É como se houvesse uma obrigação moral em colocar o ser humano como a
coisa mais importante sobre a face da terra. Por si só este pensamento é problemático,
visto que, se tivéssemos que optar, por exemplo, pela natureza ou pelo ser
humano a escolha óbvia seria pela natureza. Afinal, o homem não sobrevive sem
os recursos da natureza, embora a natureza não precise do homem para prosperar.
Mas, a questão não é essa. Longe disso. A questão é: somos obrigados a
nos manifestarmos pelo ser humano toda vez que nos manifestarmos pelos
animais? A resposta é um sonoro não. Não
há obrigação ética ou moral nesta escolha. De fato, esta escolha não existe,
pois uma coisa não exclui a outra.
Para que defender os direitos dos negros se há tantos índios sofrendo? Por
que se manifestar pelos dissidentes cubanos se há tantos pobres no Brasil? Pra
que diabos falar dos palestinos se as baleias estão sendo dizimadas pelos
japoneses? Ora, amigos, estas perguntas não fazem o menor sentido, assim como
não faz sentido condenar os defensores de animais diante do sofrimento humano.
Falácia do Falso Dilema
Sem querer filosofar, esta tendência
de colocar a preocupação para com os animais e a preocupação para com os seres
humanos em uma balança é uma grande armadilha. Trata-se do que, na filosofia,
chama-se de “falácia do falso dilema”. Ele surge quando, no discurso falado ou
escrito, alguém insiste ou insinua que duas opções são mutuamente excludentes.
Trata-se de um recurso muito utilizado no jogo político, quando se tenta
cooptar a população a fazer uma escolha entre A ou B, ainda que A e B não sejam
as únicas opções reais. Na verdade uma coisa não exclui a outra. O fato de
alguém compartilhar mensagens de defesa aos animais não significa que esta
pessoa não se importe com os seres humanos e vice-versa.
Em seu artigo “O
cão, o garoto gay, o político corrupto”, Alexey Dodsworth – de quem
sorrateiramente furtarei alguns pensamentos adiante – explica com maestria esta
questão.
A estrutura do falso dilema, explica Dodsworth, é simples: Ou A ou B. Se não A, logo B. O senso comum aceita esta estrutura com bastante facilidade, embora ela seja totalmente falsa.
A estrutura do falso dilema, explica Dodsworth, é simples: Ou A ou B. Se não A, logo B. O senso comum aceita esta estrutura com bastante facilidade, embora ela seja totalmente falsa.
Vamos a alguns exemplos reais muito simples:
“Os paulistas são palmeirenses ou corintianos. João não é palmeirense.
Logo, João é corintiano”. Errado, pois existem paulistas santistas,
flamenguistas, paulistas que não gostam de futebol e não torcem para time algum
etc.
“Ou mantemos armar nucleares, ou seremos atacados”. Errado, não ter
armas nucleares não implica necessariamente em ser atacado.
“Se defendemos os animais, não nos importamos com os seres humanos”.
Errado, defender os animais não significa não se importar com nossos
semelhantes.
É quase uma lei da natureza: sempre que alguém fala da importância de
cuidar dos animais ou milita em prol dos direitos animais, surge alguém
questionando por que as crianças de rua não são importantes, ou por que os
militantes de direitos animais não se importam com racismo, homofobia,
misoginia, ou (insira aqui a causa de sua preferência).
Ou direitos animais ou direitos humanos. Alessandra escolheu direitos
animais, logo não escolheu os direitos humanos. Totalmente falso. O fato de uma
pessoa se mobilizar para lutar pela causa dos animais não significa que ela não
se importe com os direitos humanos (e vice-versa). Qualquer tentativa de
insistir nisso é maldosa e não tem lógica nenhuma.
O caso do bebê
que morreu de calor ao ser trancado pela mãe dentro do carro causou a
indignação legítima de milhares de pessoas, e do meu amigo fotógrafo. Mas
levou-o a cair na armadilha da falácia do falso dilema. Ele reclama que não
houve a mesma comoção em relação a este caso como em outros casos envolvendo maus
tratos aos animais.
Aqui, é preciso ter alguns cuidados: 1. Será que não houve a mesma
comoção? Como quantificar isto? 2. Ainda que não tenha ocorrido a mesma
comoção, isso não invalida (ou não deveria invalidar) a indignação contra os
maus tratos aos animais.
Em essência, a indignação equivocada de meu amigo poderia ser resumida
da seguinte forma:
“Ao invés de se indignar contra os maus tratos aos animais, vocês
deveriam se indignar contra a morte do bebê.”
ou
“Ao invés de se indignar com os maus tratos aos animais, vocês deveriam
se indignar com o fato de que crianças estão nas ruas, morrendo de fome ou
fazendo trabalho escravo.”
Resumindo: não é verdade que quem se importa com animais abandonados não
liga para injustiças sociais. Insinuações em contrário, ainda que engraçadas e
aparentemente cabíveis, são maldosas e isentas de lógica. O que acontece é
bastante simples de entender: as pessoas, por motivações diversas, são
mobilizadas com mais intensidade por algumas coisas.
Há quem sinta especial mobilização pelos direitos dos animais. Há quem
sinta especial mobilização pela causa gay. Há quem sinta especial mobilização
para lutar contra o machismo, o racismo etc. Uma coisa não exclui a outra, e
não são os outros que devem determinar (sobretudo a partir de argumentos
coercitivos e falsos) as causas pelas quais nos importamos.
1 comentário:
Há muitos que nada fazem por ninguém, além do lamento catártico antes de abrir a próxima lata de cerveja.
Acho que se expor e fazer algo pelos animais que não sabem se expressar em linguagem humana já é alguma coisa, coisa boa e útil.
Sua argumentação, VB, foi bem convincente, amar os animais não signifca detestar os humanos, se bem que essa possibilidade nem sempre deva ser descartada, dependendo da situação...
Valeu!
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