No próximo sábado fará exatos quarenta anos que o Ato Institucional nº 5 (AI-5) jogou uma pá de cal sobre a liberdade de expressão e demais direitos civis no Brasil. A medida reforçou a ditadura militar iniciada com o golpe de 64, estabelecendo um recesso forçado ao Congresso Nacional e às Assembléias Legislativas estaduais, dando plenos poderes ao general Costa e Silva para cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, suspender o habeas-corpus em crimes contra a segurança nacional, legislar por decreto, julgar crimes políticos em tribunais militares, dentre outras medidas autoritárias.
Entre 1968 e 1978, período em que esteve em vigência, o AI-5 serviu como base para quase três centenas de cassações (273 mandatos parlamentares, sendo 162 estaduais e 111 federais), foi acionado 579 vezes, puniu 145 funcionários públicos, 142 militares, 102 policiais, além de 28 funcionários do Poder Judiciário e baniu 80 oposicionistas.
Para os que exerciam na época o ofício do Jornalismo, um caráter especialmente sinistro do AI-5 foi o recrudescimento da censura nas redações de jornais, rádios e tevês. Um exemplo deste aprofundamento e de como ele incidia sobre os jornalistas pode ser visto no telegrama recebido em 15 de setembro de 1972 pelo diretor da surcusal de Brasília do jornal O Estado de São Paulo que dizia:
“De ordem do senhor ministro da Justiça fica expressamente proibida a publicação de: notícias, comentários, entrevistas ou critérios de qualquer natureza, abertura política ou democratização ou assuntos correlatos, anistia a cassados ou revisão parcial de seus processos, críticas ou comentários ou editoriais desfavoráveis sobre a situação econômico-financeira, ou problema sucessório e suas implicações. As ordens acima transmitidas atingem quaisquer pessoas, inclusive as que já foram ministros de Estado ou ocuparam altas posições ou funções em quaisquer atividades públicas. Fica igualmente proibida pelo senhor ministro da Justiça a entrevista de Roberto Campos.”
Ou seja, a liberdade de expressão havia sido jogada no lixo e com ela o papel da imprensa de buscar a verdade e repassá-la ao cidadão.
Não me alongarei mais sobre o AI-5. Quero, na verdade, atestar que ainda vivemos sob o tacão da censura. Os detentores do poder político e econômico sempre usaram e continuam usando todas a ferramentas disponíveis para estabelecerem mecanismos de controle sobre a liberdade de expressão, passando - nos últimos anos - por tentativas de reeditar a censura em termos mais palatáveis, incursões sobre a Internet, exemplificadas, por exemplo, pela recente censura ao blog de Pedro Doria ou pelo imbróglio que tirou do ar o site “Conversa Afiada”, que Paulo Henrique Amorim mantinha no Portal iG.
O jornalista Carlos Castilho, em 2007, apontou um exemplo singelo desta ingerência – significativo, no entanto, do ponto de vista da análise dos métodos usados pelos poderosos no intuito de usar a informação em seu proveito – comentando um caso no Observatório da Imprensa:
“A censura é legalmente proibida no Brasil. Mas existe: há uma série de jornalistas que não podem publicar sequer o nome de uma série de pessoas. A vítima mais recente da censura, agora, é o jornalista Vitor Vieira, gente fina, competente, que edita o site VideVersus. Vitor Vieira não pode, por ordem judicial, citar o nome do deputado estadual Alceu Moreira, do PMDB, candidato à presidência da Assembléia gaúcha. Vitor Vieira também está proibido de dar entrevistas, sob pena de pesadas multas. Uma pergunta que deve mobilizar os jornalistas, antes que a situação piore: qual a diferença entre a censura determinada por um juiz e a censura determinada por um general, ou coronel? Censura é censura e não pode ser aceita – ponto.”
Voltando à contemporaneidade, podemos, ainda, citar os indícios de manipulação da mídia por parte do banqueiro Daniel Dantas, pinceladas pelo delegado Carlos Eduardo Pelegrini Magro, que apontou a existência de jornalistas na "folha de pagamento" de Dantas.
Hoje, em especial no interior do País, longe dos “jornalões” e das cabeças de rede, o que impera é a censura econômica, por meio da qual os donos do poder definem o rumo das pautas de acordo com seus interesses. A fórmula é simples: divulga-se o que é do agrado dos poderosos e omiti-se o que vai contra seus interesses. Em contrapartida, jornais, rádios e emissoras de tevê locais passam a integrar o trem da alegria dos repasses de verbas publicitárias públicas (sem licitação, diga-se de passagem) e privadas (provenientes de empresas ligadas ao poder).
A censura econômica leva ao fortalecimento de uma prática sutil que sempre existiu e continua comandando o fazer jornalístico: trata-se da censura exercida pelo patrão sobre o profissional em seu próprio ambiente de trabalho. Esta censura, representada muitas vezes por um direcionamento editorial, tem colaborado mais para o apodrecimento do Jornalismo e de sua credibilidade do que qualquer outro tipo de manipulação externa.
Diz o jornalista sergipano José Araújo: “Nos períodos ditatoriais os meios de comunicação eram censurados por força das botinas e das leis cerceadoras. Hoje se vive liberdade política quase plena, entretanto, os meios de comunicação deixam cada dia mais a desejar. Informações superficiais, informações omitidas, informações parciais (só relatam os interesses dos donos das empresas de comunicação ou de quem as financiam). O jornalismo investigativo de há muito deixou de ocupar as páginas de nossa imprensa escrita, falada e/ou televisada. Tudo feito dentro dos padrões da empresa. Ou seja, os interesses políticos (todos os meios de comunicação do estado pertencem a políticos ou a empresários comprometidos com eles)”.
A pesquisadora Beatriz Kushnir, em sua tese de doutorado - Unicamp, 2001 – intitulada “Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988”, coloca o dedo nesta ferida que, certamente, nos incomoda. Afinal, nós, jornalistas, dificilmente nos damos ao trabalho de analisar com isenção os meandros da nossa profissão. Disse ela em entrevista ao JB Online, em 2004, referindo-se a confiabilidade e ao grau de independência que se pode esperar do Jornalismo.
“Creio que hoje compreendo que a imprensa é uma empresa de cunho privado que vende um serviço de utilidade pública. Mas, como destacou Cláudio Abramo, o jornal tem um dono e nele só sai o que o patrão quer. Tendo isso em mente, passa-se a ler, de forma mais realista, o que está impresso. Sabendo sempre que, no dia seguinte, o papel do jornal vai embrulhar peixe nas feiras. Mas o que nele está impresso pode ter mudado vidas de modo radical. Algo é fundamental não se perder: quem o compra deposita neste ato um pacto de confiabilidade no que está escrito. Quebrar esse acordo gera uma ambigüidade na apreensão do real que permite um sem-número de considerações. Assim, muitos pagaram pelo papel-jornal para saberem o que se passava nos seus mundos. Outros sofreram com o que estava impresso nessas páginas”.
O jornalista e sociólogo Jayme Brenner sustenta que não há possibilidade de manter imparcialidade ou independência (e, por conseguinte, manter-se ético) no jornalismo. No artigo “Mídia, assessoria de imprensa, poder e seriedade” ele cita exemplos de sua experiência nos jornais Folha de São Paulo e Correio Braziliense, quando teve que amaciar reportagens que iam contra os interesses dos veículos e desafia: “... atire o primeiro ‘lead’ quem não deu uma forcinha para uma fonte, um político, um amigo ou uma empresa em suas matérias. A rigor, atire a primeira pedra quem jamais discutiu uma matéria com uma fonte de confiança...”.
Quem tem a mínima experiência dentro de uma redação sabe que a ética acaba no momento em que começa o interesse do patrão. Manter o público e o privado caminhando lado a lado, sem tropeços nestas searas é tarefa hercúlea.
Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp) da Universidade de Brasília, o professor Venício A. de Lima dá uma espanada na questão: “Qualquer estudante de jornalismo sabe (ou deveria saber), que imparcialidade e objetividade são princípios irrealizáveis na prática concreta da apuração e da redação de notícias, sejam elas de política ou de outra editoria. O que se busca no jornalismo sério e responsável é minimizar a contaminação da cobertura pelas preferências pessoais do(a) repórter e pelos interesses dos donos dos jornais, expressos nos editoriais e nas colunas de opinião dos respectivos veículos”.
Portanto, a questão que se coloca aos que querem debater de fato o futuro da profissão se resume em como podemos fazer frente, nós, simples mortais, às exigências do poder midiático enclausurado nas mãos do patrão mantendo, ao mesmo tempo, padrões éticos que nos permitam desenvolver um trabalho digno e enquadrado no que se define como missão do Jornalismo: a busca exaustiva da verdade, com independência e fidelidade ao leitor.
O resto é história para boi dormir.
Entre 1968 e 1978, período em que esteve em vigência, o AI-5 serviu como base para quase três centenas de cassações (273 mandatos parlamentares, sendo 162 estaduais e 111 federais), foi acionado 579 vezes, puniu 145 funcionários públicos, 142 militares, 102 policiais, além de 28 funcionários do Poder Judiciário e baniu 80 oposicionistas.
Para os que exerciam na época o ofício do Jornalismo, um caráter especialmente sinistro do AI-5 foi o recrudescimento da censura nas redações de jornais, rádios e tevês. Um exemplo deste aprofundamento e de como ele incidia sobre os jornalistas pode ser visto no telegrama recebido em 15 de setembro de 1972 pelo diretor da surcusal de Brasília do jornal O Estado de São Paulo que dizia:
“De ordem do senhor ministro da Justiça fica expressamente proibida a publicação de: notícias, comentários, entrevistas ou critérios de qualquer natureza, abertura política ou democratização ou assuntos correlatos, anistia a cassados ou revisão parcial de seus processos, críticas ou comentários ou editoriais desfavoráveis sobre a situação econômico-financeira, ou problema sucessório e suas implicações. As ordens acima transmitidas atingem quaisquer pessoas, inclusive as que já foram ministros de Estado ou ocuparam altas posições ou funções em quaisquer atividades públicas. Fica igualmente proibida pelo senhor ministro da Justiça a entrevista de Roberto Campos.”
Ou seja, a liberdade de expressão havia sido jogada no lixo e com ela o papel da imprensa de buscar a verdade e repassá-la ao cidadão.
Não me alongarei mais sobre o AI-5. Quero, na verdade, atestar que ainda vivemos sob o tacão da censura. Os detentores do poder político e econômico sempre usaram e continuam usando todas a ferramentas disponíveis para estabelecerem mecanismos de controle sobre a liberdade de expressão, passando - nos últimos anos - por tentativas de reeditar a censura em termos mais palatáveis, incursões sobre a Internet, exemplificadas, por exemplo, pela recente censura ao blog de Pedro Doria ou pelo imbróglio que tirou do ar o site “Conversa Afiada”, que Paulo Henrique Amorim mantinha no Portal iG.
O jornalista Carlos Castilho, em 2007, apontou um exemplo singelo desta ingerência – significativo, no entanto, do ponto de vista da análise dos métodos usados pelos poderosos no intuito de usar a informação em seu proveito – comentando um caso no Observatório da Imprensa:
“A censura é legalmente proibida no Brasil. Mas existe: há uma série de jornalistas que não podem publicar sequer o nome de uma série de pessoas. A vítima mais recente da censura, agora, é o jornalista Vitor Vieira, gente fina, competente, que edita o site VideVersus. Vitor Vieira não pode, por ordem judicial, citar o nome do deputado estadual Alceu Moreira, do PMDB, candidato à presidência da Assembléia gaúcha. Vitor Vieira também está proibido de dar entrevistas, sob pena de pesadas multas. Uma pergunta que deve mobilizar os jornalistas, antes que a situação piore: qual a diferença entre a censura determinada por um juiz e a censura determinada por um general, ou coronel? Censura é censura e não pode ser aceita – ponto.”
Voltando à contemporaneidade, podemos, ainda, citar os indícios de manipulação da mídia por parte do banqueiro Daniel Dantas, pinceladas pelo delegado Carlos Eduardo Pelegrini Magro, que apontou a existência de jornalistas na "folha de pagamento" de Dantas.
Hoje, em especial no interior do País, longe dos “jornalões” e das cabeças de rede, o que impera é a censura econômica, por meio da qual os donos do poder definem o rumo das pautas de acordo com seus interesses. A fórmula é simples: divulga-se o que é do agrado dos poderosos e omiti-se o que vai contra seus interesses. Em contrapartida, jornais, rádios e emissoras de tevê locais passam a integrar o trem da alegria dos repasses de verbas publicitárias públicas (sem licitação, diga-se de passagem) e privadas (provenientes de empresas ligadas ao poder).
A censura econômica leva ao fortalecimento de uma prática sutil que sempre existiu e continua comandando o fazer jornalístico: trata-se da censura exercida pelo patrão sobre o profissional em seu próprio ambiente de trabalho. Esta censura, representada muitas vezes por um direcionamento editorial, tem colaborado mais para o apodrecimento do Jornalismo e de sua credibilidade do que qualquer outro tipo de manipulação externa.
Diz o jornalista sergipano José Araújo: “Nos períodos ditatoriais os meios de comunicação eram censurados por força das botinas e das leis cerceadoras. Hoje se vive liberdade política quase plena, entretanto, os meios de comunicação deixam cada dia mais a desejar. Informações superficiais, informações omitidas, informações parciais (só relatam os interesses dos donos das empresas de comunicação ou de quem as financiam). O jornalismo investigativo de há muito deixou de ocupar as páginas de nossa imprensa escrita, falada e/ou televisada. Tudo feito dentro dos padrões da empresa. Ou seja, os interesses políticos (todos os meios de comunicação do estado pertencem a políticos ou a empresários comprometidos com eles)”.
A pesquisadora Beatriz Kushnir, em sua tese de doutorado - Unicamp, 2001 – intitulada “Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988”, coloca o dedo nesta ferida que, certamente, nos incomoda. Afinal, nós, jornalistas, dificilmente nos damos ao trabalho de analisar com isenção os meandros da nossa profissão. Disse ela em entrevista ao JB Online, em 2004, referindo-se a confiabilidade e ao grau de independência que se pode esperar do Jornalismo.
“Creio que hoje compreendo que a imprensa é uma empresa de cunho privado que vende um serviço de utilidade pública. Mas, como destacou Cláudio Abramo, o jornal tem um dono e nele só sai o que o patrão quer. Tendo isso em mente, passa-se a ler, de forma mais realista, o que está impresso. Sabendo sempre que, no dia seguinte, o papel do jornal vai embrulhar peixe nas feiras. Mas o que nele está impresso pode ter mudado vidas de modo radical. Algo é fundamental não se perder: quem o compra deposita neste ato um pacto de confiabilidade no que está escrito. Quebrar esse acordo gera uma ambigüidade na apreensão do real que permite um sem-número de considerações. Assim, muitos pagaram pelo papel-jornal para saberem o que se passava nos seus mundos. Outros sofreram com o que estava impresso nessas páginas”.
O jornalista e sociólogo Jayme Brenner sustenta que não há possibilidade de manter imparcialidade ou independência (e, por conseguinte, manter-se ético) no jornalismo. No artigo “Mídia, assessoria de imprensa, poder e seriedade” ele cita exemplos de sua experiência nos jornais Folha de São Paulo e Correio Braziliense, quando teve que amaciar reportagens que iam contra os interesses dos veículos e desafia: “... atire o primeiro ‘lead’ quem não deu uma forcinha para uma fonte, um político, um amigo ou uma empresa em suas matérias. A rigor, atire a primeira pedra quem jamais discutiu uma matéria com uma fonte de confiança...”.
Quem tem a mínima experiência dentro de uma redação sabe que a ética acaba no momento em que começa o interesse do patrão. Manter o público e o privado caminhando lado a lado, sem tropeços nestas searas é tarefa hercúlea.
Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp) da Universidade de Brasília, o professor Venício A. de Lima dá uma espanada na questão: “Qualquer estudante de jornalismo sabe (ou deveria saber), que imparcialidade e objetividade são princípios irrealizáveis na prática concreta da apuração e da redação de notícias, sejam elas de política ou de outra editoria. O que se busca no jornalismo sério e responsável é minimizar a contaminação da cobertura pelas preferências pessoais do(a) repórter e pelos interesses dos donos dos jornais, expressos nos editoriais e nas colunas de opinião dos respectivos veículos”.
Portanto, a questão que se coloca aos que querem debater de fato o futuro da profissão se resume em como podemos fazer frente, nós, simples mortais, às exigências do poder midiático enclausurado nas mãos do patrão mantendo, ao mesmo tempo, padrões éticos que nos permitam desenvolver um trabalho digno e enquadrado no que se define como missão do Jornalismo: a busca exaustiva da verdade, com independência e fidelidade ao leitor.
O resto é história para boi dormir.
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