Semana On

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Kamel, Azevedo e a saída fácil de culpar os palestinos por seu próprio destino

“Israel não é aquela terra prometida de judeus ilustrados, sobreviventes do nazismo, que sonharam com formas socialmente inovadoras de produzir e viver. É um estado militarista, belicoso, infiltrado de fundamentalismo religioso”
José Paulo Kupfer

O editor executivo de Jornalismo da Globo e colunista do jornal O Globo, Ali Kamel escreveu nesta semana sobre o conflito em Gaza e reforçou a linha corrente entre os que apóiam o domínio israelense sobre os palestinos e os que – pior– ficam sobre o muro para, depois, contar os cadáveres e pedir paz.

O pensamento exposto no longo texto de Kamel pode ser resumido eu seu primeiro parágrafo: “Eu acredito em eleições. E acredito que o povo sempre tem a capacidade de julgar o que considera bom para si. Isso não quer dizer que o povo acerte sempre: não são poucas as vezes em que a decisão mostra-se errada no futuro. Não importa, no momento em que comparece às urnas, certo ou errado, o povo é responsável por suas escolhas.”.

Com isso – e na seqüência de seu texto – o jornalista defende a tese de que o culpado pelo massacre impetrado pelo exército israelense, que causou até o momento mais de mil mortes (670 civis – cerca de 300 crianças, 100 mulheres e 100 idosos.) e ferimentos em cerca de 4500 pessoas, é a própria população palestina.

O argumento é que, por terem eleito o Hamas em 2006 os palestinos seriam os responsáveis pelo seu próprio genocídio, impetrado pela 5ª maior potência nuclear do planeta: o exército de Israel.

Num sistema eleitoral que adota o voto distrital misto, o Hamas ganhou tanto no voto proporcional quando nos distritos, abocanhando 74 dos 132 assentos do parlamento. Ou seja, diante do desgaste de 40 anos do Fatah, e das denúncias de corrupção que pairavam sobre o movimento, os palestinos deixaram a paz de lado e optaram pela promessa de pureza divina e dos foguetes do Hamas.”, diz Ali Kamel.

Trata-se de uma falsa premissa, de uma simplificação que banaliza a história do povo palestino e as políticas adotadas por Israel desde a sua criação, baseadas em expansionismo sobre os territórios palestinos por meio da instalação de assentamentos, contrariando as leis internacionais, no seu isolamento e inviabilização de suas administrações e lideranças.

No próximo dia 8 de maio completa-se 61 anos de fundação do Estado de Israel, um berço para um povo historicamente perseguido e barbarizado nos campos de concentração do regime nazista. A este “povo sem terra” fora prometida uma nação, uma vida sem perseguições num país próprio e independente. A migração rumo à Terra Santa teve início com a falsa premissa de uma “terra sem povo para um povo sem terra”. Na verdade, havia naquelas terras um povo já estabelecido, cinco milhões de seres humanos, com sua economia, tradições e cultura. Era os palestinos, um povo politicamente dominado pelo Império Britânico.

São muitas as obras que ilustram o que ocorreu a partir daí. Um exemplo é o livro The ethnic cleansing of Palestine, do historiador israelense Ilan Pappe, que traça todas as etapas da limpeza étnica empreendida pelo Estado de Israel desde 1948 e a estratégia de disfarçar seus objetivos expansionistas em uma luta contra o terrorismo e o radicalismo muçulmano.

Reduzir toda a dimensão deste drama humano a um pleito eleitoral é, no mínimo, falta de bom senso.

Ali Kamel afirma que a “simples presença do Hamas nas eleições mostrava que aquilo não era uma democracia: porque democracia não é o regime em que todas as tendências disputam o voto; democracia é o regime em que todas as tendências que aceitam a democracia disputam o voto”.

Alega, também, que o Hamas não aceita a existência do Estado de Israel, e conclui: “O Hamas propôs um programa segundo o qual não há lugar para judeus na ‘Palestina’, o uso da luta armada deve ser reforçado para se livrar deles e os cidadãos comuns devem estar preparados para se sacrificar (morrer) pela religião, pela terra, pela liberdade e pela dignidade”.

Ora, assim como Reinando Azevedo – em sua verborragia diária sobre o tema – tenta de todas as formas justificar o massacre de palestinos – Kamel, na mesma linha, diz o seguinte: a morte de palestinos é resultado de suas escolhas, se tivessem escolhido um governo democrático e alinhado com Israel nada disso estaria acontecendo.

Trata-se de uma mentira.

O erro fatal dessa idéia está na total ignorância dos eventos que cercaram a fundação de Israel”. A frase de Daniel Lopes, do blog Amalgama, em sua resenha sobre o livro The ethnic cleansing of Palestine, resume a ópera.

Israel não está atacando o Hamas – que é, sim, uma entidade anti-democrática e anacrônica – mas o povo palestino, em seqüência a sua estratégia de décadas voltada ao objetivo de tornar inviável a existência de um Estado Palestino. Tem sido assim desde os primórdios do século XX.

O resultado pode ser visto, por exemplo, em artigo publicado hoje (15.01) pelo jornal New York Times e reproduzido pelo G1 sob o título “Crise em Gaza põe em risco idéia de dois estados convivendo lado a lado”.

O Egito e a Jordânia temem ser pressionados a absorver as populações palestinas que hoje vivem além das fronteiras. Se Israel não assumir a responsabilidade pela ajuda humanitária em Gaza, por exemplo, a pressão pode obrigar o Egito a preencher esse vácuo; a Jordânia, por sua vez, teme que Israel tente 'empurrar' os palestinos da Cisjordânia para seu território.”, diz a reportagem.

Olhando o passado

Durante as três primeiras décadas do século XX o movimento sionista iniciou um processo de guinada rumo ao Oriente Médio e a Terra Santa com o objetivo declarado de ali instalar uma nação judia. Os ingleses, cujo império havia servido de base para a implantação de grupos sionistas embrionários na região em 1922, passaram a transferir know-how tático para esses mesmos grupos a partir de 1936, quando, com a crescente insatisfação palestina com a ocupação inglesa, estes incorporaram em suas divisões de repressão comandos sionistas. Essa repressão durou de 36 a 39 e matou ou exilou grande parte da liderança política palestina, deixando seu povo sem intermediários ou defensores de peso para os anos seguintes.

De início, árabes e judeus conviveram pacificamente na região. Isso mudou quando ficaram claras as intenções dos líderes sionistas em estabelecer ali, em terras palestinas sob o domínio inglês, um Estado predominantemente judeu, no qual os palestinos não estariam incluídos enquanto povo e nação. Nos anos seguintes, os conflitos tornaram-se inevitáveis.

Recém criada, a ONU deu seu primeiro tropeço em relação à questão palestina com a resolução 181, de novembro de 1947, que dividiu de forma desproporcional o território em disputa com o intuito de formas dois estados, um israelense e outro, palestino. A divisão dava aos sionistas 56% de uma área na qual já viviam cerca de 500 mil judeus e 438 mil palestinos. A nação Palestina ficaria com 42% do território, no qual já viviam 818 mil palestinos e apenas 10 mil judeus.

Os árabes, que queriam mais tempo para analisar a realidade populacional da região, retiraram-se da mesa de negociações, dando aos judeus radicais o pretexto que queriam para dar seqüência ao que sempre tiveram em mente: a expansão de suas fronteiras “pela força, e não pela resolução” das Nações Unidas, como disse o próprio Ben-Gurion, considerado o “pai fundador de Israel”.

Em 1948 a Inglaterra abandonou a região, deixando o caminho livre para os sionistas, que já estavam praticando ataques contra a infra-estrutura dos britânicos, incapazes de retaliar por conta do enorme valor simbólico que os judeus carregavam devido ao que foram expostos durante o nazismo.

O que se seguiu foi uma aula de terrorismo – do mesmo tipo que Azevedo e Kamel condenam hoje. Tropas israelenses – sob as barbas dos funcionários da ONU na região – expulsaram os palestinos de suas casas e vilas. A limpeza étnica se intensificou entre o final de 1947 e o início de 1948, quando mais da metade da população palestina nativa, próxima de 800 mil pessoas, havia sido desabrigada, 531 vilas destruídas, e sete áreas urbanas esvaziadas.

A ONU e o mundo fecharam os olhos para estes crimes.

Desde então Israel – com o apoio dos Estados Unidos e a inércia da ONU – impõe sobre a população civil palestina sua força bélica e tirania com o objetivo claro de ocupar o que restou do território palestino na região.

Robert Fisk, em seu livro A grande guerra pela civilização: a conquista do Oriente Médio, aponta a política de ocupação dos territórios palestinos pelos israelenses: “Entre 1967 e 1982, meros 21.000 colonos tinham se mudado para a Cisjordânia e para Gaza. Em 1990, o total era 76.000. Em 2000, sete anos após os acordos de Oslo, o número estava em 383.000, incluindo-se os colonos da Jerusalém Oriental anexada. Em 17 de maio de 2001, René Kosimik, chefe da delegação da Cruz Vermelha Internacional a Israel e aos territórios palestinos, sentiu que era necessário lembrar o mundo que, sob a Convenção de Geneva, ‘a instalação de população do poder ocupante dentro dos territórios ocupados é considerada uma medida ilegal e qualifica como uma 'grave violação'... A política de assentamentos colonizadores como tal, na lei humanitária, é um crime de guerra’. E mesmo assim, enquanto Arafat estava morrendo em 2004, e quando o muro de "segurança" de Israel roubava ainda mais terra árabe, a ocupação e o confisco sobre os palestinos continuava.”.

Mas agressão sionista não se dá apenas com armas e com roubo de terras, mas, de forma tão ou mais perniciosa, por meio da inviabilização econômica, da guerra psicológica e do ataque aos direitos civis dos palestinos.

Inviabilização econômica

O bloqueio sobre Gaza tem condenado a população local a uma vida sem perspectivas, sem futuro.

Em 2006 a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) já advertia que a situação do povo palestino se deteriorava a cada dia e que não via uma solução para a crise econômica em Gaza e na Cisjordânia se não fossem suspensas as barreiras impostas por Israel.

A maior parte das exportações palestinas corresponde a mármores e pedras para o setor da construção, e, para cada dólar produzido pela economia palestina, a metade vai parar nas mãos de Israel. "A estrutura imposta pela ocupação israelense não permite à economia palestina uma diversificação de seus produtos para a exportação, como peles, derivados e alimentos", explicou, na época, o encarregado na Unctad do Programa de Assistência ao Povo Palestino, Mahmoud Elkhafif.

"O que é uma realidade é que nos últimos sete anos Israel reforçou as medidas restritivas, inclusive com severas limitações de movimento", lembrou Elkhafif. Ele disse ainda que imposição dessas medidas "não só provocou um grave isolamento de Gaza e Cisjordânia mas também intensificou o sofrimento de sua população".

Segundo o relatório da Unctad sobre a assistência ao povo palestino, em 2006 o gasto público ficou em US$ 655 milhões, o que representou uma redução de 30% em relação ao ano anterior. No entanto, o déficit fiscal passou de US$ 761 milhões em 2005 a US$ 791 milhões, ou 19% do PIB, e parte dessa dívida foi coberta com US$ 137 milhões entregues por doadores. "O fluxo irregular da ajuda impediu a Autoridade Nacional Palestina de pagar a maior parte dos salários dos funcionários públicos desde abril do ano passado, e, quando o fez, foi parcial ou esporadicamente", afirma o relatório.

O índice de desemprego na Faixa de Gaza alcançou 45,3% entre julho e dezembro de 2007, um patamar inédito, segundo um relatório da agência da ONU para os refugiados palestinos (UNRWA, em inglês). O percentual de desemprego entre os refugiados da faixa, dois terços do 1,5 milhão de habitantes, foi de 46,1%. Na Cisjordânia, o desemprego se manteve durante 2007 em 24,5%, em torno do dobro da região Mena (Oriente Médio e Norte da África), e dois pontos superior no caso dos refugiados.

No conjunto dos territórios palestinos, a taxa de desemprego (29,5%) seguiu sendo no ano passado "uma das mais altas do mundo", indica o documento. Quanto à pobreza nos lares, as restrições de acesso e entrada de bens a Gaza após a tomada da Faixa pelo Hamas, em junho de 2007, elevaram o índice anual a 51,8%.

Ou seja, Israel jamais teve interesse em fortalecer a Autoridade Palestina, como quer fazer crer Ali Karnel quando diz que os palestinos tinham alternativa ao Hamas nas eleições de 2006. Ora, diante do domínio israelense e da autonomia “para inglês ver”, diante do desespero, da ausência de perspectivas, os palestinos não tinham alternativa alguma a não ser lançar pedras contra tanques e rojões contra Israel.

Guerra psicológica

Em Gaza, água e luz são racionados, assim como comida, remédios e bens de consumo. Pessoas vivem amontoadas em pequenas casas espalhadas por ruelas sem perspectiva de se desenvolverem de forma adequada. Não há emprego, não há esperança. Em meio a isso, os palestinos vivem sob a vigilância israelense, sem direito de ir e vir, sem dignidade. Completando o quadro, as forças israelenses podem, de uma hora para outra, invadir suas casas, prender seus pais e filhos, matar com impunidade. É sob este horror que vivem os palestinos.

Do milhão e meio de pessoas que estão aprosionadas sob bombardeio em Gaza, cerca de 50% é composta por crianças de menos de 15 anos de idade. Os palestinos, em especial os palestinos de Gaza, são regularmente submetidos a um dos maiores horrores imagináveis: "pais e mães enterrando crianças trucidadas por massacres militares", com já disse Idelber Avelar. Tudo isso gera problemas gravíssimos de ordem mental e psicológica. O resultado é uma geração que vê nos israelenses inimigos a serem combatidos. É deste povo que se exige uma conduta democrática?

Sem direitos civis

Excluídos nos territórios ocupados, os palestinos não têm melhor sorte em Israel. Em 2003 o Knesset – parlamento israelense - aprovou uma medida abertamente discriminatória, proibindo palestinos de conseguirem cidadania ou residência no país ao casarem-se com judeus.

Na semana passada, a Comissão Central Eleitoral israelense proibiu três partidos árabes (compostos por israelenses de origem árabe) de apresentarem suas listas para as eleições gerais de 10 de fevereiro. A acusação é que eles não reconhecem Israel como Estado Judeu. Foram desqualificados para o pleito o Pacto Democrático Árabe (PDA), os partidos Ra'am e Ta'al. Ora, se são árabes e cidadãos israelenses, como podem considerar Israel um Estado Judeu?

As três legendas foram acusadas pelo partido ultranacionalista Israel Beiteinu, do ex-ministro Avigdor Liberman, que recorreu contra sua participação eleitoral. Também se juntou ao recurso o partido ultranacionalista União Nacional e o deputado do partido Shinui (Mudança), Itai Forman.

O deputado Ahmed Tibi, da coalizão Ra'am-Ta'al, disse estar acostumado "a este tipo de luta", e acusou Israel de ser "um Estado racista". Para Tibi, a decisão prova que os partidos judeus querem "um Parlamento sem árabes". Em Israel vivem 1,2 milhão de árabes israelenses, nome que receberam os palestinos que vivem dentro das fronteiras do Estado judeu.

Segundo organizações de defesa dos direitos humanos, os judeus árabes sofrem diferentes tipos de discriminação, assim como os sefarditas, que chegaram a Israel procedentes em sua maior parte do norte da África. Além de ser prejudicados na distribuição dos orçamentos estatais, os árabes-israelenses representam uma ínfima parte nos postos da Administração pública e nos altos cargos do setor empresarial.

A grande maioria dos deputados desta comunidade conquista a cadeira em representação de partidos árabes como os desqualificados hoje, mas são poucos os que a vencem pelos chamados "partidos sionistas", de maioria judaica.

É esta a democracia que defendem Reinaldo Azevedo e Ali Karnel?

1 comentário:

cisc o z appa disse...

o despropósito do tão propositado ali kamel:

todos somos sabedores
dos interesses pequenos
que este ali kamel
defende
com unhas e metais
basta lembrar do caso
referente aos livros didáticos

quanto aos crimes cometidos pelo estado belicoso de israel
eu apoio a proposta da naomi klein:
boicote
desinvestimento e
sanções contra o estado de israel

um grande abraço
meu caro