Semana On

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O saco sem fundo das verbas oficiais e a mídia alternativa

“O ecossistema da publicidade oficial é uma distorção que partidariza o Estado e inibe a alternância de poder.” - Eugênio Bucci

No dia três de abril de 2007, em um artigo intitulado “A morte anunciada da Agência Carta Maior”, Venício A. de Lima perguntava que caminhos deveria seguir o cidadão para garantir o seu direito de expressão em uma sociedade na qual a liberdade de imprensa seria exercida, de fato, apenas pelos grandes veículos de comunicação, dotados de alcance e poder de fogo. Menos de dois anos depois, ele mesmo respondeu a pergunta, dando a deixa para que muita gente apontasse a mesma saída para a redenção da chamada mídia alternativa.

No artigo “Liberdade de expressão e mídia alternativa: dois anos depois”, Lima cita o Manifesto do Fórum Mídia Livre que se reuniu pela primeira vez em junho de 2008 no Rio de Janeiro (e pela segunda vez nos últimos dias 26 e 27 de janeiro, durante o Fórum Social Mundial de Belém entre 23 e 28 de janeiro), segundo o qual, apoiado no princípio de que “um Estado democrático precisa assegurar que os mais distintos pontos de vista tenham expressão pública” reivindica que “as verbas de publicidade e propaganda sejam distribuídas levando em consideração toda a ampla gama de veículos de informação e a diversidade de sua natureza; que os critérios de distribuição sejam mais amplos, públicos e justos, para além da lógica do mercado”.

Trocando em miúdos, a proposta é que a chamada mídia alternativa possa abocanhar uma fatia das centenas de milhões de reais que são anualmente endereçados como publicidade oficial aos veículos de comunicação Brasil afora.

Não é pouca coisa. O Orçamento da União para 2009 prevê um total de R$ 547,4 milhões para gastos de publicidade da Presidência da República e dos ministérios, um aumento de 35% em relação a 2008. É o que diz a reportagem de Regina Alvarez, publicada dia 12 no jornal O Globo. Este montante não engloba as estatais. Eugenio Bucci, no artigo “O Estado-anunciante”, aponta que a Caixa Econômica Federal, a Petrobras e o Banco do Brasil (os três maiores anunciantes do setor público), veicularam, em 2007, campanhas que custaram R$ 1,35 bilhão.

O relatório anual Mídia Dados, editado pelo Grupo de Mídia São Paulo, mostra que em 2007, entre os setores que mais anunciaram, estava o de "serviços públicos e sociais", no qual se encontram as propagandas de governos: totalizaram R$ 1,44 bilhão em publicidade.

Esta idéia (de que a mídia alternativa deva abocanhar o seu quinhão neste montante) foi amplamente apoiada nesta semana pelos participantes do Fórum, como o professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, Marcos Dantas: “Em função de sua natureza essencialmente antidemocrática, é preciso se buscar novos caminhos e espaços a fim de com ela (com a mídia) disputar a agenda do debate público. Um desses caminhos seria a definição de políticas públicas capazes de financiar a multiplicação de vozes representadas pelo movimento de Mídia Livre”, afirmou.

No artigo “Uma outra mídia é possível (e necessária)”, escrito antes dos debates do Fórum Mídia Livre, Dantas clamava pela “construção de uma mídia alternativa, de uma mídia livre dos compromissos políticos e econômicos da mídia hegemônica” e apontava os caminhos para a sua construção no movimento popular e no uso de ferramentas alternativas: “Através da rede mundial de computadores e graças ao barateamento generalizado dos meios de reprodução das idéias, o movimento popular não precisa mais depender de custosos equipamentos e instalações para colocar suas propostas em debate na sociedade”.

Pouco depois, após os debates, no artigo "Para construir a mídia hegemônica”, a saída apontada por Dantas para a viabilização da mídia alternativa encontrou no financiamento estatal sua solução. Diz ele: “É necessário ter dinheiro de verdade. Só existem duas fontes de recursos dignas desse nome: grandes anunciantes corporativos ou o Estado... A publicidade paga pelos grandes anunciantes não visa apenas vender produtos ou serviços, visa também moldar comportamentos e idéias... não se destina e não pode se destinar a sustentar a mídia contra-hegemônica... Sobra, pois, o Estado”.

Outro que apoiou, no Fórum, a visão do Estado como mantenedor da mídia alternativa foi Luis Hernández Navarro, do jornal mexicano La Jornada, segundo quem “os meios alternativos de comunicação devem almejar a disputa da agenda do debate público com a mídia tradicional e não abrir mão de lutar pela definição de políticas públicas capazes de manter a informação como um bem público”. Leia-se em “políticas públicas” a briga por um naco das verbas oficiais de publicidade.

Na mesma linha, Jonas Valente, do Intervozes, afirmou que “abdicar dos recursos do Estado, isto é da riqueza produzida pela população, significa deixar estes recursos nas mãos dos conglomerados”. Maria Pia Matta, da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC), complementou dizendo que a comunicação é um "direito humano que envolve todos os outros e sobre o qual não é possível avançar sem um trabalho direto com os governos.".

Para Renato Rovai, da Revista Fórum, “a ampliação da Mídia Livre como movimento unificado passa necessariamente pelo apoio do Estado, mas não de acordo com a lógica que até então regulou sua relação com a mídia tradicional”.

Todas estas leituras apontam para a figura centralizadora, típica da esquerda, que enxerga no Estado o regulador de todas as coisas, o mantenedor de todos os âmbitos sociais, o regulador mor da sociedade. Dantas deixa clara esta visão:

(O Estado) é uma instituição permanente da sociedade, embora mutável como a própria sociedade, que reúne um grande conjunto de instituições a serviço dessa mesma sociedade: Executivo, Legislativo, Judiciário, Forças Armadas, sistema de ensino, sistema de saúde, Previdência pública etc., inclusive os meios de comunicação. Sim, os meios de comunicação não passam de aparelhos ideológicos do Estado.”.

É exatamente aí que a porca torce o rabo.

Os urras dos participantes do Fórum Mídia Livre comemoram uma proposta que, teoricamente, contraporia à grande mídia – comprometida pela dependência do poder político e econômico – uma nova mídia, alternativa, livre das pressões a que sua prima rica estaria exposta e comprometida com as causas da população e com um jornalismo mais próximo dos problemas sociais. Ocorre que, segundo a proposta dos midialivristas, esta mídia alternativa passaria a ser financiada pelo Estado. Será que, dependente dos financiamentos publicitários governamentais, esta imprensa não estaria, também, amarrada a compromissos, da mesma forma que ocorre com o mainstream?

Patinamos aqui sobre a fina camada de gelo das suposições. Do que deveria ser, e não do que, de fato, é. Diz Dantas: “Numa sociedade democrática (ainda não é bem o caso do Brasil), o Estado é público: é instrumento do público na efetivação de ações de interesse público. E, nesse caso, os recursos que esse Estado recolhe da sociedade para executar as suas ações, serão recursos tratados como res publica, cuja destinação será publicamente decidida.”.

Infelizmente, entre a teoria e a realidade há um abismo.

Ex-diretor do Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet sustenta que o poder econômico e a mídia dominam a sociedade e controlam o poder político e que a aliança com os meios financeiros e a adoção dos seus métodos por parte da mídia são a causa da decadência da imprensa. Ora, se esta é a causa da decadência da imprensa tradicional será inteligente clamar que este mesmo poder político, encastelado no Estado, seja o financiador de uma imprensa livre e alternativa? Não seria inocência considerar que este poder político, por meio do Estado, se eximirá de tentar obter controle sobre a mídia alternativa da mesma forma que pode fazê-lo com a grande mídia?

A independência, que seria a essência da mídia – e premissa sine qua non de uma imprensa que se apresenta como alternativa – não seria ameaçada por uma dependência financeira para com o Estado?

O jornalista Maurício Tuffani aponta esta armadilha e amplia o debate: “No Brasil, é muito grande a participação do Estado na receita publicitária geral. Ou seja, ele provê grande parte da receita publicitária da própria grande mídia. No entanto, parece ser claro que esta é bem mais imune à ingerência do Estado em sua política editorial do que a mídia alternativa, que tende a ser mais dependente, vulnerável e, conseqüentemente, manipulável. Mas essa é uma equação genérica, e cada caso tem de ser considerado em particular. Acho que mais importante é a questão que se coloca para as mídias sobre quais financiadores podem ser aceitos. Se uma mídia se propõe a ser independente editorialmente, deve receber financiamentos de origens diversas para não depender exclusivamente de nenhuma.”.

No artigo “A crise dos grandes jornais”, o jornalista e professor Bernardo Kucinski analisa a crise dos grandes jornais citando as opiniões de Ramonet no Fórum de Mídia Livre, segundo quem há uma “estreita relação, quase que orgânica, entre o capital financeiro e os grandes grupos de mídia”. Argumenta que “é como se os bancos fornecessem o combustível dos conglomerados midiáticos” e que, “quando advém ao estrangulamento do crédito, principal mecanismo desta crise depois do colapso dos grandes bancos americanos e alguns europeus, precipita-se uma situação de insolvência que já vinha tomando forma desde que a internet começou a comandar a dinâmica do jornalismo.”.

Na seqüência de seu raciocínio, Kucinski sustenta que as funções editoriais principais dos grandes jornais vêm se deteriorando com o tempo e aponta a cobertura da mídia estadunidense sobre a Guerra do Iraque como exemplo: “A grande mídia americana tornou-se uma disseminadora de mentiras geradas pelo governo”, afirma.

Se nos Estados Unidos o Governo – por meio da máquina do estado e do poder político-econômico - utiliza as ferramentas do Estado para obter resultados sobre a grande imprensa, o que ocorreria com a mídia alternativa no Brasil, dependente de recursos oficiais? Se transformaria em um apêndice do poder?

Imprensa alternativa remete, antes de tudo, a um posicionamento independente, sua importância reside na necessária independência de opinião, que por sua vez pode garantir uma informação menos comprometida com o poder político-econômico. Trabalhar por esta independência, livrar-se do jugo destes poderes que podem, por meio da publicidade, impor ou vetar pautas, deveria ser o objetivo a ser alcançado pelos midialivristas.

Eugênio Bucci, no artigo “O ecossistema da propaganda oficial”, é outro que expõe os perigos de o Estado ser aceito pela mídia como fonte primordial de receita.

Governar virou sinônimo de anunciar. Antes, o bom governante era aquele que transformava a polis em canteiro de obras. Agora, é aquele que transforma as supostas obras em espetáculo audiovisual. Antes, a imagem ideal de um governante era a do engenheiro, de capacete de plástico na cabeça, vistoriando as construções. Agora, o bom governante tem a imagem de exímio comunicador. Faz mais aquele que sabe comunicar que faz mais. E dá-lhe publicidade custeada com dinheiro público. Essa publicidade não é de utilidade pública, salvo raríssimas exceções. É proselitismo puro. Ora, isso é razoável? Qualquer pessoa em seu juízo normal diria que não. O dinheiro público, que é de todos, jamais poderia servir para que um ponto de vista parcial – o de quem governa – prevaleça sobre os demais.”.

Para Bucci, esta dependência financeira da mídia resulta em que “a sociedade perde em pluralidade, pois a propaganda oficial é essencialmente partidária. Ela monologa e nunca dialoga. Não dá voz aos que pensam diferente. Pior: procura neutralizar as vozes discordantes.”. Este papel, essencialmente político, se coaduna perfeitamente com a noção de que “os meios de comunicação não passam de aparelhos ideológicos do Estado”, como afirmou Dantas anteriormente.

O jornalista Carlos Castilho não considera ser papel do Estado financiar a mídia alternativa: “O Estado simplesmente não teria recursos para financiar, mesmo parcialmente, as iniciativas de comunicação situadas fora do âmbito da chamada Grande Imprensa. O numero de projetos é enorme e cresce sem parar”. Indo além, ele questiona, inclusive a necessidade deste tipo de financiamento diante das novas tecnologias: “... já está provado que a participapção e colaboração dos usuários são suficientes para garantir a sobrevivência de páginas informativas na Web. Há vários exemplos disto nos Estados Unidos, Europa e Asia”, opina.

Os efeitos perniciosos da dependência de verbas públicas sobre o Jornalismo é o que pode restar das propostas colhidas no Fórum Mídia Livre realizado em Belém. Sob o argumento da busca pelo fortalecimento de uma imprensa alternativa, os que defendem que estes veículos dêem também uma colherada no caldeirão de recursos públicos estão caminhando por searas perigosas, cujos resultados Eugênio Bucci delineou em sua análise sobre os as verbas de publicidade governamentais e a grande mídia:

A própria instituição da imprensa sai perdendo, por mais que isso não seja dito. Há quem alegue que a publicidade dos governos ajuda os órgãos de imprensa e, consequentemente, estimula o jornalismo. Mentira. O que essa indústria vem criando entre nós é uma força que, em lugar de fortalecer, conspira contra o exercício da liberdade de imprensa... Enfim, quem mais perde é a democracia”, afirma.

Bucci joga uma luz, também, sobre uma fatia da imprensa pouco abordada, a que está fundeada no interior: “Que ninguém se engane. Nas cidades médias, o peso da publicidade oficial local é tamanho que, muitas vezes, os veículos passam a depender delas para sobreviver. Ficam na mão do poder. Não é exagero afirmar que, muitas vezes, os recursos públicos injetados no mercado anunciante são recursos de constrangimento, aliciamento, coerção e chantagem contra a imprensa.”.

Em Mato Grosso do Sul esta afirmação é particularmente verdadeira. Pode-se afirmar que no Estado, os jornais diários - assim como a quase totalidade dos veículos de periodicidade semanal - são financiados em grande parte por publicidade oficial (não só proveniente dos Executivos, mas dos Legislativos e demais órgãos das administrações municipal, estadual e federal). Afirmar que possuem independência jornalística seria uma leviandade que eu não cometeria.

Deve-se questionar, ainda, se a questão do financiamento é, mesmo, o grande gargalo da mídia alternativa. Em agosto de 1988, no artigo “Imprensa alternativa: alcances e limites” (publicado na Revista Tempo e Presença, nº 233) Perseu Abramo analisava o tema e apontava outras questões, como a pouca quantidade de leitores que a imprensa alternativa, cujo alvo primordial deveria ser os setores excluídos da sociedade, arrebanhava. Analisando as origens desta imprensa no País, Abramo mostra que o público destes veículos era, na verdade, muito diverso do seu alvo original.

Quem foram, de modo geral, os leitores das numerosas publicações alternativas que nasceram, floresceram e pereceram, a partir do início dos anos 60? Certamente não a grande massa. Dessa, como se sabe, infelizmente a grande maioria não tinha e continua não tendo os meios materiais e culturais, o tempo, a paciência, a disposição e o hábito de ler coisas impressas, entre as quais, os jornais e as revistas. Sobram as minguadas camadas mais esclarecidas e politizadas da grande massa, a chamada aristocracia operária dos grandes centros industriais, setores médios não alienados, os políticos, os ativistas sindicais, os quadros intermediários e centrais, os dirigentes e militantes de organizações políticas revolucionárias. Um público bastante diversificado na sua heterogeneidade, mas exíguo em número.”.

Este cenário mudou da década de 60 para cá? Esta é uma dúvida que mereceria investigação mais aprofundada, visto que a conquista de um público leitor pode constituir-se, por si só, de garantia de independência financeira para um veículo de comunicação.

Karl Marx atribuía aos jornais o papel de arma de combate à opressão e à exploração e não o de um veículo neutro. “A função da imprensa é ser o cão-de-guarda, o denunciador incansável dos opressores, o olho onipresente e a boca onipresente do espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade”. O filósofo alemão disse ainda que “o dever da imprensa é tomar a palavra em favor dos oprimidos a sua volta”. Creio que esta visão norteou muitos conceitos debatidos pelos midialivristas em Belém. No entanto, trazendo à baila um viés mais libertário da esquerda, seria de bom tom argüir se, após tantas experiências fracassadas do socialismo real, não seria hora de imprimir nesta estratégia leituras menos burocráticas e mais criativas.

A mídia alternativa não pode negar as questões econômicas. Pelo contrário, elas são vitais para a sua existência. O grande desafio, portanto, é o de viabilizar projetos administrativos que não dependam exclusivamente de verbas oficiais ou do poderio político e econômico. Talvez, o grande desafio desta importante fatia da mídia não seja o de estabelecer estratégias para assegurar uma fatia da publicidade oficial, mas o de dar voz ao sonho de justiça social sem esquecer o empreendedorismo e as soluções criativas e talentosas que podem garantir a estes veículos um público leitor que o sustente.

5 comentários:

Luiz Roberto Lins Almeida disse...

Concordo com vc.
Digo mais, mídia alternativa subvencionada pelo Estado não é alternativa.
vários sites vivem de sua própria propaganda. Para isso, precisam conseguir leitores, coisa que é mais fácil para a imprensa tradicional, claro. Mas não é impossível para os pequenos.
Aliás, muitas vezes, usar dinheiro estatal é uma desculpa para incompetência. Um livro sem leitores? patrocínio estatal. um filme sem bilheteria? patrocínio estatal. um jornal sem leitores? patrocínio estatal.

Ricardo Soares disse...

um colega da Tv Brasil me passou endereço do seu blog acerca do massacre acontecido em Gaza... gostei do que vi aqui...modestamente escrevi sobre o assunto também em meu blog inclusive mencionando opiniões deploráveis como a do jornalista Salomão Schwartzman... dê uma espiada... os blogs não podem se calar mesmo... abraço

Alice Salles disse...

Qualquer mídia patrocinada ou mantida por terceiros não vale ser nossa fonte de informação. Foi-se o tempo em que a mídia poderia se bancar e ser independente. Ou melhor, já existiu isso!? É complicadíssimo.

Barone disse...

Luiz,
até porque mídia alternativa pode ser "qualquer" uma que esteja fora da grande mídia, inclusive um jornalizinho reacionária. O que é ser mídia alternativa hoje?

Ricardo,
obrigado pela visita. Já estou "folheando" o seu blog e passarei a visitá-lo com frequência. Volte sempre.

Alice,
é complicado ser independente (ou seja, ter o pré-requisito mínimo para fazer Jornalismo) sendo refém do poder político-econômico. Não sei qual a saída, se alguém descobrir me avise.

Anónimo disse...

Caro Victor,

belo artigo. Vi-o no Observatório da Imprensa e lá deixei um comentário. Mas reitero a admiração pelo seu texto.