Semana On

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Mentiras que podem virar verdades

No último dia 6 o jornal O Globo reproduziu uma reportagem da BBC - sob o título “Reservista brasileiro de Israel diz que clima é de 'profunda tristeza'” – na qual dá voz a um jovem brasileiro que, integrando as forças israelenses em Gaza, garante que o objetivo do exército de Israel não é matar civis, mas atingir o Hamas.

Qualquer semelhança com o discurso oficial sionista não é mera consciência. É claro que o objetivo é o Hamas, o problema é que Israel não dá à mínima se, para atingir um militante do Hamas, acabe matando civis também – como já ocorreu diversas vezes neste conflito que já tirou a vida de mais de mil palestinos, a maior parte deles civis e crianças.

Diz o soldado israelense: "Eu sou um soldado terrestre dentro da minha unidade. Ao entrar em Gaza, o intuito de Israel não é destruir o máximo possível. Pelo contrário, é destruir o mínimo possível. É tentar combater o problema com a maior precisão possível. A intenção não é matar, é prender quem está cometendo um crime contra a humanidade. É o grupo Hamas, não são os civis. É profundamente triste termos que chegar a esse extremo de atentar de alguma forma contra a vida humana, seja ela de quem for, mesmo que seja de um terrorista que, se nós não o matarmos, ele vai nos matar."

Não é o que mostra, por exemplo, a reportagem de Conal Urquhart, publicada no jornal inglês The Guardian, em 2005, trazendo o testemunho de soldados israelenses sobre abusos cometidos contra civis palestinos em Gaza. O texto que segue é uma tradução livre desta reportagem e mostra de forma clara o sentimento de revanchismo que domina o exército de Israel sempre que se vê frente a frente com palestinos.

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Soldados israelenses reportam mortes indiscriminadas pelo exército e a cultura da impunidade

De uma distância de 70 metros, através da mira de sua metralhadora, Assaf viu que o palestino tinha entre 20 e 30 anos, estava desarmado e tentava se afastar de um tanque israelense. Mas os detalhes não importavam muito, porque as ordens de Assaf eram de "disparar em qualquer coisa que se mexesse".

Assaf, um soldado do exército israelense, puxou o gatilho, acertando o corpo enquanto este caía no chão. "Ele correu e eu comecei a disparar durante alguns segundos. Caiu. Eu era uma máquina. Eu abri fogo. Deixei para lá, foi isso. Nunca falei sobre isso depois."

Era o verão de 2002 e Assaf e sua unidade blindada havia sido designado a entrar na cidade de Dir al Balah, em Gaza, após o disparo de morteiros contra colonos judeus. Suas ordens eram - segundo disse ao Guardian - “matar todos os que estivessem pelas ruas”. “E nós iríamos obedecer"

Não foi a primeira vez que Assaf matou um inocente em Gaza seguindo ordens superiores, mas após ter se desligado do exército, começou a pensar no que havia feito.

"A razão pela qual estou lhe dizendo isto é que eu quero que o exército pare para pensar sobre o que ele nos pede para fazer, atirar em pessoas desarmadas. Eu não acho que é legal."

Assaf não está sozinho. Nos últimos meses, dezenas de soldados, incluindo o filho de um general israelense, todos re-convocados recentemente, se manifestaram para compartilhar suas histórias de como foram ordenados a atirar a matar pessoas desarmadas sem risco de serem posteriormente repreendidos.

Os soldados foram colocados em contacto com o Guardian, por meio da organização Breaking the Silence, um grupo formado por antigos soldados que deseja que o público israelense confronte a realidade das atividades do seu exército. O grupo insistiu no anonimato de suas testemunhas para proteger os soldados de possíveis perseguições e repressão.

Embora o número de testemunhas seja pequeno, seus testemunhos refletem uma cultura generalizada de impunidade, de acordo com Sarit Michaeli, do grupo de direitos humanos israelense B'Tselem.

"Durante a primeira Intifada, foram respeitadas as regras de engajamento. Na segunda não existem regras e as que existem são mantidos em segredo. Isto deixa uma ampla margem de interpretação para oficiais e soldados", disse ela. De acordo com a B'Tselem, 3.269 palestinos foram mortos pelas forças de segurança israelenses em quase cinco anos. Cerca de 1700 destes, acredita-se, civis - e 654 menores de idade.

Segundo o exército israelense, durante o mesmo período, houve 131 investigações sobre abuso de força por parte de soldados, resultando em 18 acusações e sete condenações. Como resultado dos testemunhos recebidos pelo Guardian e pela Breaking the Silence, procuradores do exército estão investigando mais 17 casos de possível atividade criminosa.

O número de mortes, os depoimentos dos soldados e o pequeno número de condenações parecem contradizer as declarações oficiais do exército de Israel: "Os soldados não irão utilizar as suas armas e força para prejudicar as pessoas que não são combatentes ou os prisioneiros de guerra, e fará tudo ao seu alcance para evitar causar danos à suas vidas, corpos, dignidade e bens", diz o site das Forças de Defesa de Israel.

Esta doutrina coloca claramente o Estado de Direito acima das conveniências militares. "Os soldados israelenses serão instruídos a cumprirem apenas ordens legais e de absterem-se de cumprir ordens flagrantemente ilegais."

Apesar das suas reservas sobre a legalidade de algumas ordens, Assaf diz que as cumprirá novamente quando retornar à ativa.

Outro soldado, Moshe, disse ao Guardian que ele e seus colegas chegaram a ser pressionados para obedecerem ordens ilegais de atirar para matar. Como parte do seu curso de formação de sargento, ele e seus colegas formandos foram ordenados a criar emboscadas em Jenin, em Maio de 2003. Ele disse que houve "pressão para matar".

Antes da operação, os soldados foram informados que estavam à procura de homens armados. Mas as suas metas também incluíam crianças e adolescentes, que habitualmente subiam nos blindados vindas dos becos estreitos. Em algumas ocasiões, metralhadoras foram roubadas dos veículos.

"Fomos expressamente avisados que estávamos à espera de alguém que subisse em um APC, para que atirássemos para matar", disse Moshe. "Depois de um dia ou dois, um menino de 12 anos subiu em um dos APC. Houve uma série de suposições sobre a sua idade. Primeiro disseram que ele tinha oito anos, depois que ele tinha 12 anos. Em qualquer caso, ele subiu em um APC e um dos nossos atiradores o matou. Uma outra companhia também teve um incidente com uma criança ou adolescente que foi morto."

As estatísticas recolhidas pelo The Palestinian Human Rights Monitoring Group mostram que, em 14 de maio, Diya Gawadreh, 13, foi morto à tiros. Amjad Nawahda Kamal, 13, foi baleado por soldados israelenses em 22 maio. Ele faleceu em 27 maio.

Depois de voltar para a sua unidade, Moshe relatou vários incidentes envolvendo crianças e adolescentes que acabaram sendo mortos por balas que teriam sido endereçadas as suas pernas mas atingiram seus peitos. A situação foi banalizada.

Um tema comum entre os soldados ouvidos pelo Guardian foi o "desejo de se vingar coletivamente dos palestinos pelas vítimas israelenses”.

Maio de 2004 foi um mês ruim para o exército israelense em Gaza. Quatro soldados foram feitos em pedaços quando seu APC atingiu uma mina em uma estrada da cidade de Gaza. Outros sete soldados foram mortos em um incidente similar em Rafah, no outro extremo da Faixa de Gaza. Em resposta, o exército lançou uma operação "para assegurar o bairro ao longo da Estrada Philadelphi [a fronteira entre Gaza e Egito] e para certificar-se de que o local está livre de terroristas", disse o Major-General Dan Harel, comandante local.

Milhares de palestinos foram expulsos das suas casas e cerca de 50 mortos, quase a metade civis. De acordo com Rafi, um oficial da Shaldag, uma força de elite ligada à força aérea, a missão tinha como simples objetivo vingança. "Os comandantes disseram para matarmos tantas pessoas quanto possível", disse ele.

Ele e seus homens foram enviados para matar um homem que parecia estar tocando no chão, como se estivesse plantando uma mina na estrada, ou qualquer pessoa vista em um telhado ou uma varanda, que pudessem estar observando as forças israelenses por razões militares, independentemente de saber se eles estavam armados.

Asma Moghayyer, 16, e seu irmão, Ahmed, 13, foram fuzilados. O exército israelense insistiu na tese d que as crianças haviam sido atingidas por uma mina na estrada. No entanto, os jornalistas que foram ao necrotério te4stemunharam que elas haviam sido atingidas por tiros na cabeça.

A verdade, disse Rafi, foi que eles foram abatidos por um soldado israelense seguindo ordens claras para atirar em qualquer pessoa que estivesse em um telhado, independentemente do seu papel no conflito.

Rafi diz que sua principal impressão da operação foi "caos" e de "uso indiscriminado de força". "Gaza foi considerado um playground para atiradores."

Eli, um sargento paraquedista, foi enviado em missão para vigiar um acampamento de refugiados em Nablus, em 27 novembro 2002, durante o Ramadã. Ele viu um outro grupo de soldados parar um homem na rua no início da manhã. “Eles gritaram, Wakef (parar em árabe]). O homem começou a correr e eles atiraram contra ele”.

"Eles viram um objeto que ele estava carregando e temeram ser uma bomba. [Eles] atiraram nele e confirmaram a morte lançando uma granada para, em seguida, atirar nele mais uma vez, na cabeça", afirmou.

O homem de 24 anos de idade, Jihad Mohammed al-Natour, carregava um tambor usado para despertar o acampamento antes do amanhecer para que possam se reunir para comer. Trata-se de uma atividade comum para aquelas pessoas. O baterista é conhecido como o musaharati. "Ninguém se importou em nos dizer isso e por isso o cara morreu" disse Eli ao Breaking the Silence.

A onda de atentados suicidas que se iniciou em 2001 fez muitos soldados sentirem que as suas famílias e o país estavam sob grave ataque e ajudaram a criar uma cultura em que o exército não questionou crimes de guerra.

Em depoimento, Avi contou como um soldado de sua unidade foi liberado após ter assassiando um palestino inocente. A equipe do sargento pára-quedista Avi estava servindo em Hebron, em 13 de outubro de 2000, quando ouviu um disparo feito por um de seus homens a partir de uma posição acima dele. "Sabíamos que o homem era louco ... ", disse ele.

O soldado negou ter atirado, mas foi contrariado por um filme feito por uma unidade de inteligência. "Você vê um vídeo, uma gravação de alguém disparando contra a praça – contra alguém que estava apenas descarregando algumas coisas de seu veículo. Alguém com vinte e poucos anos de idade ... O homem foi atingido nas costas. Um dia depois nos disseram que ele havia morrido. "

O homem era Mansur Taha Ahmed, 21, um mercador de café que deixou mulher e três filhos. Avi disse: "Nós mantemos a nossa roupa suja dentro de casa, por isso o comandante decidiu manter silêncio sobre este caso. Ele fez o vídeo desaparecer e o soldado teve que fazer 35 dias de tarefas ... depois do que ele voltou para a ativa ".

Todos os soldados, com exceção da Assaf, ficaram chocados com as suas experiências, mas sem saber como agir diante delas. "A crença na ética do exército israelense é tão fundamental para a nossa sociedade ", disse Rafi. "As pessoas não querem ouvir a realidade."

Coronel Liron Libman, procurador-chefe militar, disse que os depoimentos trazidos à luz pelo Breaking the Silence resultaram em 17 inquéritos, alguns dos quais já estavam em curso. As investigações sobre os depoimentos, disse ele, revelaram que alguns foram exagerados ou se basearam em boatos. No entanto, os incidentes descritos para o Guardian e pelo Breaking the Silence pelos soldados israelenses são confirmados pelos registros da imprensa e de grupos de direitos humanos.

O coronel Libman disse que seu departamento é independente do exército e que uma investigação criminal pode ser desencadeada por meio de relatórios, ações de organizações não governamentais, fontes palestinas e reclamações dentro do exército. "No entanto, devido à natureza da situação, que nós descrevemos como conflito armado e não guerra, não é possível investigar a morte de todos os civis palestinos."

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