Semana On

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O emblema vermelho da coragem - Stephen Crane

Era espantoso que a natureza seguisse tranquilamente em seu dourado processo em meio a tanta maldade.
Pág. 85

Apesar de Stephen Crane ter nascido após a Guerra Civil Americana e não ter tido nenhuma experiência de combate, sua novela, “O emblema vermelho da coragem” é apontada como um dos relatos de guerra mais verdadeiros e crus de que se tem notícia na literatura. Apesar de ele mesmo ter dito que “não se pode dizer nada... a menos que você tenha vivido aquilo”, seu romance é impregnado de um realismo que leva o leitor para dentro da cabeça do recruta Henry Fleming, seu protagonista.

Crane começou a escrever a obra em 1893, inspirado em relatos da guerra, em voga na época. Para compor a novela, ele também entrevistou veteranos do 124º Regimento Voluntário de Infantaria de Nova Iorque, conhecido como os Orange Blossoms. Inicialmente publicada de forma resumida em jornais, em dezembro de 1894, a novela foi publicada na íntegra em outubro de 1895. Uma versão mais longa, baseada nos manuscritos originais de Crane, foi publicada em 1982. Os especialistas na Guerra Civil Americana acreditam que o cenário escolhido pelo autor para descrever a experiência de Fleming foi a batalha de Chancellorsville.

Tentando explicar sua habilidade para escrever sobre a guerra de forma tão realista, Crane afirmou: “É claro que eu nunca estive em uma batalha, mas acredito que adquiri o senso do conflito nos campos de futebol americano; ou esta familiariedade com o combate é um instinto hereditário,e eu escrevi intuitivamente, já que os Cranes foram uma família de guerreiros no passado”.

De fato, a obra parece ter sido retirada da mente de quem testemunhou o calor do combate em primeira pessoa. Desde as primeiras páginas, quando o jovem romântico alista-se como voluntário no exército da União, contrariando os conselhos de sua mãe, em uma busca cega por glória e reconhecimento, Crane nos convida a um passeio pela psique de um jovem atordoado pela necessidade de “ser alguém” por meio e uma hipotética glória dos combates. Uma glória que cai por terra no seu batismo de fogo, quando a delicadeza da humanidade, o pavor diante da morte, prevalece.

Nos olhos do jovem apareceu uma expressão que se pode ver nas órbitas de um cavalo de perna quebrada.
Pág. 88

A desumanização dos soldados, sua transformação em meras peças em um imenso tabuleiro, é uma marca de “O emblema vermelho da coragem”, onde o exército e a guerra são coerentemente descritos com metáforas animais – como “duas serpentes rastejando para fora da gruta da noite”, o “animal vermelho”, “um enxame feroaz de criaturas escorregadias”, “o monstro verde e escarlate” – e o soldado individual não passa de uma engrenagem impessoal na máquina da guerra.

Esta proximidade entre ficção literária e a realidade dos campos de batalha faz com que a obra de Crane seja freqüentemente comparada a “Derrocada” de Zola e a “Guerra e paz” de Tolstói. No entanto, em “O emblema vermelho da coragem”, a guerra e as sensações que ela produz são protagonistas, não detalhes em um contexto maior.

A morte que enfia uma faca nas costas é muito mais aterrorizante do que a morte que pica entre os olhos. Pensando no assunto mais tarde, ele concluiria que é melhor enxergar o que nos aterroriza do que apenas ouvi-lo à distância.
Pág. 90

Não era recomendável encurralar homens em becos sem saída; nessas horas, qualquer um pode criar garras e dentes.
Pág. 158

Apesar de a guerra, o fragor do combate ser o ponto chave da obra, é na luta interna de Fleming entre a covardia e a bravura que reside o fio condutor da novela. Com maestria, Crane nos coloca diante de um jovem, recém saído da adolescência, lançado em meio a carnificina de uma guerra onde, pela primeira vez, a indústria serviu aos caprichos da mortandade com inovações tecnológicas que transformariam para sempre os campos de batalha. O pavor da morte andava lado a lado com o medo da ignomínia da covardia.

Era uma carreira cega e desesperada do bando de homens azuis de roupa enlameada e rota, sobre o gramado verde e sob um céu de safira na direção de uma cerca vagamente esboçada na fumaça, atrás da qual pipocavam fervorosamente os rifles inimigos.
Pág. 197

Fleming, antes de ser um herói aos olhos do leitor  é uma figura patética, uma sombra de todos nós, um arquétipo humano em busca de justificativas para a própria covardia e, posteriormente, um espelho das reações humanas quando a própria humanidade é reduzida a nada e a morte transforma-se em uma solução prática de modo que o temor dela se reduz diante da exaustão e da compreensão de nossa inutilidade enquanto protagonistas de nossas próprias vidas.

Lembrou-se do modo como alguns tinham corrido da batalha. Recordando suas expressões contorcidas de terror, sentiu desprezo. Era evidente que se tinham portado de modo muito mais espaventado e frenético do que o absolutamente necessário. Eram frágeis mortais. Quanto a ele, soubera fugir com dignidade e descrição.
Pág. 148

A luta de Fleming, sua covardia, a preocupação quanto a imagem que os outros teriam dele, transforma-se em um xadrez mental, um jogo de gato e rato no qual, inicialmente falsa, a sua bravura acaba por ser despertada em meio as engrenagens de uma máquina impessoal e terrível sobre a qual estava equilibrado.

Dentro dele, à medida que avançava, foi nascendo um amor, um afeto desesperado pela bandeira que seguia ao seu lado. A bandeira, uma criação de rara beleza, era invulnerável, uma deusa radiante que, num gesto imperioso, curvava seu corpo sobre o dele. Uma mulher vermelha e branca, cheia de ódio e amor, a chamá-lo com a voz de suas esperanças. Nenhum mal podia ser feito a ela, e isso levava o jovem a lhe atribuir um grande poder. Mantinha-se por perto, como se ela fosse capaz de salvar vidas. Em pensamento, implorou-lhe que o fizesse.
Pág. 175

Imortalizado no cinema por John Huston em “A glória de um covarde”, “O emblema vermelho da coragem” é um clássico do modernismo norte-americano. Uma obra que, passados 116 anos de sua primeira publicação, pode ser lida hoje com os olhos da contemporaneidade.

O autor

Jornalista e escritor naturalista americano nascido em Newark, Nova Jersey, Stephen Crane deixou uma obra literária de tal qualidade que foi considerado um dos principais escritores dos Estados Unidos no século XIX e o impulsionador do naturalismo que caracterizaria grande parte da narrativa daquele país no século seguinte. Filho de um pastor metodista, formou-se na Universidade de Siracusa, onde escreveu o rascunho de seu primeiro romance: “Maggie: A Girl of the Streets” (1893).

Posteriormente mudou-se para Nova York, onde se dedicou ao jornalismo e publicou contos. Escreveu sua obra mais conhecida, “The Red Badge of Courage” (1895), um romance ambientado na guerra de secessão, transformada em filme por John Huston (1951). Cobriu como jornalista a guerra greco-turca (1897) e, um ano depois, a guerra hispano-americana. Nessa época publicou uma de suas mais célebres coleções de contos, “The Open Boat, and Other Tales of Adventure” (1898). 

Após voltar de Cuba, viajou para a Inglaterra, onde conheceu escritores como Joseph Conrad e H. G. Wells. A saudade de seu país ficou refletida em “Whilomville Stories” (1900). Empobrecido foi internado no sanatório de Badenweiler, na Alemanha, onde morreu prematuramente de tuberculose, complicada por malária, em 1900.

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