de grupos estrangeiros.
Em 1999, foi candidato ao parlamento israelense em uma aliança entre os partidos comunistas Maki e Hadash e apóia a criação de um só Estado não-étnico/confessional como solução do conflito. Em 2007, depois de dar aulas de Ciência Política por 23 anos, foi obrigado a pedir demissão da Universidade de Haifa por apoiar publicamente o boicote acadêmico contra Israel em razão de suas políticas opressivas e discriminatórias.
Este texto é uma tentativa de preencher o vazio editorial sobre o Oriente Médio na língua portuguesa e, desta forma combater a injustiça que é o apagamento e marginalização desta tragédia em curso contra o povo palestino.
16.07.2009
-
Minha visita à minha casa, na Galiléia (Israel) coincidiu com o genocida ataque israelense contra Gaza. O Estado de Israel, através de sua imprensa e com a ajuda de suas universidades, transmitiu uma voz unânime – desta vez, ainda mais alta que aquela ouvida durante o ataque criminoso contra o Líbano, no verão de 2006. Israel é mais uma vez engolido por sua “virtuosa fúria” que se traduz nas políticas destrutivas contra a Faixa de Gaza. Esta terrível auto-justificação para práticas desumanas e sua impunidade, não é apenas irritante; é um assunto que devemos explicar melhor para entendermos a imunidade internacional para com o furioso massacre que arrasa Gaza.
É baseado, antes e acima de tudo, em mentiras absolutas transmitidas em uma ambígua linguagem remanescente dos negros dias da década de 1930 na Europa. A cada meia hora os noticiários no rádio e na televisão descrevem as vítimas de Gaza como “terroristas” e o assassinato em massa promovido por Israel é chamado de “ato de legítima defesa”. Israel apresenta a si mesmo para seu povo como uma virtuosa vítima que se defende contra um terrível mal. Acadêmicos do mundo inteiro são recrutados para explicar como a luta palestina, quando liderada pelo Hamas, é demoníaca e monstruosa. Estes mesmos acadêmicos que demonizaram o líder palestino Yasser Arafat em tempos precedentes e atacavam a legitimidade do Fatah durante a segunda intifada palestina.
Mas as mentiras e representações distorcidas não são a pior parte disso. O pior e ainda mais revoltante é o direto ataque contra os últimos vestígios de humanidade e dignidade do povo palestino. Os palestinos em Israel que demonstraram sua solidariedade com o povo de Gaza e agora são rotulados de quinta coluna no Estado Judeu; o direito destes em sua terra natal é transmitido como duvidoso em decorrência da falta de seu apoio à agressão israelense. Aqueles entre eles que concordam – erradamente em minha opinião – em aparecer na mídia local são interrogados ao invés de entrevistados, como se fossem prisioneiros nas prisões do Shin Bet, o serviço secreto israelense. Sua aparição é antes antecedida e seguida por humilhantes comentários racistas e eles enfrentam acusações de ser uma quinta coluna, irracionais e fanáticos. E isto não é tudo. Existem poucas crianças palestinas dos territórios ocupados tratadas de câncer em hospitais israelenses, por exemplo. E só Deus sabe o preço que essas famílias pagaram para serem admitidas aqui! E a rádio de Israel vai diariamente ao hospital para exigir que os pobres pais dessas crianças declarem para a audiência israelense o quão correto e justo é o ataque de Israel e o quão terrível é o Hamas, embora se defendendo.
Não há limites para a hipocrisia produzida pela virtuosa fúria. O discurso de generais e políticos transcorre entre erráticos auto-elogios à humanidade do exército israelense e seus ataques “cirúrgicos” e, ao mesmo tempo, para a necessidade de destruir Gaza de uma vez por todas, de uma maneira “humana” é claro.
A virtuosa fúria é um fenômeno constante na antiga sionista e hoje israelense prática de expulsão da Palestina. Todo ato, seja limpeza étnica, ocupação, massacre ou destruição sempre foi apresentado como moralmente justo e puramente um ato de legítima defesa relutante perpetrada por Israel em uma guerra contra o pior tipo de seres humanos.
No excelente volume The Returns of Zionism: Myths, Politics and Scholarship in Israel (O retorno do sionismo: mitos, política e academia, 2008), Gabi Piterberg explora as origens ideológicas e a progressão histórica desta fúria virtuosa. Hoje, em Israel, da esquerda à direita, do Likud ao Kadima, da academia à imprensa, todos podem ouvir a fúria virtuosa do Estado mais engajado em destruir e expulsar a população tradicional do que qualquer outra nação neste mundo.
É crucial explorar as origens ideológicas desta atitude e obter as necessárias conclusões políticas da sua persistência. A fúria virtuosa protege a sociedade e políticos israelenses de qualquer censura ou criticismo externo. Ainda pior é que isto é sempre traduzido em destrutivas políticas contra os palestinos. Sem mecanismos internos de crítica e sem pressão exterior, cada palestino se torna um potencial alvo desta fúria israelense. Dado o poder de fogo do Estado Judeu, é inevitável que isto só possa causar ainda mais assassinatos em massa, massacres e limpeza étnica.
A exaltação da própria moralidade é um poderoso recurso de autonegação e justificação. Isto explica as razoes da sociedade judaico-israelense não se mover por palavras de sabedoria, lógica, persuasão ou diálogo diplomático. E se alguém não quer endossar esta violência de tal modo a se opor à ela, há apenas uma solução: desafiar abertamente esta ideologia maligna da virtuosidade israelense objetivando acobertar atrocidades. Outro nome para esta ideologia é sionismo e, uma condenação internacional ao sionismo e não apenas à políticas particulares de Israel, é a única maneira de enfrentar esta fúria virtuosa. Nós temos tentado explicar não apenas para o mundo, mas também para os próprios israelenses que o sionismo é uma ideologia que apóia a limpeza étnica, ocupação e agora, enormes carnificinas. O que é preciso agora é não apenas uma condenação do presente massacre, mas também tirar a legitimidade da ideologia que produziu estas práticas e que as justifica moralmente e politicamente. Vamos manter a esperança de que vozes significativas no mundo irão dizer ao Estado Judeu que esta ideologia e sua conduta geral é intolerável e inaceitável e enquanto persistir, Israel será alvo de boicotes e sujeito à sanções.
E mais, nós não podemos permitir que 2009 se torne um ano menos significante que 2008, o ano comemorativo da Nakba, que não preencheu nossas grandes esperanças de uma transformação dramática na atitude do Ocidente em relação à Palestina e palestinos.
Aparentemente, mesmo o mais horrendo dos crimes, como o genocídio em Gaza, é tratado como um evento discreto, desconectado de tudo que aconteceu no passado e não associado a uma ideologia ou sistêmico processo. Neste novo ano, temos que tentar realinhar a opinião pública à história da Palestina e os males da ideologia sionista como o melhor método para explicar as operações de genocídio (como as que ocorreram em Gaza) e como uma forma de impedir que coisas ainda piores ocorram.
Academicamente, isto já foi feito. Os maiores desafios são como encontrar formas eficientes de explicar a conexão entre a ideologia sionista e as políticas de destruição do passado para assim, explicar a presente crise. Pode ser que seja mais fácil fazê-lo durante as mais terríveis circunstancias, quando a atenção mundial se volta para a Palestina mais uma vez. Talvez seja mais difícil em momentos em que a situação aparenta “calma” e menos dramática. Em momentos de “tranqüilidade”, a pouca atenção da mídia ocidental dedicada só serve para marginalizar ainda mais a tragédia palestina e desprezá-la em parte por causa dos horríveis genocídios na áfrica, crise econômica ou apocalípticos cenários para o meio ambiente. Apesar de a mídia ocidental não estar interessada em nenhuma leitura do passado, é apenas através de avaliação histórica da magnitude dos crimes cometidos contra o povo palestino ao longo dos últimos 60 anos que é possível entender a questão palestina. Deste modo, é papel da academia militante e imprensa alternativa em insistir no contexto histórico.
Estes agentes não deveriam ignorar a importância de educar a opinião pública e influenciar atores políticos conscientes a encararem eventos em uma ampla perspectiva histórica.
Similarmente, nós devemos achar uma forma popular – distinta dos templos acadêmicos – de explicar claramente que as políticas israelenses nos últimos 60 anos partem de uma ideologia hegemônica racista chamada sionismo, ideologia esta que se acoberta sob intermináveis camadas de fúria pretensamente justa. Apesar da previsível acusação de anti-semitismo e argumentos do tipo “o que você fez”, já é tempo de associar à mentalidade pública que a ideologia sionista está vinculada a importantes marcos históricos: a limpeza étnica de 1948, a opressão dos palestinos em Israel durante os dias de governança militar, a brutal ocupação da Cisjordânia e, agora, o massacre de Gaza. Muito da ideologia da apartheid pôde explicar as opressivas práticas do governo sul-africano. Esta ideologia (da apartheid) em uma forma mais consensual e simplista variedade permitiu que os governos israelenses do passado e do presente desumanizassem os palestinos não importando onde eles estivessem e então, tentar todos os esforços necessários para destruí-los. Os métodos empregados se alteraram de período em período, de local em local, como se alteraram as narrativas para acobertarem estas atrocidades. Mas há um claro padrão, este padrão não pode ficar restrito ao mundo acadêmico, mas deve se tornar parte do discurso político na realidade contemporânea sobre a Palestina hoje.
Alguns de nós, principalmente aqueles comprometidos com a justiça e paz na Palestina, inconscientemente evadem do debate histórico – e isto é compreensível – e se concentram nos territórios ocupados (Cisjordânia e Gaza). Lutar contra políticas criminosas é uma missão urgente. Mas isto não deve transmitir o equivocado sinal – como com sucesso fez Israel - de que a Palestina é apenas os territórios da Cisjordânia e Gaza e palestinos são apenas aqueles que vivem nestes locais. Nós devemos expandir a representação geográfica e demográfica da Palestina apresentando a narrativa histórica dos eventos de 1948 e desde então demandar direitos humanos iguais para todos os povos que vivam ou viveram no que hoje é Israel e os territórios palestinos ocupados.
Vinculando a ideologia sionista às políticas do passado e às presentes atrocidades, nós seremos capazes de apresentar uma clara explicação lógica para a campanha de boicote, não-investimento e sanções contra Israel. Um Estado que apoiado por um mundo silencioso permitirá em si mesmo, ajudar à expulsão e destruição do povo nativo da Palestina. Mas desafiá-lo por meios não-violentos e mesmo na esfera ideológica é uma causa justa e ética. É ainda uma forma efetiva de difundir à opinião pública não apenas contra a presente política genocida em Gaza, mas também prevenir futuras atrocidades. E mais importante que tudo isso, é perfurar o balão da retórica da “justificada fúria” israelense que sufoca os palestinos toda vez que é inflado. Este processo de desmonte da ideologia sionista ajudará a terminar com a imunidade e impunidade de Israel garantida pelo ocidente. Sem esta imunidade, espero que mais e mais pessoas em Israel começarão a reconhecer a verdadeira natureza dos crimes cometidos em seus nomes e a ira destes começará a ser direcionada contra aqueles que os prendeu juntamente com os palestinos nesta armadilha desnecessária provocando ciclos de violência e atrocidades.
- Ilan Pappe é doutor em História pela Universidade de Oxford, 1984. Atualmente detém uma cadeira no Departamento de História na Universidade de Exeter, Inglaterra, onde é co-diretor do Centro para Estudos Etno-Políticos. O presente texto foi originalmente publicado em inglês como editorial do site Electronic Intifada (http://electronicintifada.net) no dia 2 de janeiro de 2009.
Ilan Pappé nasceu em 1954, Haifa, Israel. É filho de judeu-alemães que escaparam da perseguição nazista nos anos 1930 e é um dos mais renomados especialistas do conflito Israelo-Palestino tendo publicado 9 livros, sido co-autor em outros 3 e escrito centenas de artigos para jornais acadêmicos.
O mais famoso de seus livros, A Limpeza Étnica da Palestina (The Ethnic Cleansing of Palestine. Oneworld Publications, 2006; sem tradução para o português) denuncia que a guerra de 1948 foi uma sistemática e elaborada estratégia para expulsão dos palestinos, destruição das áreas construídas, objetivando a eliminação de não-judeus para a criação de Israel – um Estado para um só grupo étnico-religioso e/ou cultural-lingüístico. Um processo racista e colonial, eliminando a população tradicional para a instalação de grupos estrangeiros.
Em 1999, foi candidato ao parlamento israelense em uma aliança entre os partidos comunistas Maki e Hadash e apóia a criação de um só Estado não-étnico/confessional como solução do conflito. Em 2007, depois de dar aulas de Ciência Política por 23 anos, foi obrigado a pedir demissão da Universidade de Haifa por apoiar publicamente o boicote acadêmico contra Israel em razão de suas políticas opressivas e discriminatórias.
Tradução de Vinicius Valentin Raduan Miguel
Nota do tradutor
O presente texto foi originalmente publicado em inglês como editorial do site Electronic Intifada (http://electronicintifada.net) no dia 2 de janeiro de 2009. Ilan Pappé nasceu em 1954, Haifa, Israel. É filho de judeu-alemães que escaparam da perseguição nazista nos anos 1930 e é um dos mais renomados especialistas do conflito Israelo-Palestino tendo publicado 9 livros, sido co-autor em outros 3 e escrito centenas de artigos para jornais acadêmicos.
O mais famoso de seus livros, A Limpeza Étnica da Palestina (The Ethnic Cleansing of Palestine. Oneworld Publications, 2006; sem tradução para o português) denuncia que a guerra de 1948 foi uma sistemática e elaborada estratégia para expulsão dos palestinos, destruição das áreas construídas, objetivando a eliminação de não-judeus para a criação de Israel - um Estado para um só grupo étnico-religioso e/ou cultural-lingüístico. Um processo racista e colonial, eliminando a população tradicional para a instalação de grupos estrangeiros.
Em 1999, foi candidato ao parlamento israelense em uma aliança entre os partidos comunistas Maki e Hadash e apóia a criação de um só Estado não-étnico/confessional como solução do conflito. Em 2007, depois de dar aulas de Ciência Política por 23 anos, foi obrigado a pedir demissão da Universidade de Haifa por apoiar publicamente o boicote acadêmico contra Israel em razão de suas políticas opressivas e discriminatórias.
Este texto é uma tentativa de preencher o vazio editorial sobre o Oriente Médio na língua portuguesa e, desta forma combater a injustiça que é o apagamento e marginalização desta tragédia em curso contra o povo palestino.
16.07.2009
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Minha visita à minha casa, na Galiléia (Israel) coincidiu com o genocida ataque israelense contra Gaza. O Estado de Israel, através de sua imprensa e com a ajuda de suas universidades, transmitiu uma voz unânime – desta vez, ainda mais alta que aquela ouvida durante o ataque criminoso contra o Líbano, no verão de 2006. Israel é mais uma vez engolido por sua “virtuosa fúria” que se traduz nas políticas destrutivas contra a Faixa de Gaza. Esta terrível auto-justificação para práticas desumanas e sua impunidade, não é apenas irritante; é um assunto que devemos explicar melhor para entendermos a imunidade internacional para com o furioso massacre que arrasa Gaza.
É baseado, antes e acima de tudo, em mentiras absolutas transmitidas em uma ambígua linguagem remanescente dos negros dias da década de 1930 na Europa. A cada meia hora os noticiários no rádio e na televisão descrevem as vítimas de Gaza como “terroristas” e o assassinato em massa promovido por Israel é chamado de “ato de legítima defesa”. Israel apresenta a si mesmo para seu povo como uma virtuosa vítima que se defende contra um terrível mal. Acadêmicos do mundo inteiro são recrutados para explicar como a luta palestina, quando liderada pelo Hamas, é demoníaca e monstruosa. Estes mesmos acadêmicos que demonizaram o líder palestino Yasser Arafat em tempos precedentes e atacavam a legitimidade do Fatah durante a segunda intifada palestina.
Mas as mentiras e representações distorcidas não são a pior parte disso. O pior e ainda mais revoltante é o direto ataque contra os últimos vestígios de humanidade e dignidade do povo palestino. Os palestinos em Israel que demonstraram sua solidariedade com o povo de Gaza e agora são rotulados de quinta coluna no Estado Judeu; o direito destes em sua terra natal é transmitido como duvidoso em decorrência da falta de seu apoio à agressão israelense. Aqueles entre eles que concordam – erradamente em minha opinião – em aparecer na mídia local são interrogados ao invés de entrevistados, como se fossem prisioneiros nas prisões do Shin Bet, o serviço secreto israelense. Sua aparição é antes antecedida e seguida por humilhantes comentários racistas e eles enfrentam acusações de ser uma quinta coluna, irracionais e fanáticos. E isto não é tudo. Existem poucas crianças palestinas dos territórios ocupados tratadas de câncer em hospitais israelenses, por exemplo. E só Deus sabe o preço que essas famílias pagaram para serem admitidas aqui! E a rádio de Israel vai diariamente ao hospital para exigir que os pobres pais dessas crianças declarem para a audiência israelense o quão correto e justo é o ataque de Israel e o quão terrível é o Hamas, embora se defendendo.
Não há limites para a hipocrisia produzida pela virtuosa fúria. O discurso de generais e políticos transcorre entre erráticos auto-elogios à humanidade do exército israelense e seus ataques “cirúrgicos” e, ao mesmo tempo, para a necessidade de destruir Gaza de uma vez por todas, de uma maneira “humana” é claro.
A virtuosa fúria é um fenômeno constante na antiga sionista e hoje israelense prática de expulsão da Palestina. Todo ato, seja limpeza étnica, ocupação, massacre ou destruição sempre foi apresentado como moralmente justo e puramente um ato de legítima defesa relutante perpetrada por Israel em uma guerra contra o pior tipo de seres humanos.
No excelente volume The Returns of Zionism: Myths, Politics and Scholarship in Israel (O retorno do sionismo: mitos, política e academia, 2008), Gabi Piterberg explora as origens ideológicas e a progressão histórica desta fúria virtuosa. Hoje, em Israel, da esquerda à direita, do Likud ao Kadima, da academia à imprensa, todos podem ouvir a fúria virtuosa do Estado mais engajado em destruir e expulsar a população tradicional do que qualquer outra nação neste mundo.
É crucial explorar as origens ideológicas desta atitude e obter as necessárias conclusões políticas da sua persistência. A fúria virtuosa protege a sociedade e políticos israelenses de qualquer censura ou criticismo externo. Ainda pior é que isto é sempre traduzido em destrutivas políticas contra os palestinos. Sem mecanismos internos de crítica e sem pressão exterior, cada palestino se torna um potencial alvo desta fúria israelense. Dado o poder de fogo do Estado Judeu, é inevitável que isto só possa causar ainda mais assassinatos em massa, massacres e limpeza étnica.
A exaltação da própria moralidade é um poderoso recurso de autonegação e justificação. Isto explica as razoes da sociedade judaico-israelense não se mover por palavras de sabedoria, lógica, persuasão ou diálogo diplomático. E se alguém não quer endossar esta violência de tal modo a se opor à ela, há apenas uma solução: desafiar abertamente esta ideologia maligna da virtuosidade israelense objetivando acobertar atrocidades. Outro nome para esta ideologia é sionismo e, uma condenação internacional ao sionismo e não apenas à políticas particulares de Israel, é a única maneira de enfrentar esta fúria virtuosa. Nós temos tentado explicar não apenas para o mundo, mas também para os próprios israelenses que o sionismo é uma ideologia que apóia a limpeza étnica, ocupação e agora, enormes carnificinas. O que é preciso agora é não apenas uma condenação do presente massacre, mas também tirar a legitimidade da ideologia que produziu estas práticas e que as justifica moralmente e politicamente. Vamos manter a esperança de que vozes significativas no mundo irão dizer ao Estado Judeu que esta ideologia e sua conduta geral é intolerável e inaceitável e enquanto persistir, Israel será alvo de boicotes e sujeito à sanções.
E mais, nós não podemos permitir que 2009 se torne um ano menos significante que 2008, o ano comemorativo da Nakba, que não preencheu nossas grandes esperanças de uma transformação dramática na atitude do Ocidente em relação à Palestina e palestinos.
Aparentemente, mesmo o mais horrendo dos crimes, como o genocídio em Gaza, é tratado como um evento discreto, desconectado de tudo que aconteceu no passado e não associado a uma ideologia ou sistêmico processo. Neste novo ano, temos que tentar realinhar a opinião pública à história da Palestina e os males da ideologia sionista como o melhor método para explicar as operações de genocídio (como as que ocorreram em Gaza) e como uma forma de impedir que coisas ainda piores ocorram.
Academicamente, isto já foi feito. Os maiores desafios são como encontrar formas eficientes de explicar a conexão entre a ideologia sionista e as políticas de destruição do passado para assim, explicar a presente crise. Pode ser que seja mais fácil fazê-lo durante as mais terríveis circunstancias, quando a atenção mundial se volta para a Palestina mais uma vez. Talvez seja mais difícil em momentos em que a situação aparenta “calma” e menos dramática. Em momentos de “tranqüilidade”, a pouca atenção da mídia ocidental dedicada só serve para marginalizar ainda mais a tragédia palestina e desprezá-la em parte por causa dos horríveis genocídios na áfrica, crise econômica ou apocalípticos cenários para o meio ambiente. Apesar de a mídia ocidental não estar interessada em nenhuma leitura do passado, é apenas através de avaliação histórica da magnitude dos crimes cometidos contra o povo palestino ao longo dos últimos 60 anos que é possível entender a questão palestina. Deste modo, é papel da academia militante e imprensa alternativa em insistir no contexto histórico.
Estes agentes não deveriam ignorar a importância de educar a opinião pública e influenciar atores políticos conscientes a encararem eventos em uma ampla perspectiva histórica.
Similarmente, nós devemos achar uma forma popular – distinta dos templos acadêmicos – de explicar claramente que as políticas israelenses nos últimos 60 anos partem de uma ideologia hegemônica racista chamada sionismo, ideologia esta que se acoberta sob intermináveis camadas de fúria pretensamente justa. Apesar da previsível acusação de anti-semitismo e argumentos do tipo “o que você fez”, já é tempo de associar à mentalidade pública que a ideologia sionista está vinculada a importantes marcos históricos: a limpeza étnica de 1948, a opressão dos palestinos em Israel durante os dias de governança militar, a brutal ocupação da Cisjordânia e, agora, o massacre de Gaza. Muito da ideologia da apartheid pôde explicar as opressivas práticas do governo sul-africano. Esta ideologia (da apartheid) em uma forma mais consensual e simplista variedade permitiu que os governos israelenses do passado e do presente desumanizassem os palestinos não importando onde eles estivessem e então, tentar todos os esforços necessários para destruí-los. Os métodos empregados se alteraram de período em período, de local em local, como se alteraram as narrativas para acobertarem estas atrocidades. Mas há um claro padrão, este padrão não pode ficar restrito ao mundo acadêmico, mas deve se tornar parte do discurso político na realidade contemporânea sobre a Palestina hoje.
Alguns de nós, principalmente aqueles comprometidos com a justiça e paz na Palestina, inconscientemente evadem do debate histórico – e isto é compreensível – e se concentram nos territórios ocupados (Cisjordânia e Gaza). Lutar contra políticas criminosas é uma missão urgente. Mas isto não deve transmitir o equivocado sinal – como com sucesso fez Israel - de que a Palestina é apenas os territórios da Cisjordânia e Gaza e palestinos são apenas aqueles que vivem nestes locais. Nós devemos expandir a representação geográfica e demográfica da Palestina apresentando a narrativa histórica dos eventos de 1948 e desde então demandar direitos humanos iguais para todos os povos que vivam ou viveram no que hoje é Israel e os territórios palestinos ocupados.
Vinculando a ideologia sionista às políticas do passado e às presentes atrocidades, nós seremos capazes de apresentar uma clara explicação lógica para a campanha de boicote, não-investimento e sanções contra Israel. Um Estado que apoiado por um mundo silencioso permitirá em si mesmo, ajudar à expulsão e destruição do povo nativo da Palestina. Mas desafiá-lo por meios não-violentos e mesmo na esfera ideológica é uma causa justa e ética. É ainda uma forma efetiva de difundir à opinião pública não apenas contra a presente política genocida em Gaza, mas também prevenir futuras atrocidades. E mais importante que tudo isso, é perfurar o balão da retórica da “justificada fúria” israelense que sufoca os palestinos toda vez que é inflado. Este processo de desmonte da ideologia sionista ajudará a terminar com a imunidade e impunidade de Israel garantida pelo ocidente. Sem esta imunidade, espero que mais e mais pessoas em Israel começarão a reconhecer a verdadeira natureza dos crimes cometidos em seus nomes e a ira destes começará a ser direcionada contra aqueles que os prendeu juntamente com os palestinos nesta armadilha desnecessária provocando ciclos de violência e atrocidades.
- Ilan Pappe é doutor em História pela Universidade de Oxford, 1984. Atualmente detém uma cadeira no Departamento de História na Universidade de Exeter, Inglaterra, onde é co-diretor do Centro para Estudos Etno-Políticos. O presente texto foi originalmente publicado em inglês como editorial do site Electronic Intifada (http://electronicintifada.net) no dia 2 de janeiro de 2009.
Ilan Pappé nasceu em 1954, Haifa, Israel. É filho de judeu-alemães que escaparam da perseguição nazista nos anos 1930 e é um dos mais renomados especialistas do conflito Israelo-Palestino tendo publicado 9 livros, sido co-autor em outros 3 e escrito centenas de artigos para jornais acadêmicos.
O mais famoso de seus livros, A Limpeza Étnica da Palestina (The Ethnic Cleansing of Palestine. Oneworld Publications, 2006; sem tradução para o português) denuncia que a guerra de 1948 foi uma sistemática e elaborada estratégia para expulsão dos palestinos, destruição das áreas construídas, objetivando a eliminação de não-judeus para a criação de Israel – um Estado para um só grupo étnico-religioso e/ou cultural-lingüístico. Um processo racista e colonial, eliminando a população tradicional para a instalação de grupos estrangeiros.
Em 1999, foi candidato ao parlamento israelense em uma aliança entre os partidos comunistas Maki e Hadash e apóia a criação de um só Estado não-étnico/confessional como solução do conflito. Em 2007, depois de dar aulas de Ciência Política por 23 anos, foi obrigado a pedir demissão da Universidade de Haifa por apoiar publicamente o boicote acadêmico contra Israel em razão de suas políticas opressivas e discriminatórias.
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