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quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Livro conta a saga do povo palestino através da história de herói da resistência

Em um campo de refugiados perto de Beirute, o velho Yunis encontra-se em coma profundo. Khalil, médico e filho espiritual do doente, recusa-se a aceitar o fato de que talvez ele nunca volte a consciência e mantém-se ao lado dele, contando-lhe a sua própria história, que nada mais é que a saga do povo palestino. Quando jovem, Yunis casou-se com Nahila, uma moça que se torna cidadã israelense e fica na Galiléia, enquanto ele envolvido na Resistência, vive no campo de refugiados de Chatila, no Líbano. Yunis tinha de atravessar a fronteira clandestinamente para encontrar-se com sua esposa.

Esta é a história do livro Porta do Sol, da Editora Record. Valendo-se de histórias contadas no campo de refugiados, o autor Elias Khoury entrelaça à vida de Yunis aos muitos fatos importantes aconteceram no Oriente Médio: a Diáspora, o aperto de mãos de Arafat e Rabin em Washington, a invasão israelense ao Líbano e o massacre de Sabra e Chatila.

Leia abaixo trecho do primeiro capítulo do livro.

PARTE I
Hospital Galiléia

Umm-Hassan morreu.

Vi as pessoas correndo nos becos do campo e ouvi o pranto. As pessoas saíam de suas casas, agachavam-se para catar suas lágrimas e corriam.

Nabila, a esposa de Mahmud Alqássimi, que foi a nossa mãe, morreu. Costumávamos chamá-la de "nossa mãe" porque todos que nasceram no campo Chatila haviam caído dos úteros de suas mães diretamente nas mãos dela.

Eu também caí nas mãos dela, e no dia em que ela morreu, corri.

Umm-Hassan veio de Kweiket, seu vilarejo na Galiléia, para ser a única parteira do campo Chatila - uma mulher sem idade e sem filhos. Eu a conheci sempre velha; ombros curvados, rosto coberto de rugas e carquilhas: olhos grandes brilhando num quadrado branco e um xale branco cobrindo-lhe o cabelo branco.

Saná, sua vizinha, mulher de Karim Aljachi, o vendedor de knefe,* disse que Umm-Hassan passara por ela na noite anterior e lhe dissera que a morte chegaria.

"Ouvi sua voz, minha filha, a morte sussurra e tem a voz baixa."

Falou com seu sotaque beduíno para contar a Saná sobre o chamado da morte.

"A voz me chegou de manhã e disse: 'esteja pronta'."

"Fez as recomendações de como devia ser amortalhada."

"Pegou-me pela mão", disse Saná, "e levou-me para sua casa, abriu o guarda-roupa de madeira marrom e me mostrou a mortalha de seda branca; contou-me que tomaria banho antes de dormir. 'Assim morro pura, e não quero que ninguém me lave a não ser você.'"

UMM-HASSAN morreu.

Todo mundo sabia que a manhã dessa segunda-feira, 20 de outubro de 1995, era a data do encontro de Nabila, filha de Fátima, com a morte.

Todos acordaram e esperaram. Ninguém, porém, teve coragem de ir à sua casa para certificar-se de sua morte, pois Umm-Hassan avisara a todos, e todos acreditaram nela.

Apenas eu fui surpreendido.

Fiquei com você até as onze horas da noite; depois, exausto, fui para meu quarto e dormi. A noite do campo dormia; ninguém me avisou.
Mas as pessoas sabiam.

Não há ninguém que não acreditasse em Umm-Hassan, pois ela só falava a verdade.

Não foi ela a única que chorou na manhã de 5 de junho de 1967, enquanto todos dançavam nas ruas preparando-se para o retorno à Palestina? Ela chorou. Disse a todos com quem se encontrara que decidira vestir-se de luto. Todos riram dela e disseram que perdera o juízo. Durante os seis dias de guerra* não abriu as janelas de sua casa. No sétimo dia, saiu para enxugar as lágrimas dos outros. Disse que sabia que a Palestina não voltaria antes de todos nós morrermos.

Durante seus longos anos, Umm-Hassan enterrou seus quatro filhos, um após o outro. Chegavam carregados numa tábua com as roupas ensangüentadas. Sobrou-lhe apenas um filho chamado Naji, que vivia na América. Naji não é seu filho verdadeiro, mas é seu filho. Catou-o debaixo de uma oliveira no caminho de Kabri-Tarchiha, amamentou-o de seus secos seios, depois o entregou à sua mãe verdadeira no vilarejo de Qana, no Líbano.

Hoje morreu Umm-Hassan.

Ninguém teve coragem de entrar na sua casa. Mais de vinte mulheres aglomeraram-se na frente da casa e aguardaram. Saná chegou e bateu à porta; ninguém atendeu. Empurrou-a, abriu; correu até o quarto e viu Umm-Hassan dormindo; sua cabeça coberta pelo lenço branco. Saná aproximou-se, tocou seus ombros, a frialdade do seu corpo passou para as palmas da mulher do vendedor do knefe, que gritou. As mulheres então entraram e o choro se levantou, as pessoas correram.

Eu também queria correr com os que correram e entrar com os que entraram para ver Umm-Hassan dormir em sua cama para sempre, respirando o aroma de azeitona que exalava de sua pequena casa.

Mas não chorei.

Há três meses sinto-me incapaz de me emocionar. Apenas este homem suspenso sobre seu leito me faz sentir a tremura das coisas. Há três meses está deitado sobre esta cama no Hospital Galiléia, onde trabalho como médico, ou onde faço de conta que sou médico. Sento-me ao seu lado e tento. Ele está morto ou vivo? Eu não sei. Eu o estou ajudando ou fazendo-o sofrer? Amo-o ou o odeio? Conto-lhe histórias ou o escuto?
Faz três meses que estou no seu quarto.

E hoje, Umm-Hassan morreu, e quero que ele saiba, mas ele não ouve; quero que venha comigo para o funeral, mas ele não se levanta.

Disseram que estava em coma.

Um derrame cerebral que causou dano irreversível. Um homem deitado na minha frente, e eu aqui estou, sem saber o que fazer. Apenas tento não deixá-lo apodrecer vivo, pois estou certo de que ele está dormindo, não morto.

Mas que diferença faz?

Será que é verdade o que me dizia Umm-Hassan, que alguém dormindo é igual a um morto - que a alma abandona o corpo de quem dorme e a ele retorna quando acorda, enquanto a alma do morto parte porém não volta?

Onde estará a alma de Yunis, filho de Ibrahim, filho de Sleiman Alassadi?

Terá ido para muito longe, ou estará pairando sobre nós neste quarto de hospital, pedindo me para não abandonar o lugar, porque o homem está imerso em distantes trevas, temendo o silêncio?

Juro que não sei.

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