Semana On

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Historiador de origem judaica faz crítica ao movimento sionista

O historiador americano de origem judaica Norman Finkelstein faz uma crítica contundente à estratégia e aos argumentos do sionismo e também ataca fortemente a política israelense atual no livro "Imagem e Realidade no Conflito Israel-Palestina".

No trecho que pode ser lido abaixo, do primeiro capítulo do livro, há uma definição do empreendimento sionista e de três tendências - sionismo político, sionismo trabalhista e sionismo cultural - que estavam comprometidas com a exigência de um Estado de maioria judaica.

Orientações Sionistas - Teoria e prática do nacionalismo judaico

Gorny começa identificando o "consenso ideológico" do qual brotou a maior parte do pensamento sionista, se não mesmo toda a sua gama. Um dos elementos deste consenso, frisa ele ao longo de seu estudo, estava no centro da crença sionista e se revelou o principal obstáculo para qualquer reconciliação com os árabes - a saber, que a

Palestina deveria um dia abrigar uma maioria judaica. No interior do consenso ideológico sionista coexistiam três tendências relativamente distintas - o sionismo político, o sionismo trabalhista e o sionismo cultural. Todos estavam comprometidos com a exigência de uma maioria judaica, mas não exatamente pelas mesmas razões.

A pedra de toque do ideal liberal da França revolucionária estava na convicção de que era possível e desejável construir uma ordem social racional e justa com base em valores políticos compartilhados, vale dizer, democráticos. Deste modo, o Estado-nação foi concebido acima de tudo como uma forma consensual de relacionamento, sendo o cidadão sua unidade irredutível e seu alicerce. Originando-se numa reação do período pós-revolucionário francês ao racionalismo e ao liberalismo do Iluminismo, ponto de partida do sionismo político era a suposta falência do ideal democrático.

Os nacionalistas românticos sustentavam que vínculos mais profundos da mesma forma "natural" uniam certos indivíduos e excluíam outros. Idealmente, concluíam, cada uma dessas comunidades organicamente constituídas deveria dotar-se de um Estado independente. Tendo identificado o pensamento de Theodor Herzl, o fundador do moderno sionismo, nessas "fontes alemãs", Hans Kohn, provavelmente a mais eminente autoridade em nacionalismo moderno (ele próprio um sionista a certa altura), observa:

"Segundo a teoria alemã, as pessoas de ascendência comum (...) deviam formar um Estado comum. O pangermanismo baseava-se na idéia de que todas as pessoas de raça, sangue e ascendência alemães, onde quer que vivessem e qualquer que fosse o Estado a que pertencessem, deviam lealdade primeiro que tudo à Alemanha e deveriam tornar-se cidadãos do Estado alemão, sua verdadeira pátria. Eles e mesmo seus pais e antepassados podiam ter crescido debaixo de céus "estrangeiros" ou em ambientes "alienígenas", mas sua "realidade" interior fundamental continuava sendo alemã."

Pressupostos análogos imbuíam a característica abordagem sionista da questão judaica. Ao longo da diáspora, sustentavam seus participantes, os judeus constituíam uma presença "alienígena" em Estados "pertencentes" a outras nacionalidades, numericamente preponderantes. O anti-semitismo era o impulso natural de um todo orgânico "infectado" por um organismo "estrangeiro" (ou por um corpo "estrangeiro" por demais presente).

Com efeito, a análise sionista da questão judaica replicava o raciocínio do anti-semitismo, que invocava o mesmo argumento para justificar o ódio aos judeus. Na realidade, a receita que propunha para o problema judaico também estava inscrita na lógica do anti-semitismo. O sionismo político não pretendia combater o anti-semitismo - que na melhor das hipóteses era encarado como um empreendimento quixotesco -, mas chegar a um modus vivendi com ele. Propunha que a nação judaica resolvesse a questão judaica se (re)estabelecendo num Estado que a ela "pertencesse".

Para isso, os judeus teriam de se constituir em algum lugar como a maioria - pois não decorria a situação de ausência de Estado dos judeus precisamente do fato de que, onde quer que se encontrassem na diáspora, formavam uma minoria numérica? A condição de maioria, conseqüentemente, ratificaria o direito constitucional dos judeus a um Estado. Assim é que o dirigente revisionista Vladimir Jabotinsky, bem-situado no contexto do consenso ideológico sionista (p. 165; todas as páginas mencionadas são do livro de Gorny), declarou que "a criação de uma maioria judaica (...) era o objetivo fundamental do sionismo", já que "a expressão 'Estado judaico' (...) significa maioria judaica", e a Palestina "haverá de tornar-se um país judeu no momento em que tiver uma maioria judaica" (p. 169, 170-1, 233).

Para o sionismo trabalhista, a questão judaica não era apenas a ausência de um Estado, mas a estrutura de classe da nação judaica, que se havia tornado desequilibrada e deformada ao longo da longa dispersão: o Galut (exílio) havia criado um excesso de comerciantes, pequenos negociantes marginais e Luftsmenschen judeus, e um déficit de trabalhadores judeus. O sionismo tinha em parte como missão lançar as bases de um Estado sadio, reconstituindo a classe trabalhadora judaica. Como os interesses desta classe (e aqui o sionismo trabalhista evidentemente tomava de empréstimo uma página de Marx, adaptando-a para suas finalidades) exigiam um Estado judaico socialista, era esta a única verdadeira solução para o problema judaico. Deste modo, o sionismo trabalhista representava menos uma alternativa do que um complemento ao sionismo político. Em termos ideais, a luta de classes e o desenvolvimento econômico haveriam de desdobrar-se num campo purificado de elementos "alienígenas". Nas palavras de Ben-Gurion:

"O direito à existência nacional independente, à autonomia nacional, que nenhuma pessoa razoável poderia considerar conflitante com a solidariedade entre os povos, significa acima de tudo: existência nacional independente com base numa economia nacional independente (p. 137-8)."

O sionismo trabalhista imbuía a exigência de uma minoria judaica de um duplo significado: primeiro, ela ratificaria o direito dos judeus de reivindicar o Estado e, segundo, assinalaria seu direito de alterar radicalmente o equilíbrio demográfico na Palestina, abrindo caminho para a concentração territorial da nação judaica. Para citar novamente Ben-Gurion: "A maioria é apenas uma etapa em nosso caminho,embora uma etapa importante e decisiva no sentido político. A partir dela, podemos prosseguir tranqüilamente confiantes em nossas atividades e concentrar as massas de nosso povo neste país e em suas imediações" (p. 216; o itálico é nosso).

De maneira geral, a exigência de uma maioria judaica feita pelo movimento sionista escorava-se num conjunto de pressuposições que iam de encontro ao ideal liberal. Já o sionismo cultural não negava explicitamente a conveniência (ou viabilidade) de uma organização política democrática. Sua exigência de uma maioria judaica não representava tanto uma rejeição categórica do liberalismo, mas uma solução para certos limites nele supostamente contidos, especialmente no terreno da cultura.

Os sionistas culturais não queriam resolver "o problema dos judeus", mas "o problema do judaísmo" no mundo moderno. A seus olhos, a sobrevivência do judaísmo e do povo judeu era menos ameaçada pelo antisemitismo do que por uma civilização cada vez mais secularizada que os transformava num anacronismo. O verdadeiro problema não estava na fria rejeição dos gentios, e sim em seu abraço tentador. A tarefa mais urgente do sionismo, assim, era elaborar uma Weltanschauung de acordo com o mundo contemporâneo e ainda assim trazendo a inconfundível marca do resplandecente legado do povo judeu. A sobrevivência da nação judaica seria determinada pelo sucesso ou o fracasso desta empreitada.

Esta nova síntese nacional não poderia efetivar-se, entretanto, enquanto o povo judeu permanecesse dispersado na diáspora. Ela exigia um "centro espiritual" capaz de concentrar e unificar as energias da nação judaica e, em última análise, servir-lhe de força centrípeta. Para criar este centro, os judeus precisavam constituir-se como maioria numérica em algum Estado, pois as instituições culturais cruciais de qualquer sociedade estão subordinadas ao Estado, que sempre traz a marca da nação majoritária. Mesmo nos Estados mais democráticos, a vida cultural da minoria só pode ser "tolhida e confinada", na formulação do eminente teórico do sionismo cultural Ahad Ha'am (p. 102-3).

O sionismo cultural encarava portanto a maioria judaica como conditio sine qua non não de um Estado dos judeus, mas do livre renascimento espiritual da nação judaica. A Palestina, com sua maioria judaica, acabaria servindo como ponto de referência espiritual para os judeus de todo o mundo; não seria, no entanto, um Estado ao qual todos os judeus teriam de vincular-se politicamente. Ainda assim, o caráter da exigência de uma maioria judaica era definido, em termos práticos, pelos setores hegemônicos do movimento sionista. Para eles, a maioria judaica e o Estado judaico estavam indissoluvelmente vinculados: a maioria judaica eram os meios, e um Estado constitucionalmente vinculado aos judeus de todo o mundo, o fim.

A exaustiva e meticulosa análise dos registros documentais empreendida por Gorny demonstra que, não obstante toda a sua flexibilidade tática, a liderança sionista nunca recuou em seu apego à idéia de um Estado da nação judaica. O que esta liderança oferecia à população árabe da Palestina era, na melhor das hipóteses, um conjunto de salvaguardas institucionais no sentido de que seus direitos "civis" não seriam violados após o estabelecimento do Estado judaico; todavia estas garantias para a futura minoria árabe não impediam - na realidade, pressupunham - que, em princípio, o pretendido Estado pertenceria ao povo judeu.

Consideremos, por exemplo, as fórmulas de "compromisso" apresentadas pelo movimento sionista após os distúrbios árabes de 1929, quando as perspectivas do empreendimento sionista encontravam-se em seu ponto mais baixo até então. Weizmann propôs o princípio da paridade - vale dizer, igualdade total na representação administrativa dos dois povos -, mas sua intenção (nas palavras de Gorny) era "assegurar o status civil dos árabes" no interior de um Estado que seria de "propriedade" judaica (p.206). Da mesma forma, o "compromisso" então favorecido por Ben-Gurion não era um Estado binacional, mas um regime binacional, no qual (na formulação de Gorny) "o povo judeu teria direitos de propriedade sobre a Palestina e a comunidade árabe teria o direito de nela residir" (p. 212).10 Finalmente, Jabotinsky prometeu aos habitantes árabes da Palestina direitos plenos e iguais como entidade nacional, de acordo com as melhores tradições do pensamento socialista austro-húngaro, mas na questão do princípio de uma maioria judaica/Estado judaico ele não aceitava compromissos (p. 233-4).

O apego da liderança sionista ao princípio de um Estado judaico da nação judaica encontrou expressão concreta e inequívoca em sua insistência em que os judeus da diáspora desfrutassem de situação privilegiada em relação ao futuro Estado. Ben-Gurion, por exemplo, negava que a existência de um Estado judaico significasse necessariamente a dominação da minoria (árabe) (p. 306-7). A minoria poderia continuar desfrutando de plena igualdade civil e nacional, além de autonomia na educação, na cultura e na religião; com efeito, um membro da minoria poderia até mesmo ser eleito presidente ou primeiro-ministro do Estado. É verdade que a maioria judaica determinaria a "imagem" do Estado, mas isso também era (ou podia ser) um fato em todos os Estados democráticos. Todavia o que haveria de distinguir o Estado judaico, em sua opinião, seria sua orientação para todo o povo judeu: "O Estado não existirá apenas para seus habitantes (...) mas para atrair massas de judeus da diáspora, para reuni-los e enraizá-los em sua pátria."

Identificamos até aqui as correntes do sionismo que se encaixam no consenso ideológico sionista mencionado por Gorny. Ele também dedica considerável espaço aos elementos do movimento sionista que não se enquadravam no consenso ideológico mas ainda assim estavam comprometidos com alguma versão do sionismo.

De maneira geral, o que atraía esses dissidentes para o sionismo era sua dimensão cultural; politicamente, eles eram favoráveis a uma solução binacional do conflito em torno da Palestina, na qual fosse reconhecida "a total igualdade dos direitos políticos dos dois povos" (p. 119). O que nos interessa sobretudo aqui, entretanto, não são seus programas e perspectivas em si mesmos (que foram em grande número, todos eles sofrendo cruciais revisões ao longo do tempo). Pois o fato é que, embora os círculos sionistas dissidentes (exemplos: o Brit-Shalom, o Ihud) pudessem ter em suas fileiras alguns dos mais eminentes membros do movimento, entre eles o respeitado sociólogo Arthur Ruppin, primeiro presidente da Universidade Hebraica Judah Magnes, e o renomado filósofo Martin Buber, não deixavam de ser numericamente fracos e politicamente marginais. Nosso interesse se volta antes para sua crítica - às vezes implícita, com maior freqüência explicíta - das correntes centrais do sionismo. Esta crítica é digna de nota porque era ao mesmo tempo interna no movimento sionista, não podendo, assim, ser facilmente descartada, e também excepcionalmente convincente e incisiva, sob todos os aspectos. Na verdade, mostra-se tão pertinente hoje quanto no momento em que era feita.

Os dissidentes sionistas negavam que o êxito do projeto sionista - ou pelo menos tal como o definiam - dependesse do fato de os judeus se constituírem em maioria na Palestina. Eles não se opunham em princípio a que os judeus se tornassem em dado momento o elemento numericamente preponderante; o que não aceitavam era o significado atribuído à idéia de uma maioria judaica por seus adversários no movimento sionista. Os dissidentes argumentavam que por trás da exigência de uma maioria judaica se escondia a intenção de estabelecer uma alegação de direitos superiores sobre o pretendido Estado, conferindo aos judeus uma "vantagem em matéria de direitos" e presumindo a dominação e a supressão dos árabes da Palestina (p. 120, 145, 284). Hugo Bergmann, do Brit-Shalom, resumiu muito bem as pressuposições das correntes centrais do sionismo:

"A contradição entre os perfis políticos do Brit-Shalom e de seus opositores não se baseia apenas em nossa posição a respeito dos árabes. É algo muito mais fundamental e profundamente enraizado. Nossas convicções políticas decorrem das percepções do judaísmo. Queremos que a Palestina seja nossa para que as crenças morais e políticas do judaísmo deixem sua marca no modo de vida deste país, e para que aqui possamos pôr em prática a mesma fé que se manteve viva em nossos corações durante dois mil anos. E nossos oponentes têm pontos de vista diferentes. Quando falam da Palestina, de nosso país, estão se referindo ao "nosso país", e não ao "país deles". Este ponto de vista foi derivado da Europa em seu período de declínio. Baseia-se no conceito de um Estado que seja propriedade de um povo. (...) Desse modo, vários Estados europeus atuais consideram que a existência de um Estado significa que determinado povo, entre os povos que nele residem, deve desfrutar de direitos prioritários. (...) Eles justificam esta injustiça invocando o sagrado egoísmo do Estado" (p. 122-3; itálico no original).

Bergmann também criticava o conceito de "povo do país", que segundo ele "atribui direitos prioritários a um povo em detrimento de outro, como se um deles fosse o filho natural, e o outro, o enteado" (p. 123). Com efeito, o conceito contradizia o princípio democrático da cidadania.

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