“Se você acredita que algo é verdadeiramente importante, você tem a obrigação de lutar por isso.”
Pág. 205 (Tradução livre do original em inglês)
Joshua Lawrence Chamberlain
Entre 1861 e 1865 os Estados Unidos protagonizaram um conflito que colocou em trincheiras opostas amigos, irmãos, pais e filhos. A Guerra Civil Americana tirou a vida de 970 mil pessoas - dos quais 618 mil eram soldados - cerca de 3% da população americana à época. Os motivos que levaram à guerra são controversos e alvos de debate até os dias de hoje. Há quem defenda que os 11 Estados Confederados do Sul sublevaram-se após a eleição de Abraham Lincoln para manter o regime escravocrata que sustentava o plantio de algodão (grande propulsor da economia local à época). Há, também, quem diga que a escravidão não foi o motivo central do conflito, mas sim o direito de cada estado em auto-determinar sua legislação. Fato é que o Sul latifundiário e aristocrata levantou-se contra os estados industrializados do Norte, cujo desenvolvimento estava ligado à necessidade de crescimento do mercado interno e do estabelecimento de barreiras protecionistas. O crescimento Sulista, por sua vez, era baseado precisamente no oposto, ou seja: o liberalismo econômico que abria todo o Mundo as agro-exportações, com mão-de-obra escrava como base da produção.
Ao longo das primeiras décadas do século XIX, a imigração em massa e a intensa industrialização fizeram com que o poderio dos estados do Norte crescesse economicamente e ampliasse politicamente sua participação no governo. Grandes tensões políticas e sociais desenvolveram-se entre o Norte e o Sul. Em 1860, Lincoln, um republicano contra a escravidão, venceu as eleições presidenciais, assumindo a liderança de um país dividido. Em 1861, ano do início da guerra, o país consistia em 19 estados livres, onde a escravidão era proibida, e 15 estados onde a escravidão era permitida. Em 4 de março, antes que Lincoln assumisse a presidência, 11 Estados escravagistas declararam secessão da União e criaram um novo país, os Estados Confederados da América. A guerra começou quando forças confederadas atacaram o Fort Summer, um posto militar da União, encravado na Carolina do Sul, em 12 de abril de 1861, e terminaria somente em 28 de junho de 1865, com a rendição das últimas tropas remanescentes da Confederação.
Esta saga fenomenal, o mais épico confronto bélico ocorrido nas Américas, foi narrada com maestria em três romances de autoria de Michael Shaara e seu filho, Jeff Shaara. Em 1974, Michael publicou “The Killer Angels”, uma novela sobre os homens que lideraram a Batalha de Gettysburg (a mais sangrenta batalha da Guerra Civil). Não foi uma tentativa de documentar a história do evento, nem uma biografia dos personagens que dele participaram. Ambos já haviam sido feitos muitas vezes, anteriormente, por outros autores. O que Michael Shaara fez foi contar a história da batalha a partir da história dos homens, por meio de seus pontos de vista, seus pensamentos e sentimentos. Foi uma abordagem muito diferente, que lhe rendeu o Prêmio Pulitzer de 1975. “The Killer Angels” é, primordialmente, a história de quatro homens: Robert E. Lee, Thomas “Stonewall” Jackson, Winfield Scott Hancoock e Joshua Lawrence Chamberlain. Mas, é também a história de outras pessoas, suas esposas e familiares, dos homens que com eles serviram no campo de batalha.
“Gods andGenerals” (Deuses e Generais), o livro que aqui resenhamos, narra os acontecimentos anteriores a Batalha de Gettysburg. A obra, de autoria de Jeff Shaara, dá continuidade à saga iniciada por seu pai (que faleceu em 1988) com “The Killer Angels”. A história por detrás do surgimento da obra é, por si só, digna de nota. Jeff Shaara, um criminologista graduado pela Universidade Estadual da Flórida, geria um negócio de moedas raras em Tampa (Flórida) quando... “O pessoal de Ted Turner me procurou (Ted Turner foi o produtor executivo da adaptação de “The Killer Angels” para o cinema – “Gettiysburg”). Ele queria filmar uma introdução e uma seqüência de Gettysburg”, diz Jeff. Resumindo a ópera: Ted sugeriu que Jeff assumisse a tarefa de escrever duas histórias que complementassem a obra de seu pai. Ele topou e, posteriormente, representando seu pai em uma reunião com a editora Random House, mencionou estar escrevendo uma introdução e uma seqüência de “The Killer Angels”. Os executivos da editora pediram para ver os manuscritos. Então, em 1995, Jeff recebeu uma ligação de Nova Iorque. “Era o pessoal da editora. Eles disseram que não queriam saber se aquilo era para um filme ou não, mas queriam o livro. Ofereceram um contrato. Aquilo mudou minha vida”. A introdução transformou-se em “God and Generals” (lançado em 1996, e também adaptado ao cinema alguns anos depois) e a seqüência foi “The Last Full Measure” (lançado em 1998).
A obra tem início nos primeiros meses de 1861, durante a campanha presidencial. Robert Lee, cuja vida serve como fio condutor da obra, é um veterano da guerra contra o México, um aristocrata e cavalheiro do estado da Virginia, casado com uma mulher cuja família remonta a George Washington. Graduado em West Point em 1829, o segundo em sua classe com o inigualável recorde de nunca ter recebido um demérito por sua conduta nos quatro anos como cadete, ele volta a sua terra natal após longos anos de serviço junto ao Exército dos Estados Unidos para uma licença de dois anos para administrar a propriedade da família. Mal sabia que se veria enredado no maior conflito armado já ocorrido nas Américas.
Nas primeiras páginas Shaara constrói uma imagem de Lee na qual o velho coronel encara a escravidão como um desígnio de Deus a ser superado quando da vontade divina. Lee, que já possuía alguns escravos, tomou posse de 196 negros ao retornar para a fazenda de sua família. O testamento de seu sogro, recém falecido, estipulava que os escravos deveriam ser emancipados tão logo quanto possível, mas Lee optou por retê-los por cinco anos, o máximo tempo que lhe era permitido por lei. A imagem de Lee construída por Shaara contrasta com outra, menos condescendente, que o retrata como um senhor de escravos cruel. Para compreender o modo como pensavam os aristocratas sulistas na época é preciso emergir na realidade do século XIX. Alguns, como Lee, adotavam uma atitude paternalista para com os Negros. Eram seres humanos, sim, mas em uma fase de desenvolvimento inferior a do homem branco. Outros, no entanto, nivelavam o Negro aos animais de carga. Ambas as noções eram fundamentadas com base na religião. Não se pode dizer, no entanto, que a relação entre brancos e negros fosse radicalmente diferente no Norte. A grande diferença estava no fato de que os estados do norte haviam incorporado a mão de obra negra às suas industrias, tornando a participação dos ex-escravos na sociedade – inclusive em patamares sociais que ultrapassavam a base da pirâmide - um fato irreversível. O preconceito, no entanto, existia em todo o país, em níveis diferenciados.
“Coronel, a razão pela qual eu voltei aqui... Eu levantei algum dinheiro. Eles me pagam bem. Nunca fui... bom em gastar muito dinheiro... eu apenas juntei este valor. Então, eu voltei aqui para lhe perguntar sobre meu irmão, Bo. Fiquei imaginando, senhor, se concordaria em me vender ele.”
Lee escutava a profunda voz do homem, reparando em suas roupas, um terno rude mas bem feito. Ele olhou para aquela face escura, marcada, sua voz sumindo dentro dele, uma sensação de mal estar.
“Você quer... comprar seu irmão?”
“Sim senhor, ele não serve para muita coisa. É aleijado desde muito cedo, não tem muita serventia para o senhor aqui”.
Lee compreendeu então quem era Bo, o homem sem um pé, um grave acidente na fazenda, muito tempo atrás. Ele se apoiava com uma bengala, fazia trabalhos que não requeriam muita mobilidade.
“Nate, as pessoas que ainda estão aqui não estão à venda. Eu ficaria satisfeito, muito satisfeito de deixar que qualquer um deles partisse, os que quisessem partir. O problema é que a maioria deles não tem para onde ir. É... fácil para você achar um emprego, você é... bem qualificado. Homens como Bo e mulheres como Rebecca, eles não têm muita esperança de achar trabalho.”
“Mas senhor. Bo não precisará trabalhar. Eu posso cuidar dele agora. Eu já conversei sobre isso com o senhor Van Dyke, ele disse que tudo bem.”
Lee sentou-se, alcançou um pedaço de papel, pegou a caneta e começou a escrever, então parou, olhou-o por um momento e perguntou. “Nate, perdoe-me. Não me recordo do seu sobrenome.”
O homem sorriu, um sorriso repleto de dentes. “Eles me deram um nome. Quando me viu pela primeira vez o senhor Van Dyke disse que eu era preto como carvão (n.t. Coal), então ele me chamou de Nate Cole. Eu até ouvi algumas pessoas me chamando de sinhô Cole.”
“Bem, senhor Cole, acho então que seu irmão deve ter o mesmo sobrenome... aqui.” Lee preencheu o documento, assinou-o com uma forte canetada. “Aqui estão os papéis. Ele é um homem livre.”
Págs. 73 e 74 (Tradução livre do original em inglês)
Lee refletiu, passou a mão em seus cabelos e disse, “Eu acredito... que os Negros são o que Deus quer que eles sejam, e quando Deus quiser que os Negros sejam livres, então ele os libertará. Deus o libertou, através das minhas mãos. Ele libertou seu irmão através de suas mãos. A hora chegará.”
“Coronel, o senhor é um bom homem, um homem decente, e eu agradeço pelo que o senhor fez por mim e por Bo. Mas perdoe-me Coronel, não quero desrespeitá-lo. Aqui está o seu nome, neste papel, não o de Deus. Se nós esperarmos que Deus nos liberte, esperaremos por muito tempo.”
Pág. 75 (Tradução livre do original em inglês)
Com a eleição de Lincoln, a tensão política alastrou-se e o presidente decretou a convocação de recrutas em todo o país, inclusive nos estados sulistas, para fazer frente a possíveis enfrentamentos. A convocação dividiu o exército. A quase totalidade dos oficiais e soldados provenientes dos estados sulistas se recusou a levantar armas contra seus estados de origem e muitos voltaram para suas casas, sabendo que um confronto seria iminente. À Lee foi oferecido o comando geral dos exércitos do Norte, mas ele declinou, deixando claro que jamais poderia levantar a mão contra seus parentes e vizinhos. Pouco depois, seu estado, a Virgínia, votou a favor da secessão, unindo-se à Confederação e Lee foi empossado como Comandante do Exército da Virgínia como general. A partir daí, sua carreira ascende até o comando geral das forças rebeldes cuja atuação transformou-o em um ícone das forças armadas norte-americanas e em um dos mais admirados militares de todos os tempos.
“Estou embaraçado em lhe dizer que estou entre os que nunca acreditaram que este país estaria nesta situação. Sempre tive a sensação de que éramos uma nação muito diferente... única, talvez. Fomos fundados por pensadores, homens brilhantes que construíram um sistema onde os conflitos seriam resolvidos pelo debate, onde as decisões da maioria prevaleceriam. Estes homens tinham confiança nesta maioria , eles tinham fé em que o sistema poderia, por definição, assegurar que homens razoáveis chegariam a conclusões razoáveis, e então governaríamos a nós mesmos, todos nós, a partir deste novo sistema, um sistema onde nossos conflitos e diferenças pudessem ser resolvidos por meios civilizados. Não há um sistema como esse, em parte alguma. E se a guerra for perdida... se a rebelião for bem sucedida, é possível que nunca surja outro.”
Chamberlain - Pág. 204 (Tradução livre do original em inglês)
Assim como o ardor nacionalista dominava os soldados sulistas, no Norte milhares de voluntários se apresentavam para manter intacta a União. Um deles, um professor com nenhuma experiência militar, se tornaria um dos maiores heróis da guerra: Joshua Lawrence Chamberlain. “Gods and Generals” também destaca a atuação de Winfield Scott Hancock, general da União cuja amizade com o general confederado Lewis Armistead é um dos momentos mais marcantes da história da Guerra Civil Americana. Outro protagonista da obra é o general Thomas Jonathan “Stonewall” Jackson, o grande herói da Confederação, oficial que inspirava os soldados do sul devido a sua inabalável fé e coragem no campo de batalha. Jackson é um dos maiores nomes da história militar norte-americana e a forma como é retratado em “Gods and Generals” é fascinante.
A religiosidade e a moralidade dos homens do século XIX são retratadas na obra de forma convincente. Muitos dos homens e mulheres retratados no livro possuem a convicção de estarem cumprindo a vontade de Deus ao cumprirem suas obrigações seculares, seja como esposas e maridos ou como soldados. Alguns, como Stonewall Jackson, têm sua relação com o divino trabalhada de forma magistral no livro. A história de vida de Jackson é forte. Ao perder a primeira esposa e o filho, mortos durante o parto, o general confederado passa a temer a felicidade, como se ela pudesse ofender a Deus e o fizesse tirar dele as pessoas a quem ele mais amava. A morte da pequena Jane, uma criança a quem Jackson se afeiçoara durante a estadia do exército nas proximidades de uma fazenda, contribui para esta sensação. Jackson é o protótipo do crente, presbiteriano, sua vida é entregue a Deus e a seus desígnios, o que não o impede de ser um dos mais temidos e implacáveis generais de sua época.
“Como é fácil esquecer... tudo o que temos feito... todos os horrores que temos visto... simplesmente olhando o rosto de uma criancinha. Há Providência aqui... nisso. As crianças são abençoadas.”
Jackson - Pág. 381 (Tradução livre do original em inglês)
Longstreet mascou seu charuto e disse. “Não estou certo se Deus está em todos os lugares em que gostaríamos que ele estivesse.”
Pág. 318 (Tradução livre do original em inglês)
Uma característica da Guerra Civil Americana - pelo menos em seus primeiros momentos - é que esta foi uma guerra travada por idealismo. Nos dois primeiros anos do conflito ambos os exércitos eram formados esmagadoramente por voluntários – embora seu número diminui-se com o passar dos anos – gente que lutava por um modo de vida que queriam preservar. Em especial o exército Confederado, um corpo armado composto por gente que considerava estar lutando por sua liberdade, pelo seu modo de enxergar o mundo. Era um exército homogêneo, formado por americanos brancos e protestantes, que combatia em busca da secessão do país. O exército da União, por sua vez, era heterogêneo, composto por imigrantes das mais variadas nacionalidades – irlandeses, holandeses, escoceses etc (muitos sequer falavam inglês fluentemente), gente que havia escolhido os Estados Unidos como seu lar. Este exército tão diferente, tão mesclado de raças e idiomas, lutava pela união do país. Estes milhares de homens lutaram por quatro anos defendendo o modo pelo qual consideravam correto ser governados. Trata-se de um feito político de magnitude sem precedentes nas Américas.
O Horror
A Guerra Civil Americana é considerada a fronteira entre o passado e o futuro das guerras. Até então, as tropas defrontavam-se caminhando diretamente sobre o inimigo, disparando salvas de mosquetes cuja precisão era péssima e o alcance limitado. Os soldados na era napoleônica agiam como grupos coesos para otimizar o uso das armas de fogo e a cavalaria tinha, ainda, papel crucial no campo de batalha. Com o desenvolvimento dos rifles, cuja precisão e alcance eram muito superiores aos dos mosquetes, e de artilharia de campo, mais poderosa e precisa, a mortandade no campo de batalha tornou-se terrível. Isso modificou totalmente a forma pela qual os exércitos se defrontavam. No entanto, estas mudanças se deram paulatinamente, de acordo com as experiências adquiridas em combate. Por isso, a Guerra Civil Americana é tida como um prelúdio à 1ª Guerra Mundial no que se refere aos horrores do campo de batalha. Centenas de milhares perderam a vida, outras centenas de milhares tornaram-se inválidos diante desta nova realidade apresentada pela ciência da morte. Apenas em Gettysburg, as baixas de ambos os lados somaram mais de 50 mil homens em apenas três dias de combate.
Taylor estava ao seu lado e Lee, olhando para o jovem, disse, “lembre-se disso, Major. Não há muitos dias como esse... quando você varre seu inimigo do campo de batalha e pode vê-lo correndo. Não há necessidade de relatórios oficiais, ou jornais, ou fofocas... você não precisa que ninguém lhe diga o que aconteceu.”
Pág. 235 (Tradução livre do original em inglês)
Lee, sobre a segunda batalha de Manassas
Longstreet aproximou-se ao seu lado e Lee continuava olhando para baixo, seus olhos fechados, e Longstreet tentou pensar em algo, disse, “É uma guerra real. Isso é o que a guerra pode fazer.”
Lee não olhou para ele, disse, “Não, General. Isso não é trabalho de soldados. Os homens estão certos... É o demônio em pessoa. Isso é o estupro da inocência.” Ele levantou a cabeça, olhou a volta novamente, e Longstreet viu lágrimas, olhos marejados e vermelhos.
Pág. 358 (Tradução livre do original em inglês)
“Impressionante, não é Coronel? Vê-los formarem linhas e caminharem direto sobre o fogo inimigo.”
Pág. 261 (Tradução livre do original em inglês)
Sargento Kilrain, conversando com o Coronel Chamberlain
“O que eu acho? O que isso importa, General? Você tem apenas um dever, apenas uma opinião a lhe guiar, àquela de seu comandante. Nós, civis, temos pouca influência sobre suas ações ou seus pensamentos. Meus leitores estão interessados em ouvir um ponto de vista que não venha dos quartéis generais, que não seja censurado pela lógica de um oficial. Guerra é um mal necessário e portanto qualquer tragédia, qualquer estupidez é apenas uma pequena parte desta grande maldição, que é claro todos vocês deploram. A população tem ouvido tudo isso, General. O que eles ainda não ouviram é alguma honestidade, a visão sem censura de alguém de fora de sua pequena e sangrenta fraternidade.”
Pág. 363 (Tradução livre do original em inglês)
O jornalista Cyrus Bolander, do Cincinnati Commercial, conversando com o General Winfield Hancock após a batalha de Fredericksburg.
O trecho a seguir é o relato do Coronel Joshua Lawrence Chamberlain que comandou seus homens na Batalha de Fredericksburg. Trata-se de uma mostra horripilante do que deve ter sido um combate durante o conflito.
13 de dezembro de 1862. Fim da tarde.
As reservas de Hooker finalmente cruzaram o rio, marchando, trêmulas, sobre os pontões desequilibrados, através da cidade destruída e queimada, formando suas linhas na borda do campo aberto. Era fim de tarde e o ataque de Sumner já havia sido realizado. Constantes fluxos de homens ensangüentados e alquebrados vinham pelo campo em sua direção, muitos passando calados através de suas linhas, outros amaldiçoando a própria sorte, ou alertando as novas tropas sobre o que as aguardava após a baixa elevação. Chamberlain não os olhou, manteve seus olhos à frente, encarando através da planície esfumaçada as pequenas colinas ocultas, o constante troar dos mosquetes, o constante trovejar dos grandes canhões.
Não houve uma ordem oficial, nenhum informe havia chegado, mas eles sabiam que o dia não seria bom. Do outro lado do rio eles não podiam ver o que acontecia em frente ao muro de pedra, mas agora, enquanto as unidades rompidas surgiam no terreno de fronte a eles e homens destruídos tomavam o campo, Chamberlain compreendeu. Seus homens eram a reserva, e seriam enviados pelo mesmo caminho.
O 20º Maine era parte da Terceira Brigada da Divisão de Griffin, Quinto Corpo. As outras brigadas de Griffin já haviam se movimentado e Chamberlain as observara partindo, diminuindo e desaparecendo na fumaça que pairava no ar. Agora ele ouvia novos clarins, e Ames, atrás das linhas, a voz familiar, “Avancem!” e a linha começou a se mover lentamente à frente.
Eles marchavam em três linhas. Chamberlaim olhou para o lado, para as curtas colunas, pensando, Não somos muitos e este campo é danado de grande. A sua esquerda ele viu os outros regimentos, homens de Nova Iorque, Pensilvânia, Michigan. Homens como esses, ele pensou, apenas fazendeiros e comerciantes, e agora éramos soldados, e agora estávamos prestes a morrer. O pensamento atingiu-o certeiramente, ele ficou chocado. Não sentiu medo, emoção alguma, apenas o lento ritmo dos seus passos chutando tufos de grama, pequenos e duros bocados de neve.
Ele esteve ouvindo os sons constantes por todo o dia, e nada havia mudado, e por isso não o afetavam agora. Os sons estavam próximos, talvez mais altos, mas eram os mesmos sons. Ele ficou curioso, pensando, Vamos ver agora, não vamos? Vamos aprender alguma coisa, do que isso se trata, do que se trata para os homens que estão diante de nós, os homens que estiveram diante de nós em Antietam, que já fizeram isso antes.
Na brigada em frente ele viu um homem sucumbir, virar-se e correr em sua direção, bem perto, e ele viu sua face, os olhos animalescos, o puro terror. Linha abaixo seus homens começaram a gritar e subitamente ele soube que era seu trabalho fazer... algo.
Ele tateou seu cinto, agarrou a pistola, puxou-a do coldre e apontou-a para a cabeça do homem. O homem olhou para ele, os olhos limpos por alguns segundos, e ele parou de correr, parando alguns metros a sua frente. Chamberlain continuava a avançar, seus pés em um ritmo próprio, o homem encarou a pistola, virou-se subitamente e começou a caminhar para frente novamente para frente do regimento.
Chamberlain baixou a pistola, impressionado, ouviu a comemoração de seus homens e olhou fixamente paras as costas do soldado solitário pensando, Tudo bem, está tudo bem. O instinto de auto-preservação está em todos nós. Ma o que aconteceu àquele homem, o que fez com que ele voltasse subitamente?
Ele começou a temer agora, uma súbita onda de mal estar dominando-o. E se eu correr? Não, não fará isso. Você pensa muito. Não se trata de pensar, é apenas... instinto, um instinto diferente do que o de sobrevivência. Ele tentou pensar na causa, sim, foco nisso... a razão pela qual... tudo isso. Tentou imaginar, escravatura, os direitos de todos os homens... porque eles estão fazendo isso? Não, não está funcionando.Sua mente está entorpecida, ele não sente nenhum grande fogo, nenhuma paixão por causa alguma. Para onde ele se foi, a emoção e o entusiasmo por fazer algo tão... necessário, sua viagem à capital, seu encontro com o governador. Estava tudo vago, memória fraca... e à sua frente as nuvens de fumaça e os pequenos clarões eram toda a realidade.
Os projéteis começaram a alcançá-los e o ritmo de seus passos era um rangido, o terreno tremendo, jogando-o à frente, e sujeira lançada sobre ele, sugando-o para o lado como um bafo de vento quente. Mas ele não caiu, olhou para trás, na direção da explosão, viu... nada, uma fenda na linha. Ele virou para frente, o ritmo retornando, pensou, Devia haver um homem ali... muitos. Mas sua mente não permitia que ele se prendesse a isso, e ele olhou para frente, viu as costas de seus homens, viu o soldado solitário marchando por conta própria. O barulho crescia agora, fortes silvos, gritos lancinantes. O terreno começou a inclinar novamente e agora ele podia ouvir algo mais, o som dos homens, e ainda assim olhava para frente, via as linhas unidas a sua frente, os homens avançando juntos, cruzando o canal, e pela primeira vez ele disse algo, emitiu um som, chamando seus homens.
“Mantenham a linha, parem!” Eles o olhavam, iriam fazer o que ele os ordenasse, e ele pensou nisso, em estar no comando, sentiu a força, um novo impulso de energia.
Ele os deixou para trás, movendo-se por conta própria até a beira do canal. Olhou para as pequenas e frágeis pranchas, o resto da Segunda Brigada cruzando-as e entrando em formação novamente do outro lado. Ele se virou, levantou sua espada, olhou por toda a linha, e então viu a sua esquerda, na direção do flanco direito do regimento, além, viu... nada. Havia outras unidades no flanco direito, dois regimentos, e eles não estavam lá. Ele sentiu um pânico gelado, caminhou naquela direção, olhou para trás, viu as linhas a cerca de cem metros atrás, e Ames com eles, na frente deles, gritando com irritação, trazendo-os com ele, e sentiu uma súbita raiva, impaciência. Este não é o momento para erro, para estupidez.
Ele gritou alto, sobre a cabeça de seus homens, “Venham para cá, para o flanco direito! Marchem!” e seus homens estavam virando, olhando para ele, e então ele viu: Ames estava guiando-os. Outros oficiais, seus próprios oficiais estavam gritando e movendo-se rapidamente pelas linhas, fechando a brigada.
Ele virou-se para o canal, sentiu suas mãos tremendo, o ritmo quebrando-se agora. Caminhou para frente, pisou em uma pequena ponte. Ele acenou com a espada para frente e eles começaram a formar uma linha, começaram a se mover pelas pranchas. No outro lado, no flanco esquerdo, ele viu os outros regimentos, viu que não havia pontes e os homens se moviam pelo canal em sua direção, para uma travessia seca. Não, ele pensou, não vai funcionar, e ele viu outros oficiais sacudindo suas espadas e os homens começaram a pular na água, atravessando-a onde não havia pontes. Olhou para baixo, para o canal, espessas massas azuis como pedras estriadas, os homens estavam contornando-as cuidadosamente, e ele viu que as pedras tinham braços, o fundo do canal estava cheio de corpos trajando uniforme azul. Ele parou, olhou para cima, para frente, lutando para manter o controle.
Houve um ruído contínuo, estridente, o som de algo chocando-se com a água e ele viu-se coberto por água fria. Olhou para baixo novamente e lá estavam mais corpos, corpos frescos. No fim do canal viu um clarão, uma bateria rebelde disparando diretamente sobre o canal. Outro grande impacto sobre a água e os pontões e outros homens foram subitamente varridos. Seus homens começaram a atravessar com mais rapidez, os que estavam abaixo forçando o ritmo, escalando rapidamente, cônscios de que aquele não era um lugar para se perder tempo, não havia cobertura. Agora ele foi pego por um fluxo de homens, empurrado através do campo, avançando com sua espada erguida. Eles começaram a se espalhar novamente, formando linhas e novamente marcharam adiante.
Não havia ritmo agora, cada passo, deliberado. Tentou enxergar os homens a sua frente, não havia nada, um campo de espessa névoa cinza. Então uma mão pousou em seu braço. Era Ames.
“Você está no comando do regimento! Tenho que assumir o lado direito da linha. Os comandantes caíram... Deus nos ajude!” e ele se foi.
Chamberlain sentiu-se desperto. Pôs-se sobre seus pensamentos, viu as faces que o olhavam, aguardando que ele as liderasse. Ele apontou a espada adiante, para a névoa desconhecida, gritou, “Homens! Adiante! Continuem!”
Os sons chegavam a ele um de cada vez, o solitário zumbir de uma bala de mosquete, o quente zunido de estilhaços, o ar atingindo-lhe em rápidas e quentes lufadas. Ainda não podia enxergar, movia-se a frente pela densa névoa, não olhava para os corpos pelos quais passava, o vermelho e o azul espalhados em grandes pilhas sobre a neve branca. Olhou para trás, para seus homens, novamente. Ainda estavam com ele, segurou o cabo da espada com firmeza, enterrando os dedos no aço, mas não era o suficiente. Alcançou a pistola, empunhou-a com a outra mão, segundo adiante.
Houve uma brecha, uma pequena fenda na névoa, e ele pode ver uma tênue depressão no terreno e uma leve elevação a seguir. Homens de azul agachados, alguns com mosquetes, disparando, recarregando, um grande número deles apenas... corpos. Além, ele viu um muro de pedra, levantou a pistola, sua mão tremendo com uma raiva fervente. Não estava pensando, sua mente não lhe dizia o que fazer. Começou a gritar, berrar para os mosquetes apontados para ele por detrás do muro, a face do inimigo e sua voz se mesclavam com o grande tumulto a sua volta. Houve uma explosão de chamas no muro e a sua volta homens tombaram, ele mirou a pistola, disparou e disparou novamente.
Págs. 341 a 344 (Tradução livre do original em inglês)
1 comentário:
Jeff Shaara , especializado na guerra civil americana, mas é ele o autor do livro que indiquei sobre a WWI no site WARGAMEBRASIL : ATÉ O ÚLTIMO HOMEM
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